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Fernanda Campagnucci: "É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar"
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Fernanda Campagnucci: "É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar"

Diretor-executiva da Open Knowledge Brasil, a jornalista especialista em transparência e dados analisa a qualidade de informações em casos como o apagão de dados da Covid e a retirada de microdados do Enem
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Fernanda Campagnucci, jornalista, mestre em Educação e doutoranda em Administração Pública e Governo, é diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR) (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Fernanda Campagnucci, jornalista, mestre em Educação e doutoranda em Administração Pública e Governo, é diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR)

Jornalista, mestre em Educação e doutoranda em Administração Pública e Governo, Fernanda Campagnucci trabalha há mais de dez anos com transparência e dados. Diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR) desde 2019, ela já atuou em organização da área de Educação, envolveu-se nas discussões acerca da importância da Lei de Acesso à Informação (LAI) — que completou 10 anos em 2021 — e foi responsável pela política municipal de transparência, abertura de dados e integridade na Controladoria Geral do Município de São Paulo.

Ao O POVO, Fernanda fala sobre as mudanças no cenário nacional quanto à abertura de dados; a importância do acesso a dados confiáveis; além dos riscos e dos benefícios do processo de abertura de dados. A jornalista comenta ainda sobre o Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19) e a retirada dos microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Censo Escolar.

O POVO - Há quanto tempo você trabalha com dados e transparência?

Fernanda Campagnucci - Já tem mais de dez anos, desde a graduação. Eu fiz Jornalismo, originalmente, e já comecei a trabalhar nessa perspectiva do jornalismo de dados. Depois fui me envolvendo nas discussões da necessidade de aprovação de uma Lei de Acesso à Informação (LAI), que aconteceu em 2011. Eu atuava em uma organização de Educação, então também fazia essa discussão sobre a necessidade de avançar nas políticas de abertura de dados da Educação. E já participávamos dessas discussões de governo aberto, para pautar compromisso do Governo Federal nessa agenda.

Em 2013, tive minha primeira experiência do lado de dentro da gestão pública, fui para a então recém-instituída Controladoria Geral do Município de São Paulo. Era um órgão novo, então a área de política de dados abertos tinha que ser criada do zero, e a minha função inicialmente era articular com a sociedade civil, promover o fomento ao uso desses dados. Depois, passei a assumir essa área de coordenar mesmo a política de transparência do município. Depois de uma experiência de seis anos no setor público, atuando em outros projetos também na área de Educação, voltei para a sociedade civil e assumi a diretoria da Open Knowledge Brasil (OKBR) em 2019. Desde então, tenho atuado de forma mais ampla no tema dos dados no Brasil, nos entes e nessa interface da transparência e da privacidade.

OP - Desde então, que mudanças tem percebido no cenário nacional em relação à transparência e à abertura de dados?

Fernanda - Não é um movimento linear de avanços. Acho que tem momentos de avanços e de retrocessos. Mas, de forma geral, a Lei de Acesso à Informação trouxe um arcabouço mais sólido para podermos cobrar e demandar políticas de transparência. Ela ainda tem algumas lacunas, mas avançou ao estabelecer alguns procedimentos para responder pedidos de acesso à informação. Apesar de o direito de acessar a informação já existir, não existiam esses procedimentos, esses prazos, os responsáveis. Acho que a lei avançou em criar essa cultura de que é preciso fornecer informação, de que a informação é do público.

Boa parte dos servidores tiveram dificuldade de compreender esses "novos tempos", mas acho que muito rapidamente foi incorporado, e isso é totalmente compatível com a função pública. Acho que as pessoas aos poucos foram entendendo melhor o objetivo da lei e implementando. (Por outro lado,) A lei ajuda muito pouco a avançar na transparência ativa. Ela tem um artigo específico, traz alguns parâmetros do que deve ser divulgado, mas tem uma infinidade, um mar de dados sobre as políticas públicas que fica colocado de forma genérica. Nós não temos alguns instrumentos que nos ajudariam a avançar.

O POVO - Que tipos de instrumentos?

Fernanda - Como catálogos de dados abertos, que todos os órgãos públicos tivessem, de forma muito transparente, quais bases de dados eles têm. Não necessariamente eles vão conseguir abrir tudo, mas o público tem o direito de saber que esses dados existem. Com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), isso ficou ainda mais evidente. A própria LGPD diz que, para você poder mapear os riscos, você precisa conhecer as suas bases, você tem que mapear. Então, catálogo, com política de dados abertos, com plano de dados abertos para cada órgão público. O Governo Federal tem um decreto específico para isso, mas só atinge os órgãos federais. A LAI não traz essa mesma previsão para os demais entes, e isso faz muita falta. De uma forma geral, avançamos, mas ainda precisamos avançar muito mais na governança dos dados, tanto para poder proteger esses dados — evitar vazamento, evitar ciberataques — quanto para dar transparência e abrir aquilo que a sociedade precisa.

O POVO - Qual a importância do acesso a dados confiáveis, seja para o gestor ou para a sociedade em geral?

Fernanda - Temos diversos benefícios da abertura de dados, que vão desde a melhoria do planejamento e da provisão de serviços públicos, de políticas públicas, porque os órgãos públicos têm muita dificuldade de conversar entre si. Temos uma estrutura federativa muito complexa, e às vezes, no mesmo território, temos Governo Federal, estado e município fazendo coisas em direções opostas. Quando os dados estão usando padrões abertos fica mais fácil de fazer essas políticas conversarem. A sociedade, jornalistas, pesquisadores podem avaliar as políticas. O estado não tem condição, braços e olhos, para fiscalizar toda a política pública, é uma capacidade limitada. O fato de estar aberto ajuda o governo a ter mais olhos para manter a coisa pública e as políticas. No caso de doadores de campanha, por exemplo, que é uma base que está em discussão no TSE, se fecha ou não, apontamos que seria muito danoso para a democracia não ter esses dados. Um argumento que surge internamente é que os dados vão continuar indo para os órgãos de controle, mas eles não têm braço suficiente para olhar candidaturas do Brasil inteiro. Então, o jornalismo local, as organizações que atuam no local conseguem contrapor a realidade delas com aquilo que está nas bases de dados. É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar. E estamos em uma economia digital que tem como matéria prima o dado. As próprias empresas, startups, que queiram fazer produtos digitais com dados públicos geram valor para a sociedade, geram produto, geram facilidade. Elas fazem a economia girar também. Fora o próprio cumprimento de um direito constitucional. Quando você tem dados e informações, você consegue exercer plenamente a sua cidadania, participar das decisões políticas.

O POVO - Quais são os riscos de os dados não serem atualizados e claros?

Fernanda - Temos que encarar a publicação de dados como uma política pública. E toda política pública é incremental, ela começa de um jeito e vai sendo aprimorada com o tempo. (Com) a política de transparência é a mesma coisa. Temos mesmo diversos riscos associados à publicação de dados. Tem o risco de o dado ter uma qualidade ruim, e de as pessoas interpretarem errado por causa dessa qualidade ruim; tem o risco de o dado estar errado mesmo, de ter sido produzido errado ou coletado errado; tem um risco de confiança porque, se o dado estiver errado, você pode provocar uma crise confiança; tem o problema de, se você não tomar os cuidados devidos, identificar pessoas que não deveriam ser identificadas, você violar a privacidade e colocar pessoas em risco, (expor) pessoas a condições vexatórias. Então, o risco nunca vai ser zero, mas temos que trabalhar para atenuar ou eliminar esses riscos. Problemas de qualidade vão sempre existir, então a transparência acaba ajudando a corrigi-los. A partir do momento que um jornalista, um cidadão percebe um problema nos dados, tem que ter um canal de diálogo com aquele órgão que está publicando os dados para poder dar feedback dos erros, dos problemas, e isso ser corrigido. Isso é a quantidade de olhos ajudando a melhorar.

O POVO - Com a Covid-19, a Open Knowledge Brasil (OKBR) criou o Índice de Transparência para avaliar a qualidade dos dados e informações sobre o cenário da pandemia nos estados e municípios. Essa experiência resultou inclusive em um livro digital lançado em novembro de 2021. Como avalia os avanços e as dificuldades na abertura de dados de saúde ao longo desses dois anos?

Fernanda - Ninguém estava preparado, nenhum órgão do Brasil e acho que nem do mundo, estava preparado para divulgar diariamente esse volume de dados com tanto detalhamento. Então, é normal que vai dar problema. Mas o problema é não mapear o que está acontecendo, não identificar os problemas e não corrigir. (Nossa equipe) tinha que coletar mais de trinta indicadores para cada município e cada estado e Governo Federal. Além disso, cada município às vezes tinha quatro páginas em que divulgava as coisas — secretarias diferentes divulgando dados diferentes. Isso também dificultou muito não só o nosso trabalho, mas o de qualquer pessoa que queria acompanhar a pandemia naquele lugar. Essa falta de unidade vem dessa ausência de governança dos dados. Você tem órgãos caminhando de forma diferente dentro de um mesmo governo, e os dados ficam diferentes também. Isso ficou claro durante a pandemia, e ficou claro também que os governos podem avançar muito rápido se tiver uma junção de fatores: vontade política, incentivo político da autoridade máxima daquele órgão de sinalizar que transparência é importante; parâmetros objetivos do que é uma política de transparência e acompanhamento da imprensa, que colocou na agenda pública a necessidade de transparência. Então, você cria esse ciclo vicioso de melhoria. Para fechar o ciclo, os pesquisadores e os próprios jornalistas, que usaram esses dados e ajudaram a melhorar a qualidade deles.

O POVO - Quais os principais problemas enfrentados em relação aos bancos de dados disponíveis — não só em relação à pandemia?

Fernanda - Temos problemas de ordem técnica e de ordem política. Mas, uma vez que existe a vontade política, a publicação pode acontecer com a capacidade que o órgão tem. Os principais problemas de qualidade que costumam acontecer nas bases de dados são a falta de documentação — não ter contexto sobre a base e explicações básicas sobre o que cada variável significa —, questões técnicas de formato — os dados não estão no melhor formato para serem consumidos —, há problemas de completude — às vezes o gestor decide agregar os dados em uma unidade muito grande, por exemplo, por estado ao invés de agregar por município. Um ponto muito importante que foi da pandemia, mas também (ocorre) em outras bases, é que temos indicadores essenciais para compreender a desigualdade que não são bem preenchidos, não tem um cuidado na ponta, orientação, para preencher dados, por exemplo, de raça/cor e etnias indígenas. O dado pode até estar preenchido no sistema, mas, na ponta, a pessoa acha que ninguém vai fazer nada com aquilo, coloca qualquer coisa. Isso é ruim porque acabamos perdendo a precisão e a confiabilidade neles.

O POVO - Recentemente, o Inep omitiu informações dos microdados do Enem e suprimiu bases do Censo da Educação Básica, justificando que estava atendendo às exigências previstas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Qual o possível impacto dessas mudanças para esse cenário da transparência das informações públicas?

Fernanda - O Inep, ao tomar essa decisão precipitada, passou uma mensagem muito ruim para todos os entes públicos que pode até gerar um efeito cascata, de que a LGPD, por si, já impediria de publicar qualquer coisa que tivesse risco de reidentificação. É uma base de dados disponível há muitos anos. Esse risco já estava colocado, então o que deveria ser feito era uma consulta pública e técnica muito mais aberta e plural sobre esse problema, porque que o Inep fez foi contratar um estudo de um grupo de cientistas da Computação que olharam a coisa puramente do ponto de vista da segurança e não consideraram todos os outros aspectos dessa questão. O aspecto dos usos, dos benefícios que esses dados abertos trazem, e que já eram anonimizados, não estavam expondo as pessoas diretamente. Então, acho que passa uma mensagem ruim, não só para a área de Educação, mas para outras áreas também, de que é possível retroceder em uma política tão consolidada como essa de abertura de dados, e tão referência no País e fora. Imagina limitar (todo) esse tipo de experiência de uso, até pedagógico, de uma base de dados a uma sala de sigilo, que é uma outra política, para dar acesso, aí sim, a dados pessoais para um conjunto super restrito de pesquisadores que têm que comprovar vínculo com universidade, aprovar um projeto de pesquisa. É uma situação super complicada e que precisa existir para garantir acesso seguro a dados pessoais, mas que não tem nada ver com política de dados abertos. São coisas que não substituem uma à outra.

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