Há quem caminhe por Fortaleza alheio ao cenário de conflito que a Capital enfrentou durante a Segunda Guerra Mundial. Mas os atentos podem encontrar sinais aqui e ali que dão pistas do passado: os bairros, as avenidas, os monumentos e as construções que comprovam a presença dos cearenses e brasileiros na maior batalha que o mundo já enfrentou.
Conheça os marcos da Segunda Guerra Mundial em Fortaleza e explore as histórias por trás deles. Para navegar, clique nos ícones do mapa e navegue livremente pelo material nos botões "Saiba mais". Ao rolar para baixo, um botão preto com seta para cima irá aparecer no canto inferior direito do seu navegador. Use-o para voltar ao mapa a qualquer momento.
Eles eram jovens, com pouco mais de 18 anos. Muitos ajudavam os pais no campo e nunca imaginariam lutar, de fato, em uma guerra. Mas quando o presidente-ditador Getúlio Vargas declarou, em 31 de agosto de 1942, a entrada oficial do Brasil na guerra contra o Eixo, tudo mudou. No País inteiro, homens se voluntariaram ou foram compulsoriamente convocados para a batalha.
Os pré-requisitos eram simples: pesar mais de 60 quilos (kg), ter altura mínima de 1,60 metro e ter pelo menos 26 dentes na boca. Assim, 25.834 homens e mulheres uniram-se à Força Expedicionária Brasileira (FEB) ― desses, entre 174 e 377 homens eram cearenses.
Em Fortaleza, os pracinhas treinaram no 23º Batalhão de Caçadores, construção de paredes e muros pintados de verde e branco localizada na avenida 13 de Maio, 1589. Após o treinamento, os soldados cearenses embarcavam para o Rio de Janeiro e, mais tarde, para a Itália. O primeiro escalão chegou em território italiano no dia 16 de julho de 1944. Lá, foram vitoriosos em tantas batalhas que recebiam elogios do escalão estadunidense (clique na foto para ler os comentários do general Mac Clark).
*Observação: texto transcrito com a mesma digitação da fonte original
Quartel General Aliado no Mediterrânio, 20 - (Por David Brown, correspondente especial da Reuters) - Em mensagem de louvor ás tropas brasileiras, o comandante do 3.º Exército, general Mac Clark expressou-se da seguinte maneira ao major general João Batista Mascarenhas de Morais: "As tropas sob vosso comando entraram em combate confiantes e avançam com determinação, ocupando sucesssivas posições de terrenos chaves.
"Não obstante as demolições e os campos de minas e outros obstáculos hostis, bem como a conservação pelo inimigo de elevações que permitiram um fogo direto de artilharia contra elas, vossas tropas marcharam resolutamente para a frente. Não somente a Força Expedicionária Brasileira iniciou-se no combate com recomendavel espírito, como já demonstrou habilidade em coordenar suas operações com as tropas adjacentes, revelando bom comando e satisfatórios conhecimentos da técnica de combate.
Dentro de poucas horas, depois de haverem se lançado ao ataque, capturavam uma cidade. Confio em que este é apenas o primeiro de muitos objetivos militares que passarão á lista dos capturados pela Força Expedicionária Brasileira".
No curso do seu avanço inicial, as tropas do Quinto Exército romperam a "Linha Gótica" numa frente de 9 quilómetros e cruzaram os Apeninos em vasta extenção, separando a Itália Central da Itália Nordeste, em posições que os alemães conservavam, detendo o avanço aliado por várias semanas.
Apesar do ineditismo em campo de batalha, os soldados cearenses já tinham sentido os efeitos da guerra no Brasil. Isso porque, em fevereiro de 1942, submarinos alemães e italianos iniciaram o torpedeamento contra navios mercantes brasileiros, em represália à adesão do País à Carta do Atlântico. No total, 21 submarinos da Alemanha e dois da Itália afundaram 36 navios do Brasil, resultando em 1.691 náufragos e 1.074 mortos. Alguns dos naufrágios ocorreram na área onde hoje fica o Porto do Pecém, que já tinha movimentação portuária.
A população brasileira ficou em polvorosa e, em Fortaleza, ocorreu o Quebra-quebra de 42.
A adesão do Brasil à guerra também reforçou a presença dos estadunidenses em território cearense. O Pici virou uma base militar: onde hoje está o complexo esportivo da Universidade Federal do Ceará (UFC), na época ancorou-se um enorme dirigível da U.S. Navy, usado para procurar submarinos na costa de Fortaleza. O Cocorote (atual Alto da Balança, onde antigamente era o Aeroporto Internacional Pinto Martins, antes de se mudar para a Serrinha), também era uma base aérea ianque.
Mas nem todos os espaços ocupados pelos estadunidenses eram destinados à guerra. No Estoril, localizado na Praia de Iracema, então chamada Praia do Peixe, os soldados estrangeiros divertiam-se com a juventude fortalezense. Em especial as mulheres, que aproveitavam para futurar paqueras e beber Coca-Cola.
No final das contas, elas foram apelidadas de Coca-Cola por serem uma das únicas da Cidade a provar o refrigerante então de difícil acesso, além de o nome ser uma marca “propriedade” dos norte-americanos. Já deu para entender as relações entre a bebida e o namoro, né?
O POVO, 19 de setembro de 1944
Oficiais do Ceará nos campos de batalha
"Hoje, todos nós pensamos no sacrifício de todos os que, nos campos de vários continentes, lutaram e lutam para que o conflito não mais comunique ao resto do mundo as labaredas do pavoroso incêndio. Mas, nós estamos, agora, com as vistas volvidas para os nossos próprios irmãos de sangue. Mães, pais, irmãos e parentes dedicam, alguns instantes, durante o dia, às preocupações do espírito com aqueles que são carne de sua carne e possuem nas veias o mesmo sangue.
Em cada Estado, neste momento, muitas famílias pensam nos seus membros que enfrentam o feroz e deshumano inimigo. Todos, porém, conscientizaram-se de que só lutando e matando "fritz", é possível vingar a afronta que sofremos com o torpedeamento de nossos inofensivos navios mercantes e com a ação deletéria do quinta-colunismo.”
Olha o que achamos: o caderno especial Memórias da Guerra, publicado no O POVO em 2009
A chegada da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália foi recheada de estratagemas e vitórias. Tantas que as homenagens às forças brasileiras em Fortaleza precisaram ser transformadas em nomes de bairros e avenidas. Uma delas é a Avenida dos Expedicionários, um tributo aos soldados enviados para o campo de batalha.
O escudo que os representava era um octógono de bordas vermelhas e fundo amarelo, com uma cobra verde fumando um cachimbo. No topo, em fundo azul, estava a palavra “Brasil”.
A ideia da insígnia veio de uma fala do presidente-ditador Getúlio Vargas, que afirmou ser mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. Até o ataque aos navios mercantes brasileiros, Vargas manteve-se neutro no conflito por ter parcerias econômicas tanto com os Aliados, quanto com o Eixo.
Presidente Getúlio Vargas visita soldados da FEB durante embarque para a Itália
Distintivo da Força Expedicionária Brasileira (FEB)
Chegada de aviadores da Força Aérea Brasileira que participaram da FEB, 1945. O distintivo da FAB mostra uma ema com uma arma e a frase: "Senta a puá!".
A FEB venceu muitas batalhas importantes em território italiano, dominado pelos soldados do Eixo. Uma das mais marcantes é a Batalha de Montese, um município da Itália que depois serviu de nome para o bairro Montese, em Fortaleza.
O combate ocorreu entre 14 e 17 de abril de 1945. Do lado Aliado, a 1.ª Divisão de Infantaria Expedicionária Brasileira (1ª DIE) e o reforço de tanques da 1.ª Divisão Blindada Americana. Do lado do Eixo, o 14.º Exército do Grupo de Exércitos C da Wehrmacht. Apesar da vitória, o Brasil teve 430 baixas, entre feridos, desaparecidos e soldados aprisionados. Desse número, foram 34 mortos.
Outra luta que deu nome a bairro em Fortaleza foi a de Monte Castello, também um município italiano. Ela durou três meses, de 24 de novembro de 1944 até o dia da derrota alemã, em 21 de fevereiro de 1945.
Um roteiro do Ministério da Guerra publicado em janeiro de 1945 dá conta de que, entre o dia 6 de setembro de 1944 e 2 de maio de 1945, o Brasil registrou 451 mortos (13 oficiais, 430 praças e 8 oficiais da FAB), 1.577 feridos em combate e 1.145 acidentados ― destes, 487 em combate.
Já o número de prisioneiros de guerra foi 20.573. A maioria pracinhas (19.679), seguidos de 892 oficiais e dois generais. Os efetivos brasileiros totalizaram 25.334.
Entre os mortos da guerra, seis eram cearenses. Um deles o sargento Hermínio Aurélio Sampaio, crateuense que faleceu na batalha de Monte Castelo e que depois foi homenageado com o batismo da avenida Sgt. Hermínio Sampaio.
É de se pensar que, após tantas batalhas bem-sucedidas e a então vitória mundial dos Aliados teria motivado a construção do Obelisco da Vitória, na Praça Clóvis Beviláqua. No entanto, o obelisco de seis metros foi idealizado ainda em 1942, quando o Brasil sequer tinha chegado à Itália para a guerra.
O monumento foi concebido por comerciantes e intelectuais, entre eles os estudantes da Faculdade de Direito da UFC. Foi inaugurado em 1943, em homenagem aos combatentes brasileiros. No final das contas, o Obelisco da Vitória (ou do Ceará, como também é chamado) profetizou o êxito aliado.
*Observação 1: texto transcrito tal qual o original.
*Observação 2: Boche é uma palavra pejorativa usada para se referir aos alemães. A palavra foi internacionalizada ainda na Primeira Guerra Mundial.
COM A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA NA FRENTE ITALIANA, 2 ― (Do enviado especial da Agência Nacional) ― As tropas brasileiras acabam de desalojar definitivamente os alemães de Monteplano, posição-chave do sistema defensivo nazista, no setor de Camalore. A tomada dessa importante posição foi conseguida á custa de lances verdadeiramente heroicos, em que se foi posta á prova a capacidade combativa da nossa tropa. Os soldados brasileiros viram-se obrigados a escalar enormes alturas, a-fim-de dominar o que depois conquistaram.
A primeira patrulha de reconhecimento de um pelotão comandado por um primeiro-tenente aproximou-se, ao anoitecer, de Monteplano, passando toda a noite tão perto das linhas nazistas que se escutavam as vozes do Inimigo. A névoa impedia qualquer reconhecimento. Ao amanhecer, a tarefa foi cumprida, tendo sido disparadas algumas rajadas de metralhadoras, após o que a patrulha regressou com as informações colhidas. As providências necessárias foram tomadas e a posição que constituía o objetivo de nossos soldados foi capturada dois dias depois.
As instalações deixadas pelos nazistas e que os brasileiros encontraram mostram que a posição estava destinada a manter prolongada resistência. Os alemães abandonaram copioso material bélico, metralhadoras, munições e perfuratrizes, com as quais cavavam os seus abrigos na rocha. O local era de tal maneira inacessível que os alemães se viram obrigados a construir muito perto o seu cemitério.
Durante a campanha registrou-se um fato verdadeiramente interessante. Um soldado bahiano da Sétima Companhia, adiantando-se da patrulha, caiu prisioneiro dos alemães. Conduzido á retarguarda, a-fim-de ser interrogado percebeu que apenas dois nazistas o escoltavam. Dentro da perneira trazia uma pequena faca e utilizou-a, em dado momento, investindo contra os seus guardas. Um deles fugiu, abandonando a arma, enquanto o outro se entregou, sendo trazido prisioneiro através das montanhas até um posto da nossa força, onde o soldado brasileiro se apresentou, relatando o ocorrido e entregando o nazista feito prisioneiro.
O soldado bahiano assim comentou a sua proeza:
― "Major, isso é a raça superior? Esse boche, quando viu a faca brilhar em minhas mãos, ajoelhou-se a meus pés, pedindo para que não o matasse".
A reação dos fortalezenses aos naufrágios dos navios mercantes brasileiros foi intensa. Rezaram em missa pelos mortos no domingo 16 de agosto de 1942, na Igreja do Patrocínio, na Praça José de Alencar, mas foi no dia 18 de agosto que o caos se instalou.
Revoltosos, assim como muitos outros pelo País, os cearenses foram às ruas exigir a entrada do Brasil na guerra e protestar contra o “quinta-colunismo” ― os quinta-colunistas eram os simpatizantes do nazismo. Aos montes, marcharam pelo Centro e começaram a atacar, depredar e saquear as lojas de estrangeiros alemães, italianos e japoneses, que já viviam há anos na Capital
Incendiaram as lojas Pernambucanas, da família Lundgren que, depois, publicaria nos jornais cearenses a árvore genealógica para comprovar que eram descendentes de um sueco. Depredaram o Café Íris, propriedade do italiano Francisco Orlando Laprovítera; os armazéns do italiano Alexandre Papaleo; a loja A Formosa Cearense, a Tinturaria Italiana, a Tinturaria Modelo e a Casa de Confecções 3 Oitos, todas da família italiana Marino; a Casa Cunto, propriedade dos irmãos Cunto; o Jardim Japonês, da família Fujita; e a loja A Cruzeiro, de brasileiros.
Outra propriedade atacada foi a Fábrica Italiana, do espanhol Rudezindo Nocelo Feijó; e a Padaria Italiana, da família italiana Rattacaso, cuja casa, situada em cima da Fábrica Italiana, também sofreu tentativa de ataque. Leia ao clicar na imagem abaixo a narração do causo por Jáder Santana, autor do livro biográfico Thomaz Pompeu, da Edições Demócrito Rocha (EDR).
“Nisso, no meio da multidão, ouve-se um grito: Estão quebrando a padaria do espanhol”, foi assim que Thomaz Pompeu mais tarde explicaria o início do quebra-quebra, por volta das 11 horas da manhã daquele dia. Qualquer estabelecimento comercial que pudesse ser, de algum modo, ligado aos países do Eixo, seria alvo de ataque. O jovem fotógrafo, que havia levado a câmera com o objetivo de fotografar a missa, percebeu que algo maior estava para acontecer.
Apesar de o quebra-quebra ter surgido de um desejo de justiça, e ser visto por muitos como ato justificado, a verdade é que a revolta traumatizou as famílias atacadas. A dissertação de mestrado do historiador Carlos Renato Araújo Freire, “O quebra-quebra de 1942: um dia para lembrar”, traz vários relatos do ponto de vista das famílias estrangeiras prejudicadas.
A família de Jusaku Fujita, o primeiro imigrante japonês a chegar ao Ceará (em 1923) ficou sabendo do ataque à Pernambucana e teve tempo de fugir. O relato do filho João Batista, na época uma criança, dá conta de que todos correram com as roupas do corpo, enquanto as crianças que dormiam foram envolvidas nos mesmos lençóis da cama e carregadas. As economias foram deixadas no Jardim Japonês, onde hoje está o Mercado São Sebastião, construído pelo próprio Fujita para venda de flores e hortifruti.
“Não demorou muito, chegou o Sr. Cleuson Ladislau [...] trazendo a triste notícia de que tinham depredado, quebrado, saqueado, a nossa casa, a horta e o jardim. Foram momentos de desespero, muita dor, muito choro, ao vermos tudo o que tínhamos reduzido a um montão de lixo. O papai chorava ao se encontrar com uma família, esposa e sete filhos”, contou João Batista para Stênio Azevedo e Geraldo Nobre, autores do livro O Ceará na Segunda Grande Guerra.
Demorou muito para a família reconstituir-se. O Jardim Japonês só seria levantado novamente em 2011, na avenida Beira Mar, em homenagem ao centenário da imigração japonesa, em parceria entre a empresa Fujita Engenharia e a Prefeitura de Fortaleza. Hoje o ambiente está abandonado.
Outro caso triste é o de José Cunto, co-proprietário da Casa Cunto. No momento do ataque, ele estava na maternidade com a esposa, que dava a luz ao primeiro filho do casal. A casa “foi totalmente destroçada”, causando um prejuízo de oito milhões de cruzeiros, dívida assumida pelo Estado, mas nunca paga.
A pesquisa para o especial envolveu a leitura de 113 reportagens publicadas no jornal O POVO durante a Segunda Guerra Mundial, além de livros e pesquisas em História.
Textos
Catalina Leite
Edição O POVO Mais
Fátima Sudário e Regina Ribeiro
Front-End
Pedro Silva e Alexandre Cajazeira
Design
Cristiane Frota
Pesquisa histórica
Roberto Araújo/O POVODoc
Recursos digitais
Alexandre Cajazeira e Catalina Leite