Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
Ney Matogrosso era beleza, arte, talento, hipnose. Com brilho nos olhos e fruta nas mãos, ela ia dizendo que na adolescência era sua fã, que ficava maravilhada com a força e vivacidade do homem-arte que a encantava, mas que que morria de vergonha de admitir isso
Foto: Samuel Setubal
Ney Matogrosso canta em show de Réveillon da virada de ano para 2024 no aterro da Praia de Iracema
Conheci uma mulher da qual eu não gostava. De tabela, pois era a filha dela que não me descia. Seria meio sádico da minha parte gostar de uma menina que em uma festa do pijama na infância combinou com as outras de passar pasta de dente no meu rosto enquanto eu dormia. As outras riram e acharam brincadeira, eu me encolhi atenta na rede.
Um tempo depois, não sei quanto, eu estava sentada em uma mesa de jantar com essa mulher. Ela comia manga de forma feroz e alguém disse o quanto achava bonito as pessoas comendo manga e se lambusando, como se fosse possível comer de outro jeito. Eu também achava uma cena e tanto, pra falar a verdade.
Em algum momento, ela falou de sua adolescência. Minha tia que também estava na mesa deve ter falado algo também. Ali eu já era um pouco maior, entendia algumas coisas e sabia de outras. Uma delas era Ney. Cantor, performático, famoso. Mas para aquela mulher, ele era outra coisa.
Foto: Sebastião Marinho
Ney Matogrosso foi a primeira atração do festival Rock In Rio, em 1985
Ney Matogrosso era beleza, arte, talento, hipnose. Com brilho nos olhos e fruta nas mãos, ela ia dizendo que na adolescência era sua fã, que ficava maravilhada com a força e vivacidade do homem-arte que a encantava, mas que que morria de vergonha de admitir isso. Ninguém sabia do seu amor íntimo, secreto. O preconceito do mundo e dos militares contra Ney era tão grande que, ao seu modo, ela também o sentia. Se envergonhava de dizer que o admirava, mas não de o admirar.
Eu, com antipatia por ela e empatia extrema pelo que ela dizia (eu mesma era fã de outro Homem com H), fiquei presa na cena de ver uma senhora trazer sua adolescente para a mesa de jantar para falar dos seus amores e vergonhas. Eu ali, adolescente também, não me envergonhava de falar que era fã de Renato Russo. Mas como fã, eu entendia o que ela queria dizer. Eu já tinha vivido parte do que ela conseguiu evitar.
As memórias dessa mulher vieram à tona antes mesmo de eu me encontrar com a película que aviva os anos 70 e 80 vividos por Ney. Para quem admira artistas dessa geração, não é nenhuma novidade ver a visceralidade com que viviam suas vidas e sua arte, e os filmes sabem disso. Saí da sala com algumas ponderações na cabeça, mas me deixando inspirar completamente pela coragem de quem paga o preço de decidir não ser menos do que é.
Foto: Paris Filmes/Divulgação
Protagonizado por Jesuíta Barbosa, "Homem com H", cinebiografia de Ney Matogrosso, a ganha trailer oficial
Eu juro que é melhor não ser o normal”. Ouvi Ney cantar e acreditei, assim como sempre acredito no que dizem aqueles que tem propriedade para tal. É bom, é muito bom ser lembrada disso. Mas acredito que deve ter sido melhor ainda crescer moldada pela originalidade e coragem de quem cantou o que queria. Mas não estamos perdidas, seja Ney, seja Renato Russo, seja Lady Gaga, os corajosos ainda nascem e, de alguma forma, continuam nos dando a luz.
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