
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Na Faculdade de Direito, o tabique de compensado separou em duas metades a sala de pouco mais de quarenta metros quadrados, situada no andar térreo do predio. De um lado da divisória, ficou o professor que antes ocupara sozinho todo o espaço e, contrafeito, tivera de se submeter a nova situação, espremendo-se no cubículo resultante da partilha. Do outro, instalou-se o colega Antônio Martins Filho, depois de convencer o diretor a lhe arranjar um lugar qualquer no edifício, situado em frente a praça Visconde de Pelotas, atual praça Clóvis Beviláqua.
Martins Filho tinha pouco a acomodar no local: birô, cadeira, fichário e algumas estantes com livros. Mesmo assim, a sede da Faculdade de Direito, com dois pavimentos e área total de 1,5 mil metros quadrados, não dispusera de outro espaço livre, situação que já demandava a construção de moderno anexo, então em fase de projeto. Para atender ao pedido de Martins, fez-se o arranjo de última hora. A porta da saleta improvisada, o homenzinho baixo e magro, de testa quadrada, orelhas pontudas, óculos de armação pesada e lentes grossas de miópe mandou colocar a plaquinha informando a natureza do novo local de despachos: "Universidade do Ceará Reitoria".
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A placa era motivo de galhofa pelos corredores da Faculdade de Direito. "Reitoria?", indagava-se, em tom de escárnio. Só podia ser piada. Chamar de Reitoria o compartimento mal-ajambrado e minúsculo soava como despautério, atestado de humor involuntário. Se a tal Universidade do Ceará ainda não saira sequer do papel, qual sentido fazia nomear um "reitor", termo usado na antiga Roma para designar aquele que dirigia ou governava toda uma província ou um grande santuário?
Dali por diante, todos teriam de tratar o colega Martins Filho pelo qualificativo cerimonioso, "Vossa Magnificência"? Chamá-lo, oficialmente, de "Magnífico"? Era com tais argumentos que o contrariado ocupante da sala original se queixava aos demais colegas, pelos corredores da faculdade, no início daquele ano de 1955. "Não se preocupe", um deles comentou. "Isso é só mais uma das tantas maluquices do Martins Filho. Essa historia de 'Universidade' não vai durar seis meses, pode apostar".
Na terça-feira, 7, vai ser lançado na Reitoria da UFC, às 19 horas, o livro 'Biografia de Uma Universidade".
O que esse livro envolvente de Lira Neto nos diz? Que instituições nascem de gestos repetidos: assinar um livro, erguer um prédio, tocar um hino. Crescem num tabuleiro de forças: quem pode falar, quem decide o rito, quem guarda a porta. E sobrevivem quando transformam conflito em método. A história recente da Universidade Federal do Ceará é essa montagem - feita de cenas curtas, de perdas e ganhos de voz, de reformas e ritos que se refazem.
No apartamento do general em Ipanema, na rua Nascimento e Silva, Castello Branco pôs as duas mãos sobre os ombros de Antônio Martins Filho. Disse ter uma dívida de gratidão para com o conterrâneo, reitor da Universidade do Ceará. Prometia honrar o débito tão logo tomasse posse na presidência da República. As testemunhas da cena ajudaram a propagar o boato de que Martins seria o próximo ministro da Educação.
Sob vigilância, a Universidade aprende a respirar por frestas. O que os relatórios chamam de "infiltração" é, na prática, circulação: línguas, filmes, voos, institutos culturais, convênios, cartazes. O controle tenta congelar nomes, rotas, mesas de bar. Mas uma instituição é mais do que suas atas, é também a coreografia dos seus encontros.
Entre a crise orçamentária e a disputa de legitimidade, a noite da posse tumultuada no início dos 1990 condensa a pergunta que atravessará décadas: quem é "a universidade" quando o rito se rompe?
Democratizar é deslocar a porta de entrada e reforçar o chão de permanência. O ciclo 2003-2014 injeta orçamento, cria campi em Sobral, Barbalha, Quixadá, Russas, Crateús, amplia mestrados e doutorados, contrata centenas de docentes e técnicos. Vem o Reuni com suas metas (vagas, evasão, relação docente/estudante) e, com ele, o risco de a régua virar fim em si.
Depois, o Sisu. Troca-se o vestibular local por uma plataforma nacional - e com ela, uma tempestade simbólica: "as vagas serão dos de fora". A Universidade responde abrindo-se ao País e oferecendo ao seu próprio aluno a mesma possibilidade de escolha. E, a partir de 2013-2014, as cotas.
A universidade fica mais parecida com o País que a mantém. E isso lhe devolve, paradoxalmente, excelência: ampliar quem pode aprender é ampliar o que pode ser aprendido.
A pandemia revela outra camada: o conflito entre evidência e retórica. Debates sobre "passaporte vacinal", comitês alinhados a teses sem base, divulgação de entidades pró-"kit covid", a pressão editorial sobre a rádio universitária - tudo isso compõe a microfísica do novo controle ideológico.
Como biografia, a Universidade aparece cheia de contradições: às vezes formalista, às vezes insurgente, ora de mãos dadas com o Estado, ora em tensão com ele, capaz de solenidades generosas e de notas burocráticas ríspidas.
Como ensaio político a linha é clara: as controvérsias são o motor de instituições vivas. Disputas por capitais simbólicos (quem fala em nome da ciência, quem decide currículos, quem é público) articulam-se a recursos materiais (verbas, prédios, contratações) e a rituais de validação (listas, consultas, títulos). O que se chama "autonomia" é o equilíbrio instável desses planos.
A biografia de uma instituição é, sempre, mais do que rememorar datas, eventos e decretos. É também narrativa do percurso político, intelectual e afetivo dos que a fizeram. A Universidade é um tecido de vidas e trajetos. E aqui Martins Filho aparece, sim, como figura central.
O livro, queiramos ou não, é também uma biografia de seu fundador. Assim, a narrativa nos mostra que toda fundação é cheia de riscos: entre emancipação e controle, entre modernização e tradição, entre sonho acadêmico e cálculo pragmático. O rosto do fundador permanece como signo: revela e esconde, liberta e interdita.
Com a publicação deste livro o reitor Custódio Almeida consegue colocar alguns tijolos fundamentais na construção desta obra simbólica de longuíssima duração que é uma grande Universidade como a Federal do Ceará. Lira Neto começou sua carreira de escriba com um clássico da cultura cearense, a biografia de Rodolfo Teófilo, "O Poder e a Peste" (1999), e publica agora um livro fundamental para se pensar o Ceará.
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