São quase quatro décadas desde que o fortalezense da Piedade, como já foi conhecido o bairro Joaquim Távora, Hilário Ferreira, descobriu a importância de se compreender e pertencer como parte de um povo fundamental na construção de um Brasil como conhecemos. De um episódio de racismo enquanto interpretava Barrabás em uma montagem de "A Paixão de Cristo", Hilário se tornou uma das principais referências na discussão racial no Ceará.
Professor e militante do movimento negro, Hilário Ferreira é graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da história e da cultura do povo negro no Estado, dedicação que rendeu três livros e uma série de textos em outras publicações. O professor de 56 anos ministra o curso "Morenização da população cearense: o lugar do pardo no Ceará", onde promove discussões raciais incisivas sobre o apagamento do povo negro no Ceará e suas repercussões.
Ao O POVO, o pesquisador debate, entre outras coisas, as repercussões do racismo e a possibilidade de reparação histórica para o povo negro, além de casos recentes como o do congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro. Para Hilário, o apagamento histórico é uma "competente estratégia do racismo", que leva até mesmo os negros do Ceará a não conhecerem a própria história.
O POVO - Professor, como foi a sua introdução no movimento negro?
Hilário Ferreira - A minha entrada no movimento negro ocorre em 1984 e o que me levou ao movimento negro foi justamente uma ação na qual eu participava onde sofri racismo. Eu participava de um grupo de jovens ali na Igreja da Piedade, e a gente tinha uma atuação muito espetacular porque a gente mexia com conhecimento, cultura, teatro, dança, fazia músicas. Tanto que a pessoa responsável pelo teatro era o Carri Costa, que hoje é diretor do Teatro da Praia. Fui convidado a fazer parte da peça A Paixão de Cristo. Eu relutei porque, ao assistir aos filmes sobre A Paixão de Cristo na época, nunca tinha visto negro. Fiquei receoso, mas me convenceram e fiz o papel de Barrabás. Quando entro na peça, a plateia começa a soltar “piadas”. Naquele momento, eu tive uma reação de compreender a ação daquelas pessoas que não tinham uma consciência política. Porém, quando terminou o espetáculo, as pessoas da peça, que estavam nos movimentos comigo, que liam muito e faziam debates sociológicos, começaram a reproduzir as mesmas “brincadeiras” da plateia. E aí, eu não aceitei. Dei um grito exigindo respeito. Dei um murro na porta e falei muita coisa.
Essa foi a minha entrada na consciência negra. No outro dia acordei leve, como se tivesse retirado das minhas costas todo um peso do racismo. A partir daí vou pensando nisso. Participei de uma formação sobre consciência crítica, quando se falou sobre consciência negra. Isso me despertou. A partir desse momento entrei no Grucon, a primeira entidade negra que surgiu aqui no Ceará (em 1982).
OP - Como o senhor enxerga as transformações do movimento nesses quase 40 anos?
Hilário Ferreira - Tenho como referência de movimento negro o Grucon. Você tem, a partir de 87, o surgimento de outras entidades. Porém, o Grucon foi praticamente a entidade que politizou o movimento negro no Ceará. Além de politizar, foi muito aguerrida. É tanto que o único processo contra racismo no Ceará é do Grucon. Esse processo foi até o Superior (Tribunal de Justiça) contra a prática de um colunista, que escreve que feijoada é coisa de preto e de índios, e chama os pretos de sub-raça. Nós politizamos no sentido de trazer o debate sobre classe e raça, não só essa compreensão do racismo como única forma em que se articula. Mas foi o Grucon que trouxe a pesquisa sobre a presença negra no Ceará. Então, vejo como avanço. Infelizmente, ao longo do tempo, o Grucon foi perdendo certa força. Às vezes, fico chateado pelo fato de esses outros movimentos que foram aparecendo silenciam sobre a presença do Grucon, mas a gente tá vivo.
OP - O senhor tem provocado uma discussão muito incisiva sobre o apagamento histórico do povo negro do Ceará a partir do curso “Morenização da população cearense”. Na sua avaliação, é possível reparar esse processo de apagamento?
Hilário Ferreira - Acredito que sim. O curso que ofereço nasce primeiramente por, em alguns momentos, ver o uso indevido do conceito de pardo e esse uso indevido sendo apropriado por brancos para utilizar as bancas de heteroidentificação e ocupar vagas (nas universidades). Ao invés de concorrer no concurso mais amplo, essas pessoas optam pelas cotas considerando que vai ser um caminho mais fácil. Aí, esbarram numa banca de pessoas especialistas que discutem e debatem sobre essa questão das relações raciais no Brasil. Então, quando se fala em reparações históricas, sim, tem que ter. Para se ter, é preciso que o movimento negro e os negros tomem consciência do que o Estado nos deve.
Eu sempre coloco a importância de pensar a história negra no Ceará. Ela vai servir como base para a cobrança disso. Ora, eu pesquisei no mestrado o tráfico interno. A venda de cativos negros cearenses para o Rio de Janeiro gerou ganhos para várias entidades, seja a Associação Comercial do Ceará, seja para o próprio governo provincial da época, que lucrou com impostos dos escravizados vendidos para o Rio de Janeiro. Chegou ao ponto de ser 7% da arrecadação da província.
Então, nós temos aí alguns dados que garantem um debate sobre essa questão da reparação. Sem falar que um dos grandes traficantes, que era o Joaquim da Cunha Freire, foi um dos grandes investidores no processo de modernização da cidade de Fortaleza. Foi um dos investidores da iluminação de Fortaleza, então esse dinheiro que ele tinha, o caixa dois, era justamente a partir, também, do tráfico interprovincial. Da venda de seres humanos para o Rio de Janeiro.
OP - De que forma que a gente consegue trabalhar para essa reparação histórica?
Hilário Ferreira - Primeiramente, temos que fazer com que os mais interessados tomem consciência da sua história. Vivo ainda num Estado onde a frase de que “não tem negro no Ceará” se naturaliza. Então, quando as pessoas olham para mim e olham para outras pessoas negras, como é o seu caso (do repórter), perguntam logo: “Você é de onde? Você não é daqui”. Então, houve todo um trabalho, aí usando uma questão que você coloca na pergunta anterior, de apagamento histórico e racial sobre nós, negros. Isso é muito usado ideológica e espertamente para dizer que não tem mais negro no Ceará. É preciso que a negrada se politize, se informe, para que a gente tenha consciência, e criar um documento e exigir isso. Ir pra rua, porque sem isso a gente não vai conseguir nada.
"Quando as pessoas olham para mim e olham para outras pessoas negras, como é o seu caso (do repórter), perguntam logo: 'Você é de onde? Você não é daqui'"Hilário Ferreira
OP - Há uma certa questão quando se fala em identificação, muita gente não sabe como se identificar, se como negro ou pardo. Qual é a importância de discutir o lugar do pardo no Ceará?
Hilário Ferreira - Primeiramente, a gente tem que entender que hoje o termo pardo se torna polêmico porque não há tradicionalmente no Brasil um debate sobre as relações raciais. O termo pardo, desde a sua origem, está intimamente ligado à pessoa de pele escura. Você percebe isso inicialmente na carta de Pero Vaz de Caminha "Escrivão português, famoso por ser o primeiro a descrever o Brasil em cartas, ainda em 1500" . Ele identifica os povos indígenas como pardos, cor parda. Aí, esses índios eram identificados pelos portugueses como "negros da terra". Posteriormente, a partir de 1872, com o primeiro censo nacional que se tem, o termo pardo passa a significar o negro liberto.
O significado de pardo muda de grupo social e racial, porém a cor continua ligada à pele escura. É a partir de uma mudança estratégica nos anos 1930 que o pardo passa a significar, não tanto quanto agora, o mestiço. Esse debate sobre o pardo que aparece nas cotas merece ser aprofundado porque quando se fala em pardos nas cotas, está sendo utilizada a classificação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Que é uma afirmação que tem a sua base histórica nos anos 70 e 80, no movimento negro e a partir da análise teórica do Carlos Hasenbalg, que é um sociólogo argentino que viveu aqui no Brasil. Ele, a partir de todo um processo de embranquecimento da sociedade brasileira, mostra que os negros, principalmente de pele mais clara, não se assumem como negro porque a referência de negro até hoje é sempre ligada a algo negativo. Ele começa a utilizar os dados do censo para entender a realidade brasileira, para compreender, por exemplo, a disparidade da educação, os salários. Isso naquele momento é extremamente inovador.
O Carlos Hasenbalg sempre participou de movimentos negros nacionais e regionais. Eu o conheci em 87 no Encontro de Negros do Norte e Nordeste, no Recife. Ao observar isso, o que ele faz a nível de metodologia, e nós, negros, também, a gente começa a colocar os negros que não se assumem na categoria de pardo. Por isso pretos e pardos é igual a negros.
OP - Esse lugar, essa classificação do pardo, não atrapalha de certa forma o movimento negro quando a gente fala em pessoas que não conseguem se identificar como negras porque tem sempre ali o lugar do pardo para elas entrarem?
Hilário Ferreira - Você está certíssimo. Entretanto, a gente precisa debater isso. Porque nós vivemos numa sociedade que nasce também sobre o signo das relações raciais. O Brasil nasce em 1822 (quando foi declarada independência). E quando o Brasil nasce é preciso que se crie uma ideia de nação e uma identidade nacional. A questão é: o que é ser brasileiro? Ao responder essa pergunta você precisa colocar questões raciais. O brasileiro é o encontro, não harmonioso, mas conflituoso, dos povos africanos, dos povos indígenas, com o português. Porém, no século XIX essa resposta era problemática. Porque o índio estava sendo exterminado, era considerado selvagem. O africano estava sendo escravizado, era considerado como um animal. Esses dois povos compõem o ser brasileiro. Foi construída uma visão sobre cada um deles, que o brasileiro herda, e eles fazem isso a partir de uma referência das teorias raciológicas extremamente racistas que trazem da Europa. Algumas delas já haviam sido refutadas na Europa. A inteligência brasileira racista sabia o que estava fazendo. O discurso é que do índio nós herdamos a preguiça, do negro nós herdamos a marginalidade e do branco herdamos o gosto pelo trabalho e pelo processo civilizatório. Isso é tão profundo na nossa cultura — que é estratégia do racismo —, tudo se naturaliza, que há três, quatro anos atrás, o vice-presidente Mourão, que tem traços indígenas, reproduziu esse discurso construído no século XIX por teorias racistas.
Temos que discutir essa diversidade de cores, porque em um país onde a maioria é negra, esse sistema tenta impedir que essa negritude tome consciência racial, que compreendam que a sua condição racial está ligada à condição de classe e social. Aí eu tenho que fazer um trabalho ideológico de construir um monte de cores. Porém, a cor branca é construída pra ser um símbolo do que é perfeito. E tudo aquilo que é imperfeito, é atribuído ao outro. Para o racista, o outro é o negro. E isso é um processo de racialização perverso. A quantidade de cores tem como objetivo evitar a reparação histórica. As pessoas reconhecem a violência do holocausto, mas não reconhecem a violência do tráfico atlântico. Recentemente, no podcast Flow, o cara (o streamer Monark) falou barbaridades racistas e não saiu. Mas mexeu com os judeus brancos, saiu. Os nossos são assassinados à bala. As “balas perdidas” sempre encontram os corpos negros e ninguém fala nada, mas quando é com branco falam alguma coisa. É preciso que a gente desperte que nós temos que cuidar dos nossos. O Estado não vai fazer.
OP - O senhor fala desse apagamento sendo ele institucional e intencional. Quais são as consequências dessa invisibilização?
Hilário Ferreira - Por exemplo, em 2011, teve um conflito com quilombos em Crateús. Foi feito um artigo em um jornal daquela região que tratava sobre esse conflito. O teor desse artigo é que em Crateús não teve escravidão, que o Ceará não tem negros e que aqueles negros são de fora. É um discurso que legitima a invasão das terras quilombolas pelos latifundiários brancos. Outra coisa é justamente apagar o item cor, dado importante da violência, seja de corpos negros, de mulheres. Pq aí teríamos dados da violência que ocorre no Ceará.
OP - No dia 24 de janeiro último, o congolês Moïse Kabagambe foi assassinado no Rio de Janeiro. Morte que só foi descoberta pela família no dia seguinte e mais cinco dias depois pela imprensa. Há muito do racismo estrutural em como essa morte ocorreu, dada a violência, e também de xenofobia, como denunciou a comunidade congolesa. Esse episódio pode ser visto como emblemático? O que ele representa hoje?
Hilário Ferreira - Penso que é preciso a gente entender que o caso do Moïse envolve todo um conjunto de situações, a consequência da reforma trabalhista e principalmente do racismo. O que acontece com o Moïse, se olharmos para trás, acontece com grande parte dos negros no Brasil. É só lembrarmos do Amarildo "Pedreiro que desapareceu após ação policial na favela da Rocinha, Rio de Janeiro, em 2013. Ele virou um símbolo do combate ao abuso de autoridade" . O problema é que a naturalização da violência contra os negros leva as pessoas a esquecerem. Quando você faz uma pesquisa, você vai ver que Moïse é mais um e é isso que torna revoltante.
Eu participei de uma reunião do movimento negro a nível nacional, e uma das coisas que era falada era que se a gente não denunciar isso, a imprensa não vai. É tanto que a imprensa oficial silenciou durante um tempo. Você tem a repercussão dessa brutalidade praticada diariamente pelo racismo sendo levada para os corações e as mentes das pessoas brasileiras através da imprensa, porém, ela só foi cobrir depois que houve toda uma pressão de denúncia nas redes sociais.
Outra coisa que deve ser analisada é porque ninguém viu a foto do dono do quiosque. Blindaram ele de uma forma que se não fossem as mídias alternativas ninguém sabia o nome dele, mas até hoje ninguém tem a foto dele. Algo que não acontece quando a gente vê aqueles programas policiais. Geralmente a imprensa que cobre chega e manda o policial levantar a cara (do suspeito) e filme ele. Nós não tivemos isso. E a gente começa a perceber, através dessa mídia investigativa alternativa que o cara é miliciano do mesmo batalhão do (Fabrício) Queiroz, daquele grupo de pessoas que está ligado a rachadinha, que é blindado porque o filho do presidente (Bolsonaro) também está envolvido com esse grupo de milicianos.
"O brasileiro é o encontro, não harmonioso, mas conflituoso, dos povos africanos, dos povos indígenas, com o português" Hilário Ferreira
OP - E estamos falando do povo negro, dos imigrantes, do trabalhador brasileiro. Isso repercute em muitos pontos sensíveis da nossa sociedade.
Hilário Ferreira - E tem outra coisa, Rubens. Eu penso que a morte, o assassinato do Moïse, tem muito a ver com nós do Ceará porque ele é do Congo. A identidade negro africana cearense é congolana. E você não vê essa relação nas falas de muitas pessoas aqui que fazem ações de solidariedade, mas não fazem essa relação. E aí que é importante a gente conhecer a nossa história. A nossa ancestralidade vem do Congo, e de Angola, o país do Moïse.
OP - De que forma essa brutalidade repercute para nós negros aqui no Ceará?
Hilário Ferreira - Estive num ato que ocorreu na Praça do Ferreira (no dia 5 de fevereiro último), os negros e negras estavam lá, os africanos, estudantes da Unilab estiveram lá, fizeram o ato. Foi importante. Eu penso como resultado da minha experiência no Grucon, que esse ano faz 42 anos, eu penso que a gente tem que parar de fazer manifestações aleatórias. É preciso que esses atos sejam propositivos no sentido de criar mecanismos de ação que levem a organização a, no mínimo, criar espaço de sociabilidade onde as negras e os negros se encontrem. Porque uma das grandes estratégias de racismo no Brasil, especialmente no Ceará, é nos separar. Você vê poucos espaços, a não ser os bares dos africanos, onde a negrada está lá presente. Muitas vezes esses bares são vistos como racistas, mas ninguém fala dos outros bares, onde há uma predominância branca, porque a branquitude se naturaliza. Essas situações nos revelam que nós estamos pela nossa conta.
No caso do Moïse, a polícia estava na frente e não fez nada enquanto o cara estava sendo espancado até a morte. Então, se a gente não cuidar dos nossos, quem vai cuidar? Porque a qualquer momento, um de nós pode ser uma vítima de uma violência como essa ou de outras. Rafael Braga foi preso porque estava com um vidro de pinho sol no momento errado, acusado de estar numa manifestação, pegou quatro anos de cadeia e desceu pro presídio. Pouco tempo antes, o filho do Eike Batista atropelou em alta velocidade um ciclista negro e não aconteceu nada. Você tem o sumiço do Amarildo. Quantos Amarildos existem por aí que não tiveram a sorte de ser divulgados pela imprensa? Tantos outros.
OP - E o racismo não escolhe. Ano passado tivemos o episódio da delegada que foi colocada pra fora da Zara, em Fortaleza. Havia ali da parte dela algum nível de privilégio, mas isso não a impediu de ser vítima do racismo.
Hilário Ferreira - Vejo que o racismo, de certa forma, cria uma certa ignorância entre as pessoas que o praticam porque, quando as pessoas nos discriminam, não esperam muitas vezes que a gente esteja fora do lugar que o racismo constrói pra gente. Que é um lugar de subserviência. Ao tratar de forma desrespeitosa aquela mulher que entrou na loja, não imaginaram que ela seria uma delegada. O racismo ao mesmo tempo que violenta nós, negros, violenta os brancos no sentido da patologia, porque os brancos se acham donos do espaço. Não esperam que, por exemplo, o Hilário seja formado em Ciências Sociais, tenha mestrado em História, tenha produções sobre negros no Ceará. O que eles veem quando olham pra gente, que é fruto desse imaginário ao longo da história, é um marginal em potencial. E aí eles entram em choque quando a gente reage.
E o mais interessante ao observarmos essa lógica do branco racista, é que quando a gente reage, ele entra num estágio de infantilidade. Ele se faz de vítima porque viu que foi pego. Há um gatilho de negação, porém, automaticamente, você vai ter um conjunto de pessoas no mesmo nível que vai blindar essa pessoa. É só observar o que aconteceu com a Lilia Schwarcz, com o Leonardo Boff. Ora, se vivemos numa sociedade culturalmente racista, essas pessoas podem em algum momento praticar o racismo. Não significa que elas sejam naturalmente racistas, mas pode haver o deslize.
OP - Há uma rede de apoio para os brancos que nos falta.
Hilário Ferreira - Exatamente. Por isso falei que um dos resultados dos atos precisa ser o de criar essas redes. A criação de uma rede de apoio, de sociabilidade. Penso que isso é feito a partir de espaços onde a gente se encontre, onde os pretos e pretas se encontrem.
OP - O senhor falou que o branco não espera que a gente reaja. O branco está sempre na figura do aprendizado, de que precisa ser ensinado. E o negro vira a figura do “negro raivoso”. São dois lados muito distantes.
Hilário Ferreira - Penso que aí são construções de defesa. O racista cria mecanismos de defesa porque ele não quer que a gente se mexa. Por que, hoje, o racismo no Brasil se intensifica? Por causa das políticas afirmativas. O racismo se torna mais violento por causa das políticas afirmativas, como a cota. Quando entrei no curso de Ciências Sociais, em 1987, na UFC, eu era o único negro na sala. Quando termino, tinha mais dois negros dentro do curso. A partir das cotas, espaços que antes eram naturalizados e privilegiados entre os brancos, passam a escurecer, como a Medicina e o Direito. Isso passa a incomodar e essa é uma patologia estratégica do racismo.
A branquitude é uma teoria extremamente importante. Se observamos, as reações do estado no Ocidente, é contra os que estão sendo oprimidos. Você não vê nos Estados Unidos ações para invadir a Ku Klux Klan, de assassinar um líder deles. Mas os Panteras Negras foram destruídos. As comunidades negras no Harlem e em outros lugares, jogaram drogas lá para a negrada se viciar e não se preocupar em consciência política racial. Malcolm X foi assassinado. E o assassinado de Martin Luther King revelou que não é porque o Malcolm era radical, é questão de extermínio.
Então, independentemente de qualquer coisa, é preciso ter esse olhar da história e essa análise do presente. Não estamos seguros. A gente precisa criar essa rede de proteção como eles (os brancos) fazem. E a gente tem o direito sim de ser raivoso porque eu nunca vi alguém chegar e dizer para a Polícia parar. Só vejo as pessoas pedindo para eu me acalmar diante de uma violência que mata os meus, diante de uma barbaridade que agride os meus não só adultos, mas mulheres e crianças. E eu tenho que guardar? Eu tenho o direito e vou ser raivoso.
OP - Existem muitas formas de o racismo acontecer. Há casos de pessoas espancados até a morte, de gente que é chamada de “macaco” ou uma pessoa pode simplesmente duvidar que você entrou numa universidade e hoje é mestre. Às vezes a gente nem percebe o racismo, de tão velado. Até nisso, o senhor acredita que há uma escala do privilégio?
Hilário Ferreira - Percebo isso como resultado desse racismo estrutural. O racismo tem um lugar pra gente que é negro. Quando a gente ousa sair deste lugar, incomoda eles. Lembrei há dois anos, aqui no Benfica, de um jovem negro que estudava nas Letras e estava na parada de ônibus e dois caras brancos armados abordaram ele por ele ser um homossexual negro. Ele só pediu pra não levarem a carteira de estudante. Um dos caras jogou a carteira de estudante no chão e disse: “Você deveria estar era catando lata”. Essa questão que você fala é uma clara manifestação do racismo.
As pessoas não esperam que eu seja cientista social, que eu conheça a História. Fui entrevistado uma vez aqui nos anos 90 e quando eu comecei a falar termos como teorias raciológicas e darwinismo social, o apresentador virou pra mim surpreso porque ele não esperava aquele tipo de linguagem. É racismo mesmo. Defendo que a gente crie estratégias para romper isso.
Tem uma geração nova que diz que a universidade adoece, mas nós temos que ocupar todos os espaços. Todos. Se a universidade adoece, vamos tomar remédio, fazer um tratamento coletivo pra negrada. Hoje temos psicólogos negros. Vamos trabalhar para não sair daqui (da academia). Tem que entrar na universidade, tem que fazer mestrado, tem que fazer doutorado, ocupar os cursos. Todos os cursos para que os nossos possam entrar. A gente vai ter que lutar para que as regras que beneficiam os brancos mudem.
"Eu tenho o direito e vou ser raivoso" Hilário Ferreira
OP - Me marcou muito uma frase da antropóloga Izabel Accioly, que diz que “não há experiência negra sem racismo”. Essa não deveria ser uma conta da branquitude?
Hilário Ferreira - Concordo com você. Agora, acho interessante a introdução dentro do debate de relações raciais no estudo sobre branquitude, isso coloca a branquitude em xeque-mate. Tira os brancos daquele lugar confortável. Quando eles iam falar sobre questões raciais, ou eram os índios ou eram nós. Hoje, a branquitude diz respeito ao lugar racial do branco. E pensar nisso é pensar em privilégio, pensar em poder. E isso incomoda. Porque você coloca o branco no espelho, ele se vê. Me ajudou muito o debate sobre esses estudos da branquitude a compreender alguns elementos que muitas vezes eu não conseguia aprofundar em relação aos estudos sobre o racismo. Não existe branquitude sem racismo porque o racismo é, vamos dizer, a teoria de poder, o sistema de poder que garante os privilégios da branquitude.
OP - Quando a gente fala em branquitude, a gente também fala em privilégios. Falar em privilégio é reconhecer que é branco, reconhecer a classe social, reconhecer onde estudou. Mas isso é suficiente nesse debate?
Hilário Ferreira - Não. É tanto que o Lourenço Cardoso, que é professor da Unilab, fala muito sobre essa questão da branquitude acrítica e crítica. E na branquitude, quando você observa, essa questão do pertencimento racial branco do privilégio é muito profunda. Então você vai encontrar pessoas com esse discurso, de que é “descolado, crítico”. Porém, em algum momento, ela usa o privilégio. Agora, penso que a gente tem que ter muito cuidado em relação a isso porque esses ditos brancos descolados, que se auto criticam, a gente tem que ver como é que eles se posicionam numa ação racista. Eu geralmente provoco esse debate.
Lembro da história do Steve Biko, liderança sul-africana, que nós conhecemos a história dele através de um branco, que era editor de um jornal na África do Sul, o Donald Woods. Ele é quem escreve tudo o que viveu com o Steve Biko. Ele se envolveu tanto com o Biko, que passou a ser tratado como negro pelo sistema do apartheid "Sistema de segregação racial vigente na África do Sul entre 1948 e 1994" . Esse eu considero um antirracista. Para mim, se quer ser antirracista, tem que entrar na violência do mesmo jeito. É não se calar em uma mesa de bar diante de uma “piadinha” sobre negro. É quando ver um negro sendo abordado de forma violenta pela polícia ir lá reclamar. Ter uma posição e apoiar o movimento. A família toda do Donald Woods sofreu. Ele foi ameaçado de morte e teve que sair da África do Sul depois que mataram o Steve Biko. Existe o filme chamado “Um Grito de Liberdade” que conta essa história. Aquilo sim é um branco antirracista.
OP - Vi a Djamila Ribeiro dizer uma vez que todo mundo sabe da existência do racismo, mas ninguém assume que é racista. Na sua visão, o que mudou nessa questão das pessoas se assumirem ou não racistas?
Hilário Ferreira - Ela reproduz esse discurso a partir de uma pesquisa da Escola Paulista de Sociologia e quem vai dizer isso pela primeira vez é o Florestan Fernandes. Não pega bem se assumir como racista, até o momento. Entretanto, estamos vivendo uma conjuntura onde um imbecil está lá, um sociopata, racista está tirando do esgoto e dando voz a essas figuras. Então, você começa a ver, em alguns momentos, gente aparecendo na internet (com esse discurso). Mas no Brasil isso ainda não existe explicitamente. Ainda existe uma certa hipocrisia. Quando um negro ou uma negra reage ao racismo e parte para cima do branco, ele se fecha em posição fetal. É nesse momento que chega a blindagem: “Não é assim, você está sendo radical”. A gente não vê o inverso, né? O inverso da violência a gente não consegue ver.
"(Ser antirracista) É não se calar em uma mesa de bar diante de uma 'piadinha' sobre negro. É quando ver um negro sendo abordado de forma violenta pela polícia ir lá reclamar. Ter uma posição e apoiar o movimento." Hilário Ferreira
O POVO - O quanto esses processos de apagamento influenciaram nossa história?
Hilário Ferreira - Infelizmente, de forma muito negativa. No Ceará, poucas pessoas ligam e conhecem a nossa história. Eu fico às vezes solitário, gritando, oferecendo cursos para despertar as pessoas. Você vê poucas pessoas interessadas nisso. O apagamento histórico, que é uma estratégia e um braço do racismo, no Ceará (foi) competentíssimo a ponto de fazer isso. Levar até mesmo os negros de movimento a não conhecerem a própria história no Ceará. Não conhecem lideranças, não desenvolvem pesquisa.
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Negros eram 77% das vítimas de homicídios no Brasil, em 2019, com uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência. Um negro tem 2,6 mais chances de ser assassinado que uma pessoa não negra.
Na juventude, Hilário Ferreira tinha o vinil Missa dos Quilombos, de Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra como uma das principais referências da cultura negra no Brasil: "Ouvia todos os dias". O álbum foi lançado em 1982, dois anos antes de Hilário entrar no movimento negro.
Hilário Ferreira é autor dos livros "Abolição no Ceará: um Novo Olhar" (2009), "Descobrindo e Construindo Redenção" e "Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê...": escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881), ambos lançados em 2011.