“Você viu a Fernanda Torres no Globo de Ouro? Totalmente premiada!”
O meme, em referência a uma das entrevistas mais conhecidas da atriz, foi compartilhado mais de um milhão de vezes. O post oficial no Instagram do Globo de Ouro com o momento do anúncio do nome da atriz passou dos 77 milhões de visualizações e acumulou mais de 320 mil comentários.
A emoção da vitória teve um tom quase esportivo. E não para menos, Fernanda foi incluída no rol oficial de campeãs do Brasil ao lado de Rebeca Andrade, Ana Patrícia e Duda, Bia Souza e Raysa Leal.
O prêmio inédito e as indicações ao Oscar - Melhor Atriz, Melhor Filme e Melhor Filme Internacional - deram mais um impulso na jornada do filme “Ainda Estou Aqui”, que tem quebrado recordes de público e alcançado grande repercussão tanto no Brasil quanto no exterior.
O sucesso de uma obra que já caminha para ser um clássico do cinema nacional e um marco na indústria se confunde com o sucesso de Fernanda, que passa a ser tratada como um “tesouro nacional”.
No tabuleiro de xadrez, conhecido pela complexidade de suas estratégias, a torre pode mover-se por qualquer número de casas, seja em linha reta, na vertical ou horizontal. Isto é, desde que não haja nenhuma peça bloqueando seu movimento.
Na noite do domingo, 5 de janeiro de 2025, em um movimento inesperado, Fernanda deu o xeque-mate e escreveu um novo capítulo na própria carreira e na história do cinema brasileiro.
No páreo para o Globo de Ouro de Melhor Atriz estavam outras peças, já consagradas no tabuleiro de Hollywood: Angelina Jolie, Pamela Anderson, Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet. Ao ser anunciada vencedora, Fernanda foi aplaudida pelas concorrentes.
Quando recebeu a estatueta das mãos de Viola Davis, fez questão de lembrar, celebrar e dedicar o prêmio à mãe. Fernanda Montenegro esteve no mesmo palco, um quarto de século antes, recebendo o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro para Central do Brasil.
Em breve, as Fernandas dividirão outro momento marcante: a cerimônia do Oscar. A mãe foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz em 1999, sendo a primeira latinoamericana a conquistar uma uma nomeação. Fernanda Torres faz história ao ser a segunda brasileira a chegar no principal palco de Hollywood.
A estreia do Brasil na maior premiação do cinema mundial aconteceu em 1945, quando a composição “Rio de Janeiro”, de Ary Barroso, disputou a estatueta de Melhor Canção Original pelo filme norte-americano Brazil.
Já em 1960, o drama ítalo-franco-brasileiro Orfeu Negro - gravado no Brasil, com atores brasileiros e falado em português - venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional, mas representando a França, não o Brasil. De lá pra cá, 15 obras foram indicadas ao prêmio. Veja na lista a seguir:
Mãe e filha dividem o papel de Eunice Paiva, e Torres classifica a presença de diferentes gerações no filme como "uma vitória brasileira, na arte e na vida".
"Eu acho que isso diz muito sobre como nós sobrevivemos, artistas, criadores, defensores dos direitos humanos, advogados, uma visão humanista do mundo. Então eu acho que minha mãe, eu, Eunice Paiva, Marcelo Paiva e Walter Salles somos a prova de que a arte no Brasil existe e perdura, com um sorriso como Eunice ensina a gente a ter", afirmou a protagonista.
A conquista do Globo de Ouro veio na mesma semana em que os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 completaram dois anos.
Enquanto o sucesso do filme reflete o interesse da sociedade pelos acontecimentos da ditadura e a relevância de manter viva a memória histórica, além de buscar justiça para as vítimas e suas famílias, eventos recentes como os atentados ao STF e as reações de grupos ligados à direita radical evidenciam a fragilidade da democracia no País.
A obra de Marcelo Rubens Paiva, reimaginada por Walter Salles e trazida à vida por um elenco de mais de 25 artistas, incluindo Selton Mello, Maeve Jinkings, Valentiza Herszage e Fernanda Montenegro caminha para se tornar um tesouro do cinema nacional e um marco mundial da sétima arte. É só observar os números.
“Ainda Estou Aqui” foi indicado a mais de 45 prêmios. Destes, já arrematou 31.
Dentre as indicações, 20 foram em eventos internacionais e 6 em eventos nacionais. Confira no gráfico a seguir, o desempenho do longa nas premiações.
Fernanda é o que muitos chama de artista de berço. Filha dos atores Fernando Torres e Fernanda Montenegro, a artista contou com a participação de seus pais em sua formação, mas o apreço pelo teatro era comum na geração de Nanda.
Ela se reconhece em uma juventude que almejava o teatro para além da influência da família, como conta no programa Conversa com Bial de 30 de setembro de 2023.
“A minha geração queria fazer teatro. Tinha os meus pais? Claro! Mas a minha geração é Débora Bloch, Andréa Beltrão e Claudia Abreu”, reflete. A atriz afirma durante a entrevista que era natural que os jovens da época se interessassem pela atuação. Isso se deve a peças de sucesso como “Macunaíma” e “Romeu e Julieta”.
Com isso, Fernanda Torres, aos poucos, foi montando a sua própria trajetória nos palcos e futuramente na televisão. Não é por menos que aos 21 anos recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes por sua atuação no filme “Eu Sei que Vou te Amar” (1986). O feito a tornou a atriz mais jovem a receber o reconhecimento.
Um ponto que fez Fernanda Torres se diferenciar dos trabalhos realizados por sua mãe foram algumas escolhas que fugiam do convencional. Ela fez poucas novelas em comparação aos atores da mesma geração.
Ao ser perguntada sobre a ausência em novelas em comparação a sua mãe durante entrevista com Pedro Bial, Fernanda brinca: “Ela é melhor atriz que eu, né?”.
Apesar da afirmação modesta, em 46 anos de carreira, Fernanda foi indicada a mais de 50 prêmios de atuação, sendo 17 em eventos nacionais e 16 internacionais. Destes, venceu 25 e empatou uma vez, em segundo lugar, com a atriz americana Demi Moore. Fernanda detém ainda um prêmio Jabuti, concedido em 2018 na categoria “Livro Brasileiro Publicado no Exterior” pelo romance “Fim”.
Quando o assunto é Fernanda Torres, as reações do público só podem ser definidas como intensas. Os números falam por si. A popularidade crescente da atriz causou um fenômeno muito interessante para a série "Tapas e Beijos", produzida entre 2011 e 2015 pela TV Globo.
Protagonizada pela atriz em dupla com Andréia Beltrão, a produção passou a ser a série mais assistida do Globoplay, serviço de streaming da emissora, em todos os gêneros.
Fernanda Torres se tornou também um fenômeno nas redes sociais conforme a campanha de divulgação do filme Ainda Estou Aqui avança nos Estados Unidos.
De acordo com dados apurados pelo OPOVO+, a atriz tinha cerca de 930.000 seguidores em novembro do ano passado, quando Ainda Estou Aqui estreou, no dia 7 daquele mês. Até o fechamento desta reportagem, em 23 janeiro de 2025, já são 3,9 milhões de perfis que acompanham a atriz somente no Instagram.
Muito se deve, é claro, ao engajamento dos brasileiros. No perfil do Globo de Ouro, o vídeo com o discurso de Fernanda Torres já acumulou 2,8 milhões de likes.
Além disso, nas horas subsequentes ao anúncio da vitória, Fernanda acabou, momentaneamente, com a polarização política no País. Seu nome disparou em menções, desbancando a uma grande distância tanto o presidente Lula quanto o ex-presidente Bolsonaro.
Durante a temporada de cinema, Ainda Estou Aqui foi incluído na seleção oficial de mais de 50 festivais de cinema ao redor do planeta. E só de setembro a dezembro de 2024, Fernanda Torres participou de dez premières com direito a tapete vermelho.
E preparar as aparições não foi uma tarefa fácil. É o que relata o stylist de Fernanda, Antonio Frajado. O profissional contou que a criação do visual da atriz foi uma das coisas "mais difíceis" de sua carreira.
Por se tratar de um longa sobre "o horror da ditadura militar", Frajado precisou focar em escolher um look que equalizasse com o que assistido com um visual chique e impactante.
"Foi uma das coisas mais difíceis da minha trajetória, porque não é apenas escolher um look bonito, mas ele precisa ser adequado com o tapete vermelho e, ao mesmo tempo, coerente com a narrativa do filme e da Fernanda”
“Acho que desde o início, ainda em Veneza, quando o processo do filme começou, a única preocupação que tínhamos era de que nada disso, nenhum tapete vermelho, nenhum look fosse maior que a história de Eunice Paiva, que fosse maior que o livro ou que o filme”, acrescenta o stylist que já divide a parceria profissional com atriz há 12 anos.
A presença na mídia internacional também foi construída com aparições em talk shows, como o matinal Kelly and Mark e no late show Jimmy Kimmel Live!, um dos programas de maior audiência dos Estados Unidos. Somadas, as audiências das entrevistas nos canais oficiais do Youtube passam do 1,5 milhões de views.
Seguindo o estilo minimalista, na entrevista com Kimmel, Fernanda usou um vestido Carolina Herrera.
Arrematando a produção, a peça foi combinada com um scarpin de Alexandre Birman, confeccionado em nappa black, com solado em couro italiano e salto de 85 mm, além de joias Sauer, incluindo brincos em diamantes e ouro amarelo 18k e uma pulseira, também em ouro amarelo 18k.
O investimento em imagem e divulgação condizem com o tamanho da produção. O longa se tornou a maior bilheteria do cinema brasileiro no pós-pandemia. Com um faturamento que passou de 49,1 milhões de reais e público superior a 2 milhões de pessoas, o título superou Minha Irmã e Eu, de Tatá Werneck e Ingrid Guimarães, segundo dados da Comscore.
A produção custou cerca de 8 milhões de reais, sem nenhum centavo oriundo da Lei de Incentivo à Cultura, ao contrário do que diziam informações falsas divulgadas nas redes, e acrescenta estatuetas à já extensa lista de prêmios conquistados por Walter Salles. São 53 prêmios e 26 indicações, em 18 premiações brasileiras e 28 realizadas no exterior.
Ainda Estou Aqui tem sido apontado como um retrato necessário das marcas que o regime militar deixou em milhões de famílias brasileiras. Para o diretor, Walter Salles, a relação pessoal com a família Paiva foi o mote para a construção do filme.
“O assassinato de Rubens Paiva me marcou para sempre. A publicação do livro de Marcelo sobre seus pais e o relato da reconstrução que sua mãe faz da memória familiar me tocou profundamente”, afirma.
“É um registro de maturidade, de uma profunda e dilacerante beleza, em que Marcelo reconhece que sua mãe tinha sido a heroína silenciosa da sua família”, conclui o cineasta.
Para a historiadora Gabrielle Abreu, o filme traz a oportunidade de a sociedade brasileira discutir a ditadura por meio da arte. “Acho que a gente está vivendo uma oportunidade muito especial de sermos confrontados coletivamente”, diz Abreu, metre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atual gestora de Memória no Instituto Marielle Franco.
“Essa temática, por meio da arte, da cultura e de uma personalidade como a Fernanda Torres, facilita muito que o tema seja debatido e disseminado”, complementa.
Na avaliação do diretor, o livro e o filme podem ser vistos como um relato sobre a reconstrução de uma memória individual conduzida por Eunice, que se sobrepõe à busca pela reconstrução da memória de um país, o Brasil.
“Essa superposição entre o pessoal e o coletivo é uma das razões pelas quais quis fazer este filme. Essa busca da família Paiva durou 30 anos e se confunde com a luta pela redemocratização do Brasil”, pontua.
Gabrielle Abreu considera essa a mais importante função do filme.“Ele tem esse papel social de nos teletransportar àquela época e fazer com que as pessoas entendam e rechacem esse período”, avalia.
Para a historiadora, é preciso construir esse senso coletivo de rejeição ao autoritarismo em um período em que se registram ataques sucessivos à democracia. “Para que, assim, a gente passe a repelir o período, a ideia de uma ditadura, de autoritarismo, de censura, de limitação de direitos e, naturalmente, que isso inspire em nós, na sociedade brasileira, uma sensação de apreço à democracia”.
A avaliação é compartilhada por Fernanda Torres, que menciona as diferenças com outros países na forma de lidar com a memória e os vestígios dos anos autoritários.
“Ao contrário da Argentina, o Brasil varreu para debaixo do tapete a violência de Estado e se refundou por meio de uma Constituição que viria garantir os nossos direitos democráticos. Mas a violência se perpetuou, seja na maneira de agir das nossas polícias, seja no desprezo à democracia que hoje nos ameaça”, aponta.
Para a atriz, Eunice suportou “de forma estoica” os anos seguintes e, como advogada, lutou tanto pelo reconhecimento do crime cometido contra seu marido quanto pelos fim dos abusos arbitrários cometidos contra as minorias e os povos originários.
Fernanda aponta que o Brasil e Eunice se confundem. “São quase sinônimos, no silêncio e no amadurecimento pelos quais passaram”.
Com ou sem Oscar, Walter Salles e Fernanda já fizeram história. “Foi dessas experiências raras, das quais se sente saudade para sempre”, disse a atriz sobre o filme. E quem vai discordar da primeira brasileira a vencer o Globo de Ouro?
(Colaborou com esta reportagem Lucas Vieira / Especial para O POVO)