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O momento histórico de "Ainda estou aqui"
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É doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa agendas internacionais voltadas para as mulheres de países periféricos, representatividade feminina na política e história das mulheres. É autora do livro de contos "Alma Feminina"

Kalina Gondim comportamento

O momento histórico de "Ainda estou aqui"

O filme cativou minha atenção e aqueceu minha curiosidade a respeito de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, ou apenas Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva falecida em 2018
Tipo Análise
Rubens Paiva e sua esposa Eunice Paiva (Foto: Videofilmes/divulgação)
Foto: Videofilmes/divulgação Rubens Paiva e sua esposa Eunice Paiva

No último mês, fui ao cinema assistir “Ainda estou aqui”, filme agraciado, ganhador do Globo de Ouro e indicado ao Oscar de 2025. Penso que não haveria momento histórico mais oportuno para uma premiação como esta, que devolveu o ânimo e a esperança coletiva.

Após dois anos dos ataques de 8 de janeiro, o filme veio nos lembrar que, durante 21 anos, o Brasil viveu sob os grilhões de um regime autoritário. Em 1964, a defesa da democracia e o combate à corrupção formavam a cortina de fumaça que escondia as reais intenções de um golpe que objetivava paralisar as reformas de cunho nacionalista e social.

O golpe militar entrou em um looping de cassação de políticos, prisão de jornalistas e editores, partidos políticos extintos e ataques frontais à liberdade e à vida. Nesse cenário de corpos torturados, pessoas desaparecidas e muitas incertezas em relação ao futuro, uma família, como muitas outras, teve a vida de seus componentes suspensa e roubada.

O filme “Ainda estou aqui” se reveza entre a ilustração de momentos históricos que marcaram nosso país com uma faceta intimista, na qual são reveladas dores, sofrimentos e angústias da família de Rubens Paiva, torturado e morto pela ditadura militar.

O filme cativou minha atenção e aqueceu minha curiosidade a respeito de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, ou apenas Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva falecida em 2018. Após o filme, aventurei-me na leitura do livro que deu origem à produção cinematográfica e que traz o mesmo nome deste. “Ainda estou aqui” foi escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal Eunice e Rubens.

A obra desvela uma Eunice Paiva multifacetada. Preliminarmente ela é retratada na obra como uma esposa zelosa e mãe de cinco crianças. Depois, drasticamente, ela se vê viúva aos 41 anos de idade, e o que já seria trágico se torna cruel pelo fato dela não saber do corpo de seu marido.

Afinal ele ainda estava vivo? Ela era, de fato, viúva? Eunice conviveu durante décadas com dúvidas, incertezas e emoções represadas, engoliu o descaso e as mentiras orquestradas pelas autoridades brasileiras, bem como a omissão de parte dos brasileiros que, amarrados à fábula do milagre econômico demonstravam cumplicidade com o regime.

Eunice Paiva ficou presa por 12 dias em poder dos militares. Saiu da prisão vinte quilos mais magra, sofrida e devastada pelo enigma do paradeiro do marido.

Marcelo Rubens Paiva, em algumas páginas, apresenta a infância feliz no Rio de Janeiro: as praias, o futebol na rua. Tudo sequestrado pela ditadura militar, mas Eunice Paiva conseguiu, gradativamente, redefinir-se, reconstruir-se, pois não tinha vocação para desistência. Trocou o substantivo luto pelo verbo lutar, não havia no caminho daquela mulher resignação perante a realidade.

Entrou na faculdade de direito aos 42 anos, trabalhou para a Organização das Nações Unidas (ONU) e para o Banco Mundial, participou dos movimentos de Diretas Já, da luta pela anistia e da constituinte que deu origem à atual Constituição, defendeu os indígenas.

Foi convidada para ser candidata ao Senado e, depois, para ser suplente de Eduardo Suplicy, disse um sonoro não a todas as investidas.

Eunice Paiva tem história de luta na ditadura militar revisitada em "Ainda estou aqui"(Foto: Videofilmes/divulgação)
Foto: Videofilmes/divulgação Eunice Paiva tem história de luta na ditadura militar revisitada em "Ainda estou aqui"

Na casa dos 70 anos, caiu nos labirintos da desmemória típica do mal de Alzheimer, um indivíduo sem memória vive uma não vida, lembra apenas de fragmentos e reminiscências. Nesse momento da leitura, lembrei do Brasil, do quanto estamos desmemoriados, como que em uma espécie de Alzheimer coletivo.

A razão cínica nos informa que a ditadura foi benéfica, às vezes nega até que ela tenha existido. Estamos na era da mentira e do Gaslighting coletivo. Já com a doença bem desenvolvida, Eunice Paiva, como consta no livro, repetia constantemente: “Eu ainda estou aqui. Ainda estou aqui”.

"Ainda Estou Aqui": o filme que mudou a história do audiovisual brasileiro | O POVO News

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