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Espedito Seleiro, mestre que subiu muito além das sandálias
Foto de Marília Lovatel
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Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.

Espedito Seleiro, mestre que subiu muito além das sandálias

Nascido em Arneiroz, no Sertão dos Inhamuns, Espedito Seleiro escolheu Nova Olinda, no Cariri, para viver e prosperar
Artesão cearense Espedito Seleiro (Foto: Tatiana Fortes em 24-06-2017)
Foto: Tatiana Fortes em 24-06-2017 Artesão cearense Espedito Seleiro

Meu pai não perdia a oportunidade de citar “Ne sutor supra crepidam”, cujo significado, sem os rigores da tradução, é “Não suba o sapateiro além das sandálias”.

Como se sabe, o conselho, imortalizado em latim por Valério Máximo, escritor romano, se refere ao caso do artesão que, depois de ter apontado na tela do pintor grego Apeles o erro no calçado de um personagem, se sentiu no direito de corrigir outros aspectos da obra, para a indignação do autor do quadro.

Se tomada a frase no sentido literal, devemos ser gratos ao destino por Espedito Seleiro não ter limitado a sua arte ao rés do chão. E ter feito muito mais do que honrar a tradição de seus antepassados, em que figura o modelo de solado retangular, batizado como “quadrado”, encomenda de Lampião ao pai de Espedito.

Para quem não conhece a artimanha, a função do formato incomum era despistar as volantes no encalço do famoso cangaceiro, dele perdendo o rastro, sem descobrir a direção da pegada. Essa história ouviu contar, desde criança, quando aos 8 anos aprendeu o ofício paterno.

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Não eram os sapatos, porém, e sim as selas a despertarem nele maior prazer no processo de confeccionar, transformar a matéria-prima em objeto de uso, de modo que seleiro virou não só alcunha, mas também sobrenome.

Mudanças sociais e econômicas quase desapareceram com o aboio dos vaqueiros, veio a escassez de pedidos das peças de montaria, e, para alimentar os irmãos mais novos, o arrimo de família não estacionou à altura dos quadris.

Contudo, saciar o estômago foi pouco para um artista apaixonado. Então ele subiu novamente, desta vez, rente ao coração, presenteando com o seu talento caprichoso o amor da sua vida.

Assim, na proposta do compromisso, a prenda oferecida à Francisca — parceira no casamento, que se estendeu da década de 1960 à morte dela em 2020 — foi uma joia feita para a moça usar nos pés, não nas mãos: um par de sandálias.

Páginas Azuis com Espedito Seleiro

Com esposa e filhos — e saberes compartilhados —, do coração à liberdade da imaginação, ergueu-se o seleiro. Os tempos exigiram o incremento do negócio, diversificar a produção.

Bolsas, carteiras, mobílias ganharam as curvas e os recortes dos gibões, estilizados com a flor de lis, a estrela de oito pontas, o colorido cigano, o marrom da casca do angico, o vermelho do urucum, o branco e o amarelo, obtidos com tratamentos naturais, e um onipresente coração.

Nascido em Arneiroz, no Sertão dos Inhamuns, Espedito Seleiro escolheu Nova Olinda, no Cariri, para viver e prosperar. Próximo à Chapada do Araripe, na terra onde teria brotado a primeira flor do planeta, ele se estabeleceu para atender a quem vem de toda parte.

Do anonimato da gente da região às celebridades nacionais, das listas de Violeta Arraes — à época reitora da Universidade Regional do Cariri (Urca) — ao figurino de “O Auto da Compadecida”, das demandas dos desfiles da São Paulo Fashion Week às passarelas de Paris, Milão e Londres, o coração da sua arte vem pulsando sempre mais forte. A estrela de couro do grande mestre se elevou, inalcançável. Brilha altíssima.

Foto do Marília Lovatel

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