Marília Barreira atua como psicóloga e psicopedagoga clínica de crianças, adolescentes, adultos e idosos, assim como consultora em Psicologia. Professora do Curso de Psicologia na Universidade de Fortaleza (Unifor). Experiência na área de Psicologia, com ênfase em Educação, Psicologia Clínica, Psicologia Social e Identidade de Gênero e Diversidade Sexual
"Vai passar o Natal com quem?": a violência simbólica das pequenas perguntas
Para muitas pessoas LGBTQIAPN+, isso vem acompanhado de uma mistura de ansiedade, vigilância interna e a sensação incômoda de precisar "performar" uma versão aceitável de si mesmas
Foto: Divulgação/Pexels/RDNE Stock project
Imagem ilustrativa de apoio de pessoas em um jantar de Natal
Fim de ano é época de perguntas automáticas. “Vai passar o Natal com quem?”, “E o namorado?”, “Quando chega a fase de sossegar?”. Para muitas pessoas, esses questionamentos são apenas conversa de corredor.
Para pessoas LGBTQIAPN+, no entanto, podem funcionar como lembretes sutis e dolorosos das fronteiras afetivas que ainda persistem dentro das próprias famílias.
O que chamamos de microviolências não é o que grita, mas o que sussurra. Não é o ataque explícito, mas o comentário que parece inofensivo justamente porque se apoia na normalidade: a normalidade da heterossexualidade, da cisgeneridade e da expectativa de que a família tradicional é o destino de todos.
A cada dezembro, esse repertório se repete com a mesma força com que retornam os enfeites guardados no armário.
E, para muitas pessoas LGBTQIAPN+, isso vem acompanhado de uma mistura de ansiedade, vigilância interna e a sensação incômoda de precisar “performar” uma versão aceitável de si mesmas.
Quando alguém pergunta “vai passar o Natal com quem?”, costuma haver uma expectativa implícita: a resposta idealizada envolve pais, avós, mesa farta, abraços sincronizados. Mas a verdade é que nem toda família acolhe. Nem toda família aceita. E muitas pessoas, mesmo permanecendo fisicamente nesses espaços, só estão ali à custa de silenciamentos, omissões e negociações diárias sobre quem podem ou não ser.
Essas pequenas perguntas funcionam como lembretes de que o “amor incondicional” muitas vezes vem cheio de condições. Condições sobre como se vestir, como se comportar, com quem se relacionar. Condições que transformam festas em testes de resistência emocional.
A violência simbólica está exatamente nisso: naquele gesto que, sob o verniz da cordialidade, reforça a hierarquia das existências consideradas legítimas.
É importante lembrar que saúde mental não é apenas ausência de sofrimento. É também a possibilidade de existir sem medo, de respirar sem pedir desculpas, de ocupar um lugar onde a própria identidade não seja pauta de debate.
Por isso, para muitas pessoas LGBTQIAPN+, reorganizar o fim de ano é uma estratégia de sobrevivência — seja escolhendo passar a data com amigos que se tornam família, seja estipulando limites claros, seja dizendo “não” a encontros que exigem autonegação.
E se tratássemos essas perguntas com a complexidade que elas merecem? E se, em vez de presumir a família como destino inevitável, reconhecêssemos outras formas legítimas de laço e pertencimento? Isso não significa demonizar o Natal ou o Ano Novo, mas ampliar o repertório de afetos possíveis.
Fim de ano também pode ser sobre honestidade afetiva. Sobre permitir que cada pessoa escolha o espaço em que deseja estar. Sobre entender que a “família perfeita” é uma construção, e, muitas vezes, uma fantasia que exclui, cala e adoece.
Talvez a pergunta mais acolhedora que podemos fazer não seja “vai passar o Natal com quem?”, mas sim: “como você gostaria de viver esse fim de ano?”. Porque, no fundo, celebrar também é construir condições para existir. E existir plenamente é o verdadeiro ato de esperança.
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