Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
Não há resposta pra dor e nem para aquela tal única certeza que temos na vida e que, ainda assim, sempre nos pega de surpresa
Foto: Reprodução: Raquel Nascimento
O álbum de fotografias segue sendo uma das manifestações físicas da memória mais lembrada pelas famílias. Trata-se de uma coletânea de imagens que desperta cheiros, sons, imagens, palavras e outros afetos.
“Mamãe ia adorar seus cachinhos”. Perdi as contas de quantas vezes ouvi essa frase da minha mãe. Meus cabelos enrolados, especialmente na infância quando eram ornamentados por penteados, sempre ouviam essas palavras.
Hoje, algumas décadas depois, a frase ainda se repete quando estamos no elevador e faço uma finalização mais trabalhada, deixando as curvas mais aparentes ainda que meio tímidas no cabelo fino e pouco como é o meu.
Quando alguém se vai, ela continua a viver por meio das memórias das outras pessoas. “Ela ia amar isso”, “Você se parece tanto com ela, queria que visse!”, “Se ela estivesse aqui, iria te dizer isso”. A gente projeta cenários, e fazemos isso porque temos conhecimento de causa. Conhecemos quem perdemos. Às vezes, de forma tão profunda, que quase ouvimos aquela voz nos nossos ouvidos.
Mas e o outro lado, o que recebe tais comentários e que a ele não resta nada a não ser a imaginação? É difícil responder a frases tão cheias de carinho, sem sentir a mesma coisa. Não sei como me interessar mais pelo que ela diria.
Sim, é minha história, posso sentir o amor correr nas frases de minha mãe. Mas seria mentira dizer que sinto algo minimamente similar. Minha avó é uma ideia, uma fotografia, e talvez por sua partida ter sido tão prematura e dolorosa, não ouço falar muito dela. Não a ponto dela ser mais do que um sonho.
Essa semana, perdi meu primo. Alguém com quem vivi tantas histórias e que certamente em algum momento vão povoar o meu verbo para dizer que “Celin fazia assim”, “Isso é a cara dele”, ou “Ele ia amar estar aqui”.
O que meus sobrinhos vão sentir quando ouvirem isso? Eles o conheceram, mas não conseguimos mensurar ao certo até onde vai a memória de uma criança até que ela cresça um pouco mais.
Por meu primo, por outras pessoas próximas e queridas que se foram, me torno, como minha mãe, uma porta-voz de uma vida que foi. E de repente tenho que lidar com a realidade de que meus amores talvez sejam para as próximas gerações também uma ideia, um sonho, um sonho que nem deles é, mas que permeia.
Pode ser que alguém ache tudo isso mórbido, e não sou eu quem vai levantar a bandeira e dizer que não é. Nem sei o que é, pra ser sincera. Sei do que vejo e de tudo que não sei explicar tento escrever para administrar. Perceber minha vida e os atravessos que outras pessoas causam nela sendo carne pra mim e mito para outros não é fácil, mas é como é.
Foto: Reprodução: 103 Store
Em fotografias ou desenhos dispostos em um ambiente, a memória se faz viva, mesmo que nem todos reconheçam o seu significado.
As pessoas dizem pra nós fazermos com a nossa vida o que bem entendemos, já que a lembrança da nossa existência só vive por três gerações. E ainda assim, é uma memória vaga e recortada pela saudade que, dolorosa da perda, fica com o mais belo. Em alguns casos, é hipocrisia, mas em outros é a vida querendo seguir, da maneira mais natural e apaixonada como é possível.
Não há resposta pra dor e nem para aquela tal única certeza que temos na vida e que, ainda assim, sempre nos pega de surpresa. Não sei o que fazer com as imagens que dançam na minha cabeça, com aquelas que saem do quarto assim que alguém chama e que mesmo dançando horrores em mim, é uma paisagem qualquer pra quem me ouve.
Talvez isso nos ensine sobre impossibilidades, finitudes, limites. Se bons ou ruins creio ficar a cargo de como cada um consegue administrar seu caminhar. Hoje, não acredito que consiga ver o meu da forma como deveria, pois ainda dói, e aí preciso recorrer ao rei tempo que lave tudo pra que eu possa lembrar sem chorar.
Mas se no fim das contas, for apenas eu a dizer frases como a da minha mãe e a enxergar diante de mim uma cena impossível, que seja. Talvez essa memória seja realmente só minha, e não há nada que se possa fazer além de lembrar dela.
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