
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Há corações que se revelam na quietude, outros no sobressalto. O meu, indisciplinado, decidiu se anunciar quando um simples teste de esteira se transformou em sentença: "Vá direto para o hospital". Foi ali que reencontrei o cara que mais conhece meu coração, o Dr. Cabeto.
Um cardiologista que sabe escutar não apenas o músculo, mas o silêncio entre os batimentos, como se ali residisse um enigma. Cabeto não é apenas meu médico: foi também secretário de Saúde do Ceará durante a pandemia de Covid-19, quando teve a responsabilidade de comandar, com serenidade e firmeza, a travessia de uma sociedade inteira pelo território da morte.
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Benjamin escreveu que todo ato de narrar é um ato de sobrevivência — e, naquele tempo suspenso, comandar as narrativas, como fez Cabeto, foi também uma forma de inteligência política. Cabeto exerceu a medicina como quem administra destinos: de indivíduos e de povos.
Graças a ele, trago em mim dois stents, esses discretos arcos de metal que se implantam nas artérias para mantê-las abertas. São como pequenas pontes lançadas contra o esquecimento do corpo, círculos da vida. Talvez Adorno tivesse razão quando dizia que a cultura é aquilo que permanece mesmo diante da catástrofe: no meu caso, cultura e ciência se aliaram na engenharia mínima desses anéis de aço.
Mas não foram apenas as artérias que se abriram: ao lado de Cabeto, descobri que o coração é também metáfora política, lugar onde a técnica se encontra com a ética, onde a serenidade diante da morte se transforma em um ensinamento coletivo.
O segundo aspecto do meu coração de que sei é uma geografia: Fortaleza, sobretudo a Praia de Iracema. Não é só praia, é esquina de Brasil, território boêmio de intelectuais e artistas, espécie de laboratório onde a cidade se pensa e se sonha.
Ali estão o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, seus museus, teatros e salas de cinemas, e o Porto Iracema das Artes, instituições que concebi como uma ponte para a democracia cultural. A Praia de Iracema é a prova de que as cidades podem ser, como queria Cortázar, cronópios: imprevisíveis, generosas, desarrumadas e, justamente por isso, vivas.
Borges diria que somos feitos de memória e de esquecimento, e Fortaleza vive desse duplo movimento: lembrar a rebeldia de seus criadores e esquecer, a cada manhã, as vezes em que quase cedeu ao conformismo.
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O terceiro amor é mais cruel, quase masoquista: o Ceará Sporting Club, o alvinegro de Porangabussu. Ser seu torcedor é habitar o território ambíguo das paixões populares, onde a esperança convive com a tragédia.
Na semifinal da Copa do Nordeste, o time reafirmou sua vocação de nos fazer sofrer, tomando o gol que não deveria no último minuto. Mas o sofrimento, nesse caso, é também forma de vínculo. Como lembrava García Márquez, a vida não é o que se vive, mas o que se recorda, e o que se narra.
Assim é o Ceará: uma narrativa coletiva, feita de derrotas que nos unem tanto quanto as vitórias. Torcer pelo alvinegro é permanecer fiel a um Brasil sofrido, unido na dor e nas rápidas alegrias.
Duas ou três coisas sei sobre meu coração: o cardiologista que pensa, a cidade e o meu time: eis uma tríade curiosa para começar. E claro, as mulheres que amei e amo. Sem o amor, sem Isabel, por exemplo, e o amor por meus filhos e netos, hoje eu não seria nada. E os amores que se foram, como por meu pai, Edgar Linhares.
E é preciso lembrar que, como diria Borges, "somos aquilo que amamos e o que perdemos". Eu acrescentaria: somos também aquilo que insiste em bater contra a lógica e contra a morte.
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