Como você conhece pessoas novas? Quarenta anos atrás, as possibilidades de fazer amigos estavam diretamente ligadas à sua disposição de conversar e interagir com as pessoas no mundo real. Colegas de trabalho, pela convivência, ascendiam a categoria de amigos e, às vezes, até compadres.
Para os mais extrovertidos, aqueles mesmos rostos que estavam no ônibus ou no trem de cada dia poderiam convidar a uma conversa mais profunda. E se alguém era mais afeito aos rolês noturnos, como casas de forró ou boates da Capital, o ambiente poderia ser propício a fazer amigos ou flertar até conseguir um beijo e um número de telefone fixo.
Na década de 1990, porém, outras possibilidades começaram a surgir. O disque-amizade, no número 145, foi uma febre nacional, conectou pessoas e estourou a franquia de
Mas, quanto mais as tecnologias da comunicação avançavam, mais parece aumentar a dificuldade de interagir com as pessoas fora da internet. Estudos já apontam para uma correlação entre tempo gasto online e dificuldade de socialização.
Com a variedade de plataformas, existe quem fale até de “uberização do amor”. Tinder, Happn, Badoo, Bumble, Grindr e Inner Circle são apenas alguns exemplos de aplicativos que prometem entregar o amor na palma da sua mão. Estariam os algoritmos substituindo o bom e velho "Oi, você vem sempre aqui?"
A maioria dos adultos deve ter, atualmente, pelo menos um casal de amigos que se conheceu pela internet. Pode ser no método mais corajoso, seguindo nas redes sociais e curtindo fotos antigas, ou com o auxílio dos algoritmos.
Um levantamento feito pelo Statista indicou que o Brasil possui cerca de 17,9 milhões de usuários registrados em aplicativos de relacionamento. Destes, 2,9 milhões pagam por alguma funcionalidade premium ou plataforma fechada.
Um dos aplicativos que cobram pela inscrição é o TimeLeft. De origem portuguesa, a plataforma se considera muito mais um “experimento social” do que um aplicativo de encontros.
Curiosamente, ele não reúne casais e nem exige que você faça um perfil. É preciso apenas responder algumas perguntas sobre si mesmo e pagar uma taxa, que varia de 39,99 para um único jantar, a 119,90 em um plano que inclui vários encontros.
A plataforma cruza informações entre os usuários e monta um grupo de seis pessoas que devem jantar juntas em um restaurante também escolhido pela plataforma. A decisão se baseia no quanto o usuário quer gastar em três perfis de consumo: menos de 20 euros, entre 20 e 40 euros e mais de 40 euros.
No dia 11 de dezembro de 2024 eu fui a um desses jantares. Cheguei 20 minutos atrasado porque estava na cerimônia de entrega do Prêmio Ghandi de Comunicação. Em princípio, estava nervoso com a possibilidade do desfecho da noite se aproximar do enredo de E Não Sobrou Nenhum, da rainha do crime Agatha Christie, mas encarei o receio.
Na mesa já estavam Kelly, engenheira de energias renováveis e Marina, advogada. Logo depois chegou a outra Marina, terapeuta e canadense e, uma hora mais tarde, Leonardo, engenheiro militar da área de computação, cearense, mas que mora no Rio de Janeiro. Um grupo bem eclético, de idades bem próximas entre 26 e 30 anos.
No começo da noite, usamos o jogo de “quebra-gelo” que o aplicativo disponibiliza, mas a conversa logo começou a fluir. Conversamos sobre as carreiras, a rotina de trabalho, os piores dates e como todos lamentamos a falta de diversidade em nossos círculos sociais. Esse último ponto parece ser a característica em comum entre os usuários do app.
Pessoas com um espírito mais cosmopolita, que não têm medo de se abrir ao novo e que estão dispostas a conversar tête-à-tête, sem a ansiedade que encontros a dois podem gerar.
Ao contrário do tradicional para os aplicativos, onde a afinidade tem que ser estabelecida antes de qualquer encontro, as habilidades sociais do grupo são postas à prova e, para a nossa surpresa, muito da interação que surgia não vinha das experiências em comum, mas sim das diferenças.
Uma afinidade que se sobressaiu, porém, foi uma certa decepção coletiva com o uso de aplicativos de paquera. Marina, a advogada, disse que teve experiências pouco instigantes, que não chegaram a ser desagradáveis, mas que a "compatibilidade simplesmente não existia".
Kelly, por sua vez, disse que prefere outras formas de estabelecer conexões, porque os dates de aplicativo não estavam rendendo um saldo positivo. Em um deles, o rapaz despejou três anos de dor de cotovelo pela ex-namorada na mesa de jantar, e isso minou qualquer possibilidade de um segundo encontro.
Marina, a terapeuta, disse ainda estar se acostumando com a rapidez com que os brasileiros agem nos relacionamentos. Acostumada com uma longa troca de olhares para, no fim da noite, trocar seguidas no Instagram, ela diz que ainda precisa de um tempo mais longo até engatar em um contato mais íntimo como desejam a maioria dos rapazes.
A mediação dos afetos pela tecnologia é um tema que tem sido bastante discutido no campo da arte. Uma obra que explora bem a questão é o álbum "O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta" do rapper mineiro FBC.
Em um disco conceitual e inspirado na dance music, faixas como “Dilema das Redes”, “Não me ligue nunca mais” e “Antissocial” aparecem tratando, basicamente, de relacionamentos, raivas, cancelamento e problemas ligados ao uso social da internet.
Já um dos episódios melhor avaliados da série antológica Black Mirror, Hang the DJ, mostra um casal que se cadastra em uma plataforma que os conecta com várias pessoas até encontrarem o par perfeito.
Mas, quando os protagonistas ficam insatisfeitos com o resultado do algoritmo, propõem uma revolta contra o sistema em uma reviravolta cheia de ação.
Apesar de estar longe de lutar com seguranças armados, como na série, o padrão de comportamento do brasileiro nos apps parece estar fugindo do tradicional e da idealização dos relacionamentos.
A retrospectiva anual publicada pelo Tinder, intitulada “Year In Swipe”, destacou as principais tendências dentro do aplicativo e indicou que o relacionamento aberto foi o tipo de vínculo afetivo mais procurado pelos usuários nacionais. Além disso, as pessoas indicaram que preferem conversar pessoalmente, estão dispostas a explorar e não parecem ter problema em estabelecer vínculos mais fugidios, como o de “ficante”.
A professora de Antropologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Larissa Pelúcio, fala sobre a “uberização” do amor em tempos de aplicativos de namoro em um artigo acadêmico. Segundo ela, atualmente as relações exigem competências emocionais múltiplas e disponibilidade para se lançar no mercado dos afetos como “empreendedores”.
“Esteja disponível para novas aventuras (ou para novos matches e crushes); não hesite e não pare; não se prenda a pactos e não nomeie as relações, isso limita a sua experiência; seja livre, mesmo que isso doa um pouco”, exemplifica.
A pesquisadora afirma ainda que, sem regulações claras, as pessoas estão explorando um novo regime de gestão dos sentimentos, que também é algorítmica — visto que o aplicativo busca conectar as pessoas com “pares ideais”, considerando escolhas feitas previamente, “pistas” deixadas em outras redes sociais entre outros dados.
“Perfis menos ‘competitivos’ recebem menos likes. São, portanto, menos demandados, e ainda assim tendem a ser aqueles que, ao serem acionados, aceitarão a ‘corrida’ para qualquer destino”.
Como minhas companheiras de TimeLeft, muitas pessoas também não estão mais dispostas a buscar amor por meio de telas. Uma delas é a enfermeira Ana Rabelo, que define as experiências que teve como “deprimentes”.
Dois relacionamentos anteriores começaram com o intermédio do Tinder. O mais antigo durou um ano e o mais recente, cinco anos, entre namoro, noivado e casamento. Para a decepção de Ana, mesmo depois de um ano de casados, o ex-marido não havia saído dos aplicativos.
“Descobri a compulsão dele por aplicativos de relacionamentos e as tantas mulheres com quem ele se relacionava, e me separei”, relata. Hoje, ela prefere se relacionar com quem conhece cara a cara, por meio de amigos em comum.
A obsessão por likes e matches já está sendo levada aos tribunais. Uma ação judicial movida contra o Match Group, empresa que detém a marca Tinder, aponta que o modelo adotado pela rede social induz o uso compulsivo da plataforma, além de incentivar os usuários a pagar por assinaturas para terem “sucesso” na vida amorosa.
O processo foi protocolado no tribunal federal de São Francisco, nos Estados Unidos, e alega que a empresa usa seus recursos “para gamificar as plataformas e transformar usuários em jogadores em uma busca de recompensas psicológicas”.
Em nota, a Match rejeitou as alegações e chamou o processo de “ridículo”. De acordo com a companhia, o modelo de negócio adotado não é baseado em publicidade ou métricas de engajamento.
O jornal britânico The Guardian analisou um estudo publicado em de julho de 2024, no "Journal of Social and Personal Relationships" (Revista de Relacionamentos Pessoais e Sociais, em tradução livre), que investigou a relação entre a ansiedade social, o uso problemático de plataformas de namoro e o possível papel moderador da solidão atribuído aos aplicativos. A pesquisa teve como base uma amostra de estudantes universitários.
E qual foi a conclusão? Parece que o uso compulsivo de apps de encontro, como o Tinder, faz com que os usuários se sintam mais solitários. O cenário pode piorar quando falamos de pessoas com baixa auto estima. "Quanto menos confiante alguém estava, mais compulsivo era seu uso — e pior eles se sentiam no final", diz a reportagem de Emily Reynolds.
Para o designer Yarlei Nogueira, depois de dois relacionamentos sérios - um de cinco anos e outro de um ano - que começaram com uma conversa no aplicativo, o momento é de "tentar uma abordagem diferente sobre o assunto". "Quero tentar fazer à moda antiga", afirma.
Ele diz ainda usar aplicativos, mas não com a intenção de formar um par romântico. A maior parte do tempo que passou nas telas dando curtidas em outros perfis foi, segundo conta, para tirar a ansiedade de estar sozinho.
Hoje, Yarlei diz que segue um movimento que parece ter cada vez mais adeptos, e tenta ter conexões menos virtuais e conhecer pessoas "de formas menos automáticas".
Por outro lado, há usuários que estão "muito bem, obrigado" com os relacionamentos que construíram com o empurrãozinho da internet. É o caso do confeiteiro e empreendedor Venâncio Souza. Ele conheceu Luiz Fernando por meio do Grindr, aplicativo de encontros voltado ao público gay e bissexual.
À época, Venâncio estava em um relacionamento que não ia muito bem, e para tentar melhorar a situação, optaram por sair da monogamia para o relacionamento aberto. Foi assim que ele foi parar no aplicativo em meados de 2023.
"Achei o perfil do Luiz Fernando interessante, um jovem da minha idade, buscando amizades e uma boa conversa. Nisso comecei a sentir uma conexão para além da atração física", relembra.
Depois de meses de conversa, os dois resolveram que era hora de assumir um relacionamento. Foi preciso tomar a decisão de terminar de vez o relacionamento anterior, em uma decisão que Venâncio afirma não ter sido fácil.
"Mas foi a melhor escolha, hoje vejo que apesar do ambiente do app ser mais sexualizado, tem lá suas oportunidades. Eu ganhei na loteria".
A estudante de Artes Visuais Júlia Carneiro namora há 5 anos, e a aproximação com o atual namorado não partiu de um match. O casal se conheceu em um grupo de WhatsApp de compra e venda. Júlia queria se desfazer de uma mesa digitalizadora e o namorado achou ali a oportunidade de retomar o hobby de desenhar.
Ela, que produz ilustrações e colagens digitais, começou a conversar com Gustavo sobre os assuntos e as afinidades foram aparecendo. Eles marcaram um encontro, semanas depois e começaram a namorar depois de dois meses.
Durante a pandemia, quando não podiam se encontrar com frequência, foram as mensagens e videochamadas que mantiveram a conexão do casal, que pretende se mudar para o primeiro apartamento juntos em janeiro de 2025.
"Ah, dizem que o amor é uma flor roxa que nasce em coração de trouxa, né? E nós estamos sendo trouxas um pro outro esse tempo todo", afirma rindo.
Se o ditado popular é verdade ou não, não sei, mas parece que as pessoas estão dispostas - de uma forma ou de outra - a tentar montar um bom buquê. Enquanto o dilema das redes não se resolve, cada um vai dando um jeito de burlar a solidão das bolhas e da rotina corrida como pode.
"E pra você, relacionamentos e internet dão match ou é block? Eu sou Mateus Mota, repórter do O POVO+ e adoraria saber sua opinião aqui nos comentários. Até a próxima! :)"
Especial mostra a diversidade dos comportamentos sexuais na pós-modernidade