Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
Rubens Rodrigues é jornalista, editor de Cidades do O POVO. Nesta coluna, trata de assuntos ligados a raça, diversidade e direitos humanos
Dispor de um espaço seguro para construir e compartilhar estratégias antirracistas é o ponto de partida da oficina Aquilombamento e resistência negra, ministrada pela antropóloga Izabel Accioly. A aula é exclusiva para pessoas pretas, e ela justifica: "Precisamos de espaços nossos".
A oficina online que ocorre neste sábado último de setembro, dia 30, é uma de várias na carreira de ensino em que Accioly discorre e discute relações raciais e branquitude.
Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a cearense é a convidada que abre esta coluna. Como todo bom começo, seremos didáticos, e aqui Izabel explica os conceitos e repercute aquilombamento, colorismo e o perigoso limbo racial que o rodeia.
OP: Em seu novo curso, você trata do aquilombamento. O que é esse conceito e como ele contribui para a formação de um espaço seguro para a população preta?
Izabel Accioly: Esse aquilombamento refere-se à palavra quilombo, que se torna um conceito para nós atualmente, mas que se refere historicamente às comunidades criadas, formadas e mantidas por pessoas negras que, no Brasil colonial, eram escravizadas, fugiam e se reorganizavam nessas comunidades. Que eram um tanto locais de resistência, mas lugares também de liberdade, de autonomia.
Esse conceito, que vai estar muito ligado às ideias de
Então, essa oficina é tanto para rememorar o que nós, enquanto povo negro, já construímos, mas também para criar juntos novas possibilidades de resistência e fortalecimento. Essa oficina tem um custo baixo e, para cada inscrição realizada, uma bolsa é doada para uma pessoa negra que não pode pagar. Então, eu também tô preocupada em fazer esse tipo de conhecimento chegar ao máximo de pessoas negras possível. Tanto produzindo conteúdo nas redes sociais, quanto nesses espaços mais restritos onde podemos criar as nossas próprias estratégias. É uma oficina exclusiva para pessoas negras.
OP: Por que é uma oficina exclusiva para pessoas negras?
Izabel Accioly: Porque a gente precisa de espaços nossos. Espaços de reconhecimento e de fortalecimento mútuo.
OP: Em outro curso, você fala sobre como o Brasil lida com o colorismo e o reflexo disso na sociedade. Por que o colorismo ainda é um tema tão sensível?
Izabel Accioly: O colorismo é um conceito que surgiu nos Estados Unidos e foi importado para cá. É importante que a gente pontue isso. Então, existem coisas que dizem respeito ao colorismo nos EUA que aqui é completamente diferente porque, lá nos EUA, eles tiveram a segregação racial. No Brasil, nós tivemos a miscigenação. Aqui, por conta desse incentivo à miscigenação temos uma gama gigantesca de tonalidades de pele. Arrisco dizer que muito mais que eu vi lá nos EUA, onde consegui ver mais pessoas de pele escura.
Eu sinto que aqui no Brasil esse tema é muito sensível porque, por exemplo, pessoas negras de pele clara, como eu, demoram uma vida inteira para entender por que que me tratam diferente. Ao longo da minha vida, ao mesmo tempo que eu tive a minha negritude negada, também tive situações de racismo. A gente passa a vida toda para se fortalecer, e tem pessoas que nunca vão conseguir fechar esse processo. Pessoas que estão no que a gente costuma chamar de limbo racial e que estão na fronteira entre o que é visto socialmente como branco e o que é visto socialmente como negro. Essas pessoas podem, inclusive, passar por situações em alguns lugares onde são vistas como brancas, e em outros lugares são vistas como negras.
Há inclusive um grande debate sobre a afro conveniência. Um exemplo que uso em sala de aula é o da Anitta. Quando ela quer fazer sucesso nos Estados Unidos, usa cabelo liso. Quando lançou “Vai, Malandra”, era toda a estética da favela, o cabelo com trança, a marquinha do biquíni, a pele mais escura. As pessoas que estão nesse limite podem ficar confusas durante muito tempo, mas também têm de estar atentas para não usar essa confusão para benefício próprio. É isso que a gente chama de afro conveniência, quando é conveniente, por exemplo, para passar por cotas ou para ficar palatável para um público.
OP: O que esse limbo racial representa para a sociedade? Muita gente que está nesse lugar não consegue se colocar racialmente.
Izabel Accioly: Moreninho, moreno cor de jambo… Inventam um monte de nome para não se afirmar. Nos últimos anos, o número de pessoas negras vem aumentando no Brasil e não é porque tá nascendo mais que gente branca, é porque mais pessoas estão entendendo que são negras. Estão começando a afirmar sua negritude.
Acredito que é preciso tentar ao máximo sair desse limbo ou entender se você realmente é branco e a brancura da sua pele comunica esse lugar de poder, ou tentar entender se é mesmo negro, visto socialmente como negro e se fortalecer com outras pessoas negras. Mas, sim, existe um grupo de pessoas que não vai conseguir sair desse limbo, e isso é uma confusão racial que não pode ser colocada na conta dessas pessoas porque elas não escolheram isso. Deve ser colocado na “conta”, relacionada e justificada pelo incentivo à miscigenação. Achavam que iriam embranquecer a população brasileira à medida que o tempo passasse.
A miscigenação foi uma tentativa de apagamento do povo negro brasileiro. Não era pelo romance, pelo amor entre uma pessoa branca e uma negra. Houve aqui no Brasil uma
OP: Esse limite do limbo racial, do colorismo, é muito complexo.
Izabel Accioly: Muito. A raça é um conceito social. E vai mudar essa percepção social de acordo com a sociedade que você estiver. Então, não tem como por exemplo, dar um parecer sobre isso, porque vai mudar dependendo do contexto. Agora, tem uma coisa que eu sempre falo para os meus alunos: quer descobrir se é negro? Olhe se você já sofreu racismo, olhe para a sua trajetória. Infelizmente, não tem experiência de vida negra sem racismo, nem experiência de vida branca sem privilégio branco. É a sua experiência de vida que vai comunicar. Não é só o tom de pele.
OP: E muitas vezes quem já sofreu racismo não consegue identificar. Só percebe que já passou por isso quando ouve alguém contar algo semelhante.
Izabel Accioly: Por isso é tão importante aquilombar. Muitas vezes, eu só me reconheço quando encontro alguém parecida comigo, quando eu tô com o outro. Eu preciso do outro para entender um pouco de mim, mesmo que seja pela diferença. Um relato comum de pessoas brancas de classe média é dizer que ia nas Americanas roubar chocolate quando era criança. Se eu fizesse isso, minha mãe me matava. Crianças negras já nascem com 30 anos, não tem perdão. Ouvi uma aluna branca dizer que tinha receio de ler a teoria feminista negra porque é uma mulher branca. Aí é que precisa ler mesmo porque o seu povo nunca ouviu o que a gente tinha a dizer. Você pode conhecer muito do seu racismo, da sua branquitude, lendo esse tipo de teoria.
OP: A identificação ainda é uma questão para muita gente. Qual é a importância de discutir o colorismo e suas repercussões no Ceará?
Izabel Accioly: O Ceará é um contexto bem específico porque tem uma história de apagamento, inclusive dentro da própria universidade, né? Que apontava teses de que não existia negros no Estado. Na própria Universidade Federal do Ceará, durante muito tempo, existiam pessoas (pesquisadores) que afirmavam isso. Com o acesso de pessoas negras, vimos essa narrativa sendo desconstruída, essa falácia caindo por terra, inclusive com a pesquisa do professor Hilário Ferreira. Ele foi uma das pessoas responsáveis por provar que no Ceará existia pessoas negras, que houve a escravização no Estado, que nós não brotamos do chão, que a gente existe.
O apagamento não aparece só nas estatísticas de assassinato, que aparece também na negação da nossa existência ao longo da história do Estado. Também havia esse incentivo muito forte à miscigenação aqui no Estado. Por isso é muito comum que você encontre pessoas negras de pele mais clara. A pele mais clara de uma pessoa negra não está indicando uma vantagem social. Ela está indicando uma violência, uma tentativa de apagamento da identidade racial antes mesmo de nascer. Sinto que a discussão do colorismo cai num ressentimento.
O que eu gosto de apontar para os meus alunos é que a experiência de vida negra é diferente para todo mundo. Vai ter pontos específicos que a gente vai se encontrar, mas terão muitos pontos em que a gente vai se distanciar. Eu sou uma mulher negra, mãe solo, com deficiência. Eu tenho baixa visão. A minha experiência vai ser diferente de uma mulher negra que é da elite dessa Cidade, que é jovem e não tem filhos, mesmo com o mesmo tom de pele. A vivência da negritude também está marcada por questões de classe, de gênero, de capacidade, de faixa etária e vários outros marcadores.
A gente deve entender o colorismo como uma forma de entender as diferentes formas de viver a nossa negritude. Entender que pessoas negras de pele escura vão ser mais facilmente identificadas como pessoas negras e isso talvez faça com que a vida dela seja talvez muito mais marcada pelo racismo. A pessoa de pele clara vai sofrer talvez um racismo mais sutil, mas que é adoecedor. Não existe vida fácil sendo uma pessoa negra.
No livro Colorismo, Alessandra Devulsky vai dizer que o colorismo é um braço do racismo porque não estamos separando as pessoas brancas entre branco amarelado, branco rosado, branco pálido. Os brancos têm diferentes tons de pele entre si também. Mas a gente separa os negros entre pretos e pardos, o que não deveria acontecer.
OP: Por quê?
Izabel Accioly: Não é sobre acabar com os pardos. É o pertencimento que muitas pessoas têm, e elas não se sentem à vontade para se dizer preto. Mas eu acho, sim, que a gente deveria unificar essa categoria, num futuro, que o movimento negro poderia se movimentar em relação a isso. Deveria. Se eu acho que isso vai acontecer? Pelo menos enquanto eu estiver viva, acho que não. Ainda estamos capturados pela armadilha do colorismo, que é colocar a gente brigando entre si enquanto os brancos não têm dúvida nenhuma de que, por exemplo, eu sou negra.
OP: Sempre acho forte quando você fala que a trajetória de pessoas negras é marcada pelo racismo. Que diferenças você consegue enxergar entre o modo como a sua geração vivenciou essa descoberta e a geração do seu filho, partindo do princípio que você acompanha essa descoberta dele?
Izabel Accioly: A primeira vez que o meu filho sofreu racismo, ele tinha 7 anos, foi quando um menino branco filho de um estrangeiro disse que não iria brincar com o meu filho porque lá no país de onde o pai dele vinha “não tinha gente assim” e que ele “tinha medo”. No outro dia, fui à escola. Eu ainda não estudava o assunto. Mas entendi que, para educar o meu filho, eu tinha que alertá-lo desde muito cedo sobre algumas questões para ele poder se defender. Nessa época, a gente raspava o cabelo dele e com uns 8, 9 anos, ele pediu pra gente deixar o cabelo dele crescer. Desde então, apesar de ele estar passando pela adolescência, que é um momento mais sensível, ele gosta da pele dele, gosta do cabelo dele, coloca trança eventualmente.
Nunca saio de casa desarrumada. Não sou exatamente vaidosa, mas sou muito cuidadosa com a minha aparência. É como se a gente achasse que isso fosse fazer a gente não ser confundido, entende? Ou a gente tem a ilusão de que pode controlar a concepção dos outros sobre a gente. Então, ele é um adolescente que se cuida bem, tá sempre muito arrumado, muito cheiroso, é um menino muito educado. Sinto que entender que vai sofrer racismo faz com que ele tenha um cuidado redobrado sobre como as pessoas o enxergam. Ele sabe que é um garoto negro de pele clara, que os pais dele são pessoas negras. Ele sabe identificar quando essas coisas acontecem.
Entender-se negro é um processo, mesmo que você tenha sofrido racismo ao longo da vida. Eu só vim me entender como uma mulher negra quando meu filho já tinha nascido. Foi só depois de ter passado por violência obstétrica, por várias situações que me comunicaram que eu sou uma mulher negra. Depois de certo tempo, isso se torna empoderador. A consciência racial é libertadora. Pertencer a si mesmo, se entender como povo e se fortalecer é como a gente consegue alcançar a nossa verdadeira liberdade.
OP: Em junho deste ano, a Pnad Contínua apontou que a população que se autodeclara preta no Ceará mais que dobrou na última década. A taxa foi de 2,9% para 6,8% no período. A que você atribui essa mudança?
Izabel Accioly: Sinto que as pessoas negras estão deixando de ter vergonha de ser quem elas são. Ser negro não é um demérito. Quando comecei a afirmar que sou negra, uma pessoa querida da família falava: “Não diga isso de você, você é tão inteligente”. Como se eu tivesse me depreciando. É muito comum também quando vou dar uma palestra em alguma empresa e perguntam se “o certo é preto ou negro”. A pessoa acha que está ofendendo se chamar de preto ou de negro.
Estamos nos afirmando mais, positivamente. Sinto que isso tem acontecido por conta das ações afirmativas, também por conta das redes sociais, por incrível que pareça. Outro fator que acho que também foi muito importante e empoderou muita gente é a estética. Muita gente parou de alisar os cabelos e, quando parou, começou a pensar por que não gostava dessa característica. E começaram a se deparar com o racismo.
É muito comum que pessoas negras de cabelo crespo alisem o cabelo na tentativa de se embranquecer, de ser lido menos facilmente enquanto negro. Nesse sentido, o alisamento é uma forma de automutilação porque você quer arrancar algo que odeia em si mesmo. Eu posso falar, enquanto uma mulher negra que alisou cabelo por 12 anos, que alisar o cabelo não resolveu o meu problema. Eu sofri racismo do mesmo jeito. O racismo, além de ser uma estrutura que nos violenta fisicamente, também nos aliena. O racismo nos rouba a possibilidade da gente se amar.
OP: Por outro lado, negros ainda estão dez anos atrás dos brancos no ensino médio. Uma pesquisa do Todos Pela Educação, também a partir de dados da Pnad, aponta que enquanto 72,3% dos jovens pretos hoje estão no ensino médio, 73% dos brancos estavam matriculados em 2012 e 82,1% estão matriculados atualmente. Mesmo com a redução da desigualdade em uma década, por que ela ainda é tão preponderante?
Izabel Accioly: Porque infelizmente o racismo ainda estrutura a sociedade brasileira e concede acessos e privilégios a um grupo racial e a outro não.
A educação ainda é vista como um acessório pra gente, enquanto para pessoas brancas é visto como fundamental. Sinto que essa questão da educação passa pelo o que é o lugar do negro e o que é o lugar do branco, que o lugar da intelectualidade não é visto como o lugar da negritude também, o que é um estereótipo completamente racista e falso. Sinto também que o conhecimento que a gente produz não é valorizado.
Muitas vezes, no ensino médio, quando um adolescente negro apresenta uma dificuldade de aprendizado ou alguma questão que exige um apoio maior, ele não é visto como um ser que merece cuidado. Enquanto um adolescente branco que passa por isso muitas vezes é visto como alguém vulnerável que precisa ser acolhido. Crianças negras e crianças brancas não são tratadas da mesma forma. Uma criança negra em situação de rua, por exemplo, virou algo banal.
Sinto que essa defasagem vai impactar no ensino superior, no mercado de trabalho, vai impactar em último caso na ascensão social desse grupo. Negar às pessoas negras o direito da educação básica, é uma forma de estagnar essa população.
Aquilombamento e resistência negra, por Izabel Accioly
Público alvo: apenas pessoas negras.
30/09, sábado, das 14h30min às 17h30min
R$ 50 (para cada inscrição paga, será disponibilizada uma vaga gratuita para pessoa negra que não possa pagar)
Contato pelo e-mail mariaizabelaccioly@gmail.com
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