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Os EUA e seu presidente antiliberal
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). É editora do site bemdito.jor

Os EUA e seu presidente antiliberal

É muito difícil imaginar que tal deterioração aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto incrédulos à passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma centenária tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará?
Tipo Opinião
Presidente dos EUA, Donald Trump (Foto: SAUL LOEB / AFP)
Foto: SAUL LOEB / AFP Presidente dos EUA, Donald Trump

O que acontece quando a autoproclamada maior democracia do mundo elege um presidente contrário ao liberalismo? Não devemos nos deixar enganar pelas aparências: mais do que o discurso, liberal é aquele que age como tal, que respeita os pressupostos do liberalismo, tanto na política quanto na economia. Donald Trump, por tudo que já fez em seu segundo mandato, é um presidente antiliberal, um dirigente mais aproximado a um autocrata do que a um presidente republicado contido pela "rule of law".

O adjetivo liberal é uma das muitas palavras do léxico político que vão se tornando opacas à medida em que seu uso inflaciona, mas designa uma atitude muito clara, do ponto de vista da filosofia política. O liberal é sobretudo um defensor da primazia da autonomia do indivíduo, um princípio que estabelece limites muito claros e firmes à capacidade de interferência e intervenção estatal. Falando de um modo simples: o liberal quer viver sua vida a seu modo sem que o Estado se intrometa em suas crenças, decisões pessoais e negócios.

A maioria das democracias contemporâneas herdeiras da filosofia liberal do século XVIII, dentre elas a brasileira, convive com uma versão atenuada do liberalismo clássico. Entende-se que a autonomia individual é uma garantia fundamental de todas as pessoas ao mesmo tempo em que se atribui ao estado papéis não só regulatórios, mas também programáticos, voltados à busca da redução da desigualdade social. Os Estados Unidos, ao contrário de países de liberalismo atenuado pelo desenvolvimentismo, é o baluarte desse tipo de liberalismo que podemos chamar de "clássico".

Essa fidelidade aos pressupostos liberais fortes é um dos elementos constitutivos da economia de livre mercado americana. Por décadas, investidores viram os Estados Unidos como um lugar seguro para alocar seus recursos, um país caracterizado por instituições estáveis e por um estado de direito rigoroso, algo importante quando se precisa de previsibilidade quanto ao futuro, a redução da incerteza que tanto apavora os tantos mercados.

Ao mesmo tempo, nos acostumamos a reconhecer no sistema jurídico americano uma defesa bastante rigorosa e abrangente da liberdade de expressão e todas a formas de liberdade correlatas - dentre elas a acadêmica e de credo. A América livre era uma terra em que cada um poderia dizer, pensar e produzir o que e tanto quanto quisesse. O estado manteria a retaguarda.

O que torna Donald Trump tão disruptivo é sua ofensa sistemática ao liberalismo e aos princípios estruturantes básicos da vida cultural norte-americana. Ele desorganiza a economia baseada no livre mercado, tumultua o funcionamento de instituições poderosas como as universidades, inviabiliza o controle judicial das violações a direitos quando declaradamente ignora o cumprimento das decisões judiciais. Por isso o mundo está estupefato.

É muito difícil imaginar que tal deterioração aconteça tão rapidamente. Por enquanto, assistimos um tanto incrédulos à passividade de uma sociedade que vê ruir, em meses, toda uma centenária tradição de defesa das liberdades. A América livre acabará? Quão fortes são os valores sociais quando a política os ignora? n

 

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