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Caldeirão: semente do cristianismo primitivo
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Historiador, pesquisador, escritor, editor do O POVO.Doc e ex-editor de Opinião do O POVO

Caldeirão: semente do cristianismo primitivo

Compreender a significância da comunidade do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, sua gênese e as maquinações que levaram ao seu fim, é essencial para termos a real dimensão dos históricos problemas sociais brasileiros e a participação do povo cearense, em especial, na região do Cariri
Tipo Análise
CRATO, CE, BRASIL, 22-04-2014: Igreja de Santo Inácio de Loyola, na localidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, onde viveu o beato José Lourenço e sua comunidade.  (Foto: Edimar Soares/O POVO)
Foto: Edimar Soares/O POVO CRATO, CE, BRASIL, 22-04-2014: Igreja de Santo Inácio de Loyola, na localidade de Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, onde viveu o beato José Lourenço e sua comunidade.

Nesta narrativa da História vamos acompanhar a trajetória do beato José Lourenço (José Lourenço Gomes da Silva), a partir da sua chegada ao Cariri em 1890 ou 1891, vindo da Paraíba atrás dos pais que chegaram em Juazeiro do Norte atraídos pelo misticismo do padre Cícero, o grande líder religioso e político.

Vale destacar que o final do século XIX e começo do século XX foram marcados por grandes secas no Nordeste, à época, em grande medida, uma região marcada pela concentração fundiária, abandono do Estado, pobreza e religiosidade.

Da afeição e amizade com padre Cícero veio a orientação para o beato José Lourenço arrendar o sítio Baixa Dantas, em 1894, situado no município do Crato. Trabalhador, religioso, bondoso, caridoso e líder natural, José Lourenço trabalha a agreste terra com ajuda dos romeiros que não conseguiam terra para trabalhar em condições decentes e daqueles encaminhados pelo próprio padre Cícero.

"A prática da coletividade, igualdade, devoção e religiosidade destacava-se na comunidade."

A prática da coletividade, igualdade, devoção e religiosidade destacava-se na comunidade, acrescente-se que o crescimento da produção começava a incomodar os proprietários rurais da região. Em 1926, o sítio Baixa Dantas é vendido, o novo proprietário exige a saída de José Lourenço e os demais romeiros, sem apoio jurídico e político não tiveram ressarcimento dos melhoramentos na terra. Padre Cícero resolve encaminhá-los à sua fazenda Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (ou Caldeirão dos Jesuítas). O nome caldeirão deriva de uma falha geológica do terreno.

O trabalho coletivo da comunidade em sistema de mutirão fez a terra prosperar, a cria de animais, produzia-se quase tudo que necessitavam, consolidando a todos pela forte religiosidade. Na visão moderna, vivia-se a práxis do cooperativismo. Nos dizeres de José Alves de Figueiredo, jornalista e dono de farmácia no Crato, amigo do beato José Lourenço: “Nada era de ninguém e tudo era de todos, dividido de acordo com a necessidade de cada um”. Para o historiador Régis Lopes, no Caldeirão "houve o desenvolvimento da utopia cristã no sentido radical. O beato pregava que todos eram iguais porque todos eram filhos de Deus". (O POVO, 28.09.2020).

Conteúdo Histórico - Beato José Lourenço.(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Conteúdo Histórico - Beato José Lourenço.

A organização e resultados da comunidade do Caldeirão incomodavam as oligarquias locais, a Igreja e parte dos políticos, fantasiavam transformar-se numa nova Canudos ou desembocar numa versão da Guerra do Contestado e poluir as relações servis, econômicas e políticas da região. A oportunidade surgiu com a morte do padre Cícero, em 1934, protetor do beato que não ousavam desafiar.

Junto aos padres salesianos, José Lourenço passa a pagar pelo usufruto do sítio. Em 1936, representante jurídico dos padres pede a reintegração da terra. O beato recusa-se a sair sem indenização pelos benefícios, a partir daí cresce a boataria contra ele. O historiador Airton de Farias lista algumas das acusações sofridas por José Lourenço: Comunista, fanático, explorador da fé popular, vendedor de remédios, bruxaria, cultuar o diabo e manter harém de 20 mulheres virgens.

Em 11 de setembro de 1936, policiais civis e militares invadem o Caldeirão expulsando os moradores, apreendendo os bens e incendiando as moradias, José Lourenço consegue escapar e passar a morar na mata. No início de 1937, autoridades retornam ao sítio após informes de reocupação. Este episódio gerou conflito entre a força policial e grupo de romeiros chefiados por Severino Tavares, resultando na morte do capitão José Bezerra e três praças e, do outro lado, cinco mortos.

"Não há números precisos, estima-se que em 11 de maio de 1937 morreram entre 400 e 1.000 romeiros. Do lado das forças oficiais, nenhuma morte no massacre do Caldeirão."

A reação do governo foi forte e impiedosa, o aparato da repressão contava com aviões e força federal disponível ao governador Menezes Pimentel pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. Não há números precisos, estima-se que em 11 de maio de 1937 morreram entre 400 e 1.000 romeiros. Do lado das forças oficiais, nenhuma morte no massacre do Caldeirão.

José Lourenço regressou ao Caldeirão em 1938, residindo por dois anos e depois expulso pelos salesianos. Passou a residir no sítio União, em Exu (Pernambuco), comprado com a indenização dos bens do Caldeirão, fundando nova comunidade, até sua morte em 1946, aos 74 anos.

Saiba mais

Na esfera acadêmica, o Caldeirão é tema de estudos que ajudam a aprofundar análises da vivência comunitária e seus desdobramentos. Dentre as publicações cabe destacar:

Domingos Sávio de Almeida Cordeiro, “Um beato líder – narrativas memoráveis do Caldeirão”;

Régis Lopes, "O massacre do Caldeirão – História oral do 11 de setembro de 1936”;

Rui Facó, “Cangaceiros e Fanáticos: gênese e lutas”;

Maria Isaura Pereira de Queiroz, “O messianismo no Brasil e no mundo”.

O cineasta Rosemberg Cariry, nos anos 1980, dirigiu o documentário “O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto”, disponível na íntegra no YouTube, outras produções destacáveis são: Fundação Demócrito Rocha, “Os Cearenses – Beato José Lourenço”; TV Assembleia, “Caldeirão do beato José Lourenço”.

Foto do Sérgio Falcão

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