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"Deu match": estamos nos apaixonando por pessoas ou por padrões de dados?
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Vladimir Nunan é CEO da Eduvem, uma startup premiada com mais de 20 reconhecimentos nacionais e internacionais. Fora do mundo corporativo, é um apaixonado por esportes e desafios, dedicando-se ao triatlo e à busca contínua pela superação. Nesta coluna, escreve sobre tecnologia e suas diversidades

Vladimir Nunan tecnologia

"Deu match": estamos nos apaixonando por pessoas ou por padrões de dados?

Que possamos usar a tecnologia para facilitar encontros, mas sem esquecer que o que realmente transforma uma relação são os gestos humanos
Tinder, aplicativo de relacionamento (Foto: Reprodução/Unsplash/Mika Baumeister)
Foto: Reprodução/Unsplash/Mika Baumeister Tinder, aplicativo de relacionamento

Era uma vez um dedo. Sim, um dedo. Deslizando para a direita. Ou para a esquerda. Com esse simples gesto, vidas inteiras começaram. Outras tantas deixaram de acontecer.

Não é exagero dizer que, em pleno século XXI, o amor cabe na tela de um celular. Mais precisamente, entre algoritmos, vetores de dados e interfaces com design emocionalmente calibrado.

Por trás de cada match, por trás de cada notificação que acelera o coração, surge uma pergunta que incomoda: estamos nos apaixonando por pessoas reais ou por aquilo que os algoritmos calculam como compatível? Essa é a história do amor em tempos de inteligência artificial.

Capítulo 1: O flerte virou código

Não faz tanto tempo que as pessoas se conheciam no ônibus, na sala de aula, na fila do cinema. O acaso era soberano e o olhar bastava. Hoje, o olhar foi substituído por fotos cuidadosamente escolhidas, frases curtas com doses de humor e uma bio que parece mais um currículo emocional. A praça virou plataforma. O cupido virou engenheiro de software.

Aplicativos como Tinder, Bumble, Hinge e OkCupid prometeram algo revolucionário: o amor eficiente. Sem perder tempo, sem correr riscos. Tudo otimizado. Tudo previsto. Mas para prever é preciso medir. E para medir, sentimentos precisam virar dados.

Capítulo 2: O amor em equações

No início parecia simples. O usuário preenchia um perfil, escolhia preferências, definia distância máxima. Mas logo o sistema começava a observar.

Ele aprendia o tempo que você passava olhando um perfil, identificava os tipos de fotos que mais te atraíam, anotava o horário em que você mais buscava companhia. Cada deslize revelava algo. Aos poucos, você deixava de ser um indivíduo e virava um padrão. Uma entidade vetorial. Um mapa estatístico do amor.

E o que acontece depois disso? Você não recebe os perfis mais bonitos, nem os mais parecidos com seu perfil. Você recebe aqueles que, com base nos dados, têm maior chance de gerar engajamento. Porque o que realmente importa para a plataforma não é o amor, é a permanência do usuário no aplicativo.

Capítulo 3: Compatibilidade sob medida?

No OkCupid, a ideia de compatibilidade é tratada como fórmula. Os usuários respondem dezenas de perguntas, atribuem pesos a cada uma delas, e o sistema calcula: 87% de chance de dar certo. Como se fosse possível medir afinidade com precisão matemática.

Mas a ciência não está tão certa disso. Pesquisadores da área de psicologia relacional alertam que não existe evidência robusta de que algoritmos consigam prever relacionamentos duradouros melhor que o acaso. O acaso, por mais caótico que pareça, é o que nos coloca diante do diferente. Do novo. Do inesperado. E o amor, no fundo, sempre viveu de surpresas.

Capítulo 4: O amor virou um supermercado?

A promessa de liberdade de escolha deveria nos fazer felizes. Mas o que se percebe é o contrário. Barry Schwartz, autor do "Paradoxo da Escolha", mostrou que quanto mais opções temos, mais difícil é decidir. A indecisão aumenta, a ansiedade cresce e a sensação de arrependimento aparece com mais frequência.

Você dá um match e já começa a pensar se não há alguém melhor a poucos swipes de distância. A ideia de que há sempre algo mais perfeito logo ali afeta a capacidade de se entregar. O resultado é uma busca interminável e superficial. Um consumo afetivo de curto prazo.

Capítulo 5: O viés invisível

A promessa de meritocracia algorítmica também se mostra frágil. Estudos acadêmicos demonstram que pessoas brancas tendem a receber mais visibilidade e curtidas. Homens asiáticos e mulheres negras, menos. Esses dados revelam que o sistema, longe de ser neutro, reflete os preconceitos históricos e culturais da sociedade.

Mais grave ainda, os algoritmos amplificam esses vieses. Eles aprendem com os comportamentos dos usuários e os reproduzem. Com isso, muitas pessoas sequer aparecem nos resultados de outros usuários. A tecnologia que deveria conectar acaba por excluir silenciosamente.

Capítulo 6: A perfeição que entedia

Às vezes o algoritmo acerta em cheio. Sugere alguém com gostos parecidos, interesses idênticos, mesma faixa etária, mesma localização. O match parece óbvio. Mas algo falta. Falta surpresa. Falta dissonância. Falta verdade.

Nesse momento, surge o fenômeno da validação algorítmica. Confiamos tanto nas sugestões do sistema que esquecemos de escutar nossos próprios desejos. A relação vira uma projeção estatística e não uma experiência emocional. Amamos o reflexo do nosso perfil, não o outro em sua singularidade.

Capítulo 7: E a química, onde está?

Nenhum modelo de aprendizado de máquina, por mais avançado que seja, consegue prever aquele instante mágico em que duas pessoas se olham e algo inexplicável acontece. A química do toque, o cheiro, o ritmo da voz, o silêncio confortável entre frases — tudo isso escapa aos dados.

A conexão verdadeira envolve dimensões sutis, sensoriais, imprevisíveis. Está no improviso, na vulnerabilidade, no erro. É justamente por isso que os encontros reais continuam surpreendendo. E seguem sendo insubstituíveis.

Capítulo 8: Amor com design viciante

Muitos especialistas em comportamento digital comparam os aplicativos de namoro a máquinas de recompensa intermitente. Cada deslize é uma aposta. Cada match, uma dose de dopamina. A estrutura desses aplicativos foi pensada para manter você engajado, e não para fazer você sair de lá apaixonado.

Essa lógica afeta a qualidade das conexões. Quanto mais tempo se passa em ambientes de alta rotatividade afetiva, menor a disposição para mergulhos profundos. O amor passa a ser tratado como uma notificação que pode ser silenciada.

Capítulo 9: O erro que nos salva

Curiosamente, os encontros mais intensos muitas vezes surgem de combinações que o sistema não planejou. Um deslize acidental. Uma resposta fora do script. Um perfil que não parecia promissor, mas surpreendeu.

Esses momentos mostram que o algoritmo também erra. E, ao errar, devolve a espontaneidade que nos torna humanos. A beleza do amor está, justamente, no que não se controla.

Capítulo 10: O amor continua humano?

Apesar de toda a tecnologia envolvida, o amor resiste. Continuamos sentindo o frio na barriga, a insegurança do primeiro encontro, a alegria de uma resposta inesperada. A IA pode sugerir perfis, mas não substitui o olhar, o toque, a troca silenciosa de sentidos.

O desafio contemporâneo não está em rejeitar os algoritmos, mas em não se deixar aprisionar por eles. A escolha precisa continuar sendo nossa. Precisamos manter viva a capacidade de escutar o coração, mesmo quando tudo ao redor grita por eficiência.

Epílogo: Amar apesar dos dados

Somos a primeira geração a viver o amor cercado por estatísticas, likes e filtros. Isso nos traz novas possibilidades, mas também novos perigos. É necessário navegar esse novo território com atenção, responsabilidade e senso crítico.

Que possamos usar a tecnologia para facilitar encontros, mas sem esquecer que o que realmente transforma uma relação são os gestos humanos. A escuta. O cuidado. O tempo.

Porque, no fim das contas, o amor ainda acontece no inesperado. E, por enquanto, nenhum algoritmo aprendeu a programar isso.

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