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O absurdo nosso de cada dia na segurança
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

O absurdo nosso de cada dia na segurança

Recompensar o assassinato, desconsiderando todas as implicações psicológicas para o autor da ação, talvez não soe absurdo para uma população que se vê desesperançada, mas é uma medida, para dizer o mínimo, inócua
Tipo Opinião
O absurdo também se demonstra por parte de quem legisla e deveria nos representar no parlamento (Foto: divulgação OP )
Foto: divulgação OP O absurdo também se demonstra por parte de quem legisla e deveria nos representar no parlamento

O Dicionário Houaiss carateriza absurdo como tudo aquilo "que se opõe à razão e ao bom senso; que é destituído de sentido, de racionalidade". Quando a palavra surge e se dissemina, certamente não haveria quem imaginasse que ela fosse caber tão bem para descrever a realidade atual da segurança pública.

Comecemos pelo absurdo noticiado por O POVO: Ione Rodrigues, conhecida como Bira, foi morta a tiro e a golpes de faca em sua própria casa, no município de Saboeiro, distante 430 km de Fortaleza. Ela deixa três filhos pequenos. Segundo a polícia, a vítima já havia trabalhado como cozinheira no destacamento da Polícia Militar da região, uma unidade policial menor em termos de quantidade de efetivo.

O brutal assassinato teria sido motivado pela proximidade de Ione Rodrigues com a PM. Antes de ser assassinada, ela já vinha recebendo ameaças. Embora não trabalhasse mais como cozinheira do destacamento desde dezembro, circula uma versão de que ela teria se negado a envenenar a comida dos policiais militares a mando da facção e, por isso, teria pago a recusa com a vida. A Polícia Civil investiga o caso.

Em se tratando de alimentação e de absurdos, foi noticiado ainda pela imprensa que restaurantes localizados nos municípios de Amontada e de Marco foram proibidos pelo Comando Vermelho de fornecer refeições a policiais militares, especialmente do Raio.

Um vídeo ganhou bastante repercussão ao mostrar duas mulheres pedindo desculpas por fazerem uma festa de aniversário para uma criança cujo tema era o Raio. Em Pacatuba, no Conjunto Jereissati III, mais de 30 famílias tiveram de deixar suas casas por causa de uma determinação do crime organizado.

Não podemos afirmar que nada vem sendo feito no sentido de coibir a ação dos criminosos. Operações e prisões se sucedem. Nunca se investiu tanto na área da segurança pública, mas a percepção é que as facções agem com desenvoltura inédita e que suas ações se tornam mais direcionadas aos poderes constituídos. Se antes a regulação social acontecia dentro de limites territoriais bem definidos, a impressão que temos hoje é que as facções buscam intervir no próprio funcionamento da máquina estatal.

Em meio a esse sentimento de insegurança e de impotência vivido pela população, vídeos institucionais de paredes sendo pintadas com a inscrição "Ceará contra o crime" reforçam a ideia de que há uma desconexão entre o que ocorre no cotidiano e a gestão pública. Gostaria realmente que as pessoas se sentissem mais seguras com essa medida, mas tinta fresca sem forte presença do poder público nos territórios em nada resolverá essa questão.

O absurdo também se demonstra por parte de quem legisla e deveria nos representar no parlamento. O deputado André Fernandes (PL) anunciou que irá destinar cerca de R$ 1,8 milhão em emendas para a Polícia Militar para a compra de 152 fuzis, 200 kits de APH tático e mais de 100 mil munições de pistola. O reforço no poderio de fogo da corporação não é o problema aqui. O disparate vem em seguida, ao revelar, em discurso na Câmara dos Deputados, que pretende condecorar o policial militar que mais matar traficantes e faccionados no Ceará.

Sobre o que há de "cristão" nessa proposta, recomendo a leitura da coluna de Érico Firmo. No que compete a uma coluna sobre segurança pública, basta contar um simples episódio. Um esquema bilionário de lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta e fraudes no setor de combustíveis foi desbaratado em agosto, pela Polícia Federal.

A investigação começou com uma denúncia sobre postos de combustíveis e avançou até chegar a empresas de investimento (fintechs) criadas com o intuito de lavar o dinheiro ilegal. A grana era tanta que carros de seguranças foram contratados para fazer o transporte dos valores.

Sem disparar um tiro, duas operações da PF causaram um dano imenso ao crime organizado. Inteligência, deputado. A saída é por aí. Mas se a sanha pela morte não for saciada, talvez seja o caso de fazer um adendo e também remunerar PMs que "derrubassem" analistas financeiros da Faria Lima que estejam envolvidos com lavagem de dinheiro.

Recompensar o assassinato, desconsiderando todas as implicações psicológicas para o autor da ação, talvez não soe absurdo para uma população que se vê desesperançada, mas é uma medida, para dizer o mínimo, inócua. Quem propõe algo do tipo sabe que a situação não irá ser resolvida dessa maneira, mas a exposição está garantida, o vídeo repercute nas redes, o colunista comenta. Difícil evitar ser fisgado por essa isca. O desafio é imenso, como se vê, mas desacreditar de tudo, isso sim, seria o maior dos absurdos.

Foto do Ricardo Moura

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