Durante quatro semanas, justamente no começo da transmissão da variante Ômicron no Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) precisou divulgar edições do Boletim Observatório Covid-19 apenas com dados parciais. Isso porque ataque aos sistemas do Ministério da Saúde (MS) em 10 de dezembro de 2021 provocou apagão de dados, o que prejudicou a análise do cenário epidemiológico da pandemia no País e a tomada de decisões por parte de gestores.
Desde o início, a pandemia de Covid-19 ilustrou diversos problemas já existentes na sociedade brasileira. Nesse caso, ela também expôs a falta que dados e informações fazem em um momento de emergência sanitária — mas não só nesse contexto. O ataque à infraestrutura do MS ocorreu em "momento crucial de reversão de tendência", define o gerente de Inovação e TI e coordenador na Rede Análise, Isaac Schrarstzhaupt.
Naquele mês, os diagnósticos de Covid-19 estavam em queda, mas a Ômicron já tinha desembarcado no País e logo mais causaria explosão de casos, como ocorreu em outros países onde ela tornou-se predominante.
"Ele (o apagão) não nos deixou ver essa reversão em tempo real, e pode ter contribuído para esse número mais alto de mortes que estamos vendo pelo fato de que decisões podem não ter sido tomadas a tempo", pontua Schrarstzhaupt. O geógrafo e sanitarista Christovam Barcellos lembra que, além do apagão, a onda da Ômicron começou ao mesmo tempo em que ocorria uma epidemia de Influenza.
Para explicar como percebe a importância de se ter dados para tomar decisões, Schrarstzhaupt faz uma analogia com uma viagem de carro do Ceará ao Rio Grande do Sul, mas sem velocímetro e medidor de combustível adequados ou o conhecimento da quantidade de postos de gasolina pelo caminho.
"O apagão de dados pode ter contribuído para esse número mais alto de mortes que estamos vendo pelo fato de que decisões podem não ter sido tomadas a tempo"Isaac Schrarstzhaupt
"Qual a chance de nossa viagem dar errado ou de termos 'imprevistos' no caminho?", questiona, explicando que esses "imprevistos" ocorreriam "muito mais pela falta de dados do que (por) realmente serem imprevistos". "Os dados — e a correta interpretação dos mesmos — são a principal ferramenta do tomador de decisão", afirma o coordenador da Rede Análise.
A criação de diferentes sistemas de informação e de formulários "que as pessoas não conseguem preencher", além do atraso na digitação dos dados, são alguns dos problemas que, segundo Christovam Barcellos, têm ocorrido durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. O resultado, de acordo com ele, é que essas questões não permitem uma tomada de decisão adequada.
Pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz (Lis/Icict/Fiocruz), com atuação na plataforma MonitoraCovid-19 e na publicação do Boletim Observatório Covid-19, Barcellos acrescenta que "os dados não bastam". É preciso que o País invista em Ciência para a formação de profissionais que vão trabalhar com essas informações.
"É preciso análise de dados permanente, e o Brasil tem muitos sociólogos, geógrafos e epidemiologistas para trabalhar com esses dados. É preciso reforçar as instituições nacionais, senão vamos ficar dependendo o tempo todo da opinião dos outros, de estrangeiros", afirma o pesquisador.
Além de gestores públicos, toda a sociedade pode ser beneficiada pela abertura de dados, aponta Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR). Pesquisadores e jornalistas, por exemplo, podem ajudar a aumentar a capacidade de fiscalização de políticas públicas, uma vez que "o Estado não tem condição, braços e olhos" suficientes. "É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar", aponta.
Em uma economia digital, empresas que criam produtos com dados públicos também geram valor para a sociedade e fazem a economia girar, acrescenta a diretora-executiva da OKBR. "Fora o próprio cumprimento de um direito constitucional", afirma a diretora-executiva. "Perdendo a informação, perdemos um pouco da cidadania", complementa Barcellos.
"É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar"Fernanda Campagnucci
Campagnucci acrescenta que há riscos associados à política de publicação de dados, mas que se deve trabalhar para atenuá-los ou eliminá-los. Entre essas delicadezas estão o de baixa qualidade dos dados — que pode levar a uma interpretação errada dos mesmos —; de a estatística ter sido produzido ou coletada de forma errada; de esse erro gerar uma crise de confiança e de violação de privacidade. Problemas de qualidade, segundo a diretora da OKBR, "vão sempre existir", e a transparência ajuda a corrigí-los.
"A partir do momento que um jornalista, um cidadão, percebe um problema nos dados, tem que ter um canal de diálogo com aquele órgão que está publicando os dados para poder dar feedback dos erros, dos problemas, e isso ser corrigido. Isso é a quantidade de olhos ajudando a melhorar", afirma a diretora.
A autarquia alegou que a reestruturação está sendo feita para adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Organizações apontam prejuízo para a transparência
Ao divulgar dados detalhados sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020 e o Censo Escolar da Educação Básica 2021 na sexta-feira, 18, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) retirou séries históricas e suprimiu informações como dados de alunos e docentes da educação básica. Esse banco de informações é utilizado por pesquisadores, gestores e jornalistas para realizar análises sobre a educação brasileira.
Com as informações produzidas pelo Inep, é possível identificar como a desigualdade socioeconômica tem impacto sobre os estudantes brasileiros, por exemplo. Uma das informações retiradas da base do Enem foi o código da escola onde o aluno estuda. Com isso, pesquisas sobre desigualdades de notas por instituição e comparação entre escolas diferentes são inviabilizadas, exemplifica o Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), em posicionamento sobre o assunto.
Também foram retirados do site do Inep os microdados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), do Exame Nacional Para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e de outros exames e avaliações.
Na divulgação dos dados de 2020, o Instituto argumenta que os arquivos foram reestruturados para "suprimir a possibilidade de identificação de pessoas" e atender à Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Organizações que compõem o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, por sua vez, apontam, em nota divulgada na quarta, 23, que a justificativa "é equivocada e compromete a transparência das políticas públicas de educação".
As bases de dados abertos não forneciam informações como nome e CPF. Mesmo assim, estudo realizado por pesquisadores do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a pedido do Inep, concluiu que "a atual forma de divulgação dos censos educacionais submete os titulares dos dados a consideráveis riscos de violação de privacidade, incluindo reidentificação e inferência de atributos sensíveis".
Para as organizações que compõem o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, a atitude do Inep de "simplesmente retirar as informações" é desproporcional e fere a própria LGPD. “Para avaliar a preponderância de interesse público e garantir, ao mesmo tempo, transparência e privacidade, uma série de práticas e procedimentos são adotados por órgãos públicos de todo o mundo", afirmam em nota.
Diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR), Fernanda Campagnucci avalia que o Inep deveria ter realizado consulta pública e técnica "muito mais aberta e plural" sobre o problema identificado para analisar aspectos como os benefícios gerados pelos usos dos microdados. "O Inep, ao tomar essa decisão precipitada, passou uma mensagem muito ruim para todos os entes públicos — que pode até gerar um efeito cascata — de que a LGPD, por si, já impediria de publicar qualquer coisa que tivesse risco de reidentificação", afirma.
O Iede destaca a importância da LGPD, mas aponta que o Inep deveria definir estratégias para adequar os dados à Lei sem que isso leve a "falta de transparência, censura e, consequentemente, um enorme retrocesso na área de Educação". "O não acesso aos dados não é e nunca será a melhor solução", aponta nota do Instituto.
Os dados na íntegra — que contém a identificação das pessoas e por isso são sigilosos — estão disponíveis para pesquisadores na sala segura do Serviço de Acesso a Dados Protegidos (Sedap), na sede do Inep, em Brasília (DF), com acesso restrito e controlado. Em oito anos, entre 2014 e 2021, foi concedido acesso a 111 solicitações de consulta. "É uma situação super-complicada e que precisa existir para garantir acesso seguro a dados pessoais, mas que não tem nada ver com política de dados abertos. São coisas que não substituem uma à outra", complementa Campagnucci.
O Censo Demográfico começará a ser coletado em 1º de agosto deste ano após ter sido adiado duas vezes. Realizada pela última vez em 2010, a pesquisa que normalmente é feita a cada dez anos foi adiada para 2021 por conta da pandemia de Covid-19. Em nota publicada em 17 de março de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) explicou que, para a decisão de adiamento, considerou-se que a coleta é feita de forma predominantemente presencial, com estimativa de visitas de mais de 180 mil recenseadores a cerca de 71 milhões de domicílios no País.
Em 2021, o Censo foi adiado novamente, desta vez por falta de recursos. Orçada inicialmente pela equipe técnica do IBGE em mais de R$ 3 bilhões para 2020, a verba já tinha sido reduzida para R$ 2,3 bilhões e, em seguida, para R$ 2 bilhões. Com a aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2021 (LOA 2021), o orçamento foi reduzido novamente em 96% para R$ 71,7 milhões.
As informações demográficas servem como parâmetro para a implementação de políticas públicas, como a campanha de vacinação contra a Covid-19, e o atraso na realização do Censo pode impactá-las.
"Pessoal de Macapá, quando começou a campanha, o prefeito não sabia a população de 80 anos. Me pediram e fiz a estimativa aproximada. É uma questão imediata. Para você resolver o problema da pandemia, você precisa saber a população", relatou ao O POVO José Eustáquio, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), do IBGE, em entrevista concedida em maio de 2021.
"Lembrando que nós estamos vivendo uma emergência. A partir de 2020, com a entrada da pandemia, muita gente pode ter perdido renda, mudado de cidade, se separado, (pode estar) morando sozinha. O quadro no Brasil mudou muito, de 2010 para cá", complementa o geógrafo e sanitarista Christovam Barcellos, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz). (Com Agências)
Percebendo que, no início da pandemia de Covid-19 não havia nível aceitável de detalhamento nos dados divulgados pelo Governo Federal e que, quando unidades federativas divulgavam as próprias informações, não havia padronização, a Open Knowledge Brasil (OKBR) criou o Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19). Com ele, foram criados parâmetros mínimos de transparência em relação à pandemia. Essa é uma iniciativa de Advocacy e Pesquisa da OKBR, e o impacto do ITC-19 pode ser conferido no e-book Emergência dos dados - Como o Índice de Transparência da Covid-19 impulsionou a abertura de dados da pandemia no Brasil.
DADOS ABERTOS
São aqueles livremente disponíveis para todos utilizarem e redistribuírem como desejarem, sem restrição de licenças, patentes ou mecanismos de controle.
LAI
A Lei nº 12.527/2011, Lei de Acesso à Informação (LAI), regulamenta o direito previsto na Constituição de qualquer pessoa solicitar e receber dos órgãos e entidades públicos, de todos os entes e Poderes, informações públicas por eles produzidas ou custodiadas.
LGPD
A Lei nº 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), versa sobre o tratamento de dados pessoais, dispostos em meio físico ou digital, feito por pessoa física ou jurídica de direito público ou privado e engloba um amplo conjunto de operações efetuadas em meios manuais ou digitais.
Conforme explica Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR), a LAI e a LGPD são complementares e podem ser vistas como espelhos. Ambas regulamentam direitos constitucionais previstos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Enquanto a LAI aprofunda-se na transparência, mas aborda os dados pessoais como exceção, a LGPD aprofunda-se nos dados pessoais, mas aborda a transparência também, o interesse público e o acesso à informação.
Uma diferença é que, enquanto a Lei de Acesso à Informação é restrita ao poder público, a LGPD também abrange o setor privado.
Fontes
Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR)
Painel Dados Abertos da Controladoria-Geral da União
Acesso à Informação - Gov.br
Guia de Boas Práticas - Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
Jornalista, mestre em Educação e doutoranda em Administração Pública e Governo, Fernanda Campagnucci trabalha há mais de dez anos com transparência e dados. Diretora-executiva da Open Knowledge Brasil (OKBR) desde 2019, ela já atuou em organização da área de Educação, envolveu-se nas discussões acerca da importância da Lei de Acesso à Informação (LAI) — que completou 10 anos em 2021 — e foi responsável pela política municipal de transparência, abertura de dados e integridade na Controladoria Geral do Município de São Paulo.
Em entrevista ao O POVO, Fernanda Campagnucci fala sobre as mudanças no cenário nacional quanto à abertura de dados; a importância do acesso a dados confiáveis; além dos riscos e dos benefícios do processo de abertura de dados. A diretora também comenta sobre o Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19) e a retirada dos microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Censo Escolar.
O POVO - Há quanto tempo você trabalha com dados e transparência?
Fernanda Campagnucci - Já tem mais de dez anos, desde a graduação. Eu fiz Jornalismo, originalmente, e já comecei a trabalhar nessa perspectiva do jornalismo de dados. Depois fui me envolvendo nas discussões da necessidade de aprovação de uma Lei de Acesso à Informação (LAI), que aconteceu em 2011. Eu atuava em uma organização de Educação, então também fazia essa discussão sobre a necessidade de avançar nas políticas de abertura de dados da Educação. E já participávamos dessas discussões de governo aberto, para pautar compromisso do Governo Federal nessa agenda. Em 2013, tive minha primeira experiência do lado de dentro da gestão pública, fui para a então recém-instituída Controladoria Geral do Município de São Paulo. Era um órgão novo, então a área de política de dados abertos tinha que ser criada do zero, e a minha função inicialmente era articular com a sociedade civil, promover o fomento ao uso desses dados. Depois, passei a assumir essa área de coordenar mesmo a política de transparência do município. Depois de uma experiência de seis anos no setor público, atuando em outros projetos também na área de Educação, voltei para a sociedade civil e assumi a diretoria da Open Knowledge Brasil (OKBR) em 2019. Desde então, tenho atuado de forma mais ampla no tema dos dados no Brasil, nos entes e nessa interface da transparência e da privacidade.
OP - Desde então, que mudanças tem percebido no cenário nacional em relação à transparência e à abertura de dados?
Fernanda - Não é um movimento linear de avanços. Acho que tem momentos de avanços e de retrocessos. Mas, de forma geral, a Lei de Acesso à Informação trouxe um arcabouço mais sólido para podermos cobrar e demandar políticas de transparência. Ela ainda tem algumas lacunas, mas avançou ao estabelecer alguns procedimentos para responder pedidos de acesso à informação. Apesar de o direito de acessar a informação já existir, não existiam esses procedimentos, esses prazos, os responsáveis. Acho que a lei avançou em criar essa cultura de que é preciso fornecer informação, de que a informação é do público. Boa parte dos servidores tiveram dificuldade de compreender esses "novos tempos", mas acho que muito rapidamente foi incorporado, e isso é totalmente compatível com a função pública. Acho que as pessoas aos poucos foram entendendo melhor o objetivo da lei e implementando. (Por outro lado), a lei ajuda muito pouco a avançar na transparência ativa. Ela tem um artigo específico, traz alguns parâmetros do que deve ser divulgado, mas tem uma infinidade, um mar de dados sobre as políticas públicas que fica colocado de forma genérica. Nós não temos alguns instrumentos que nos ajudariam a avançar.
O POVO - Que tipos de instrumentos?
Fernanda - Como catálogos de dados abertos, que todos os órgãos públicos tivessem, de forma muito transparente, quais bases de dados eles têm. Não necessariamente eles vão conseguir abrir tudo, mas o público tem o direito de saber que esses dados existem. Com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), isso ficou ainda mais evidente. A própria LGPD diz que, para você poder mapear os riscos, você precisa conhecer as suas bases, você tem que mapear. Então, catálogo, com política de dados abertos, com plano de dados abertos para cada órgão público. O Governo Federal tem um decreto específico para isso, mas só atinge os órgãos federais. A LAI não traz essa mesma previsão para os demais entes, e isso faz muita falta. De uma forma geral, avançamos, mas ainda precisamos avançar muito mais na governança dos dados, tanto para poder proteger esses dados — evitar vazamento, evitar ciberataques — quanto para dar transparência e abrir aquilo que a sociedade precisa.
O POVO - Qual a importância do acesso a dados confiáveis, seja para o gestor ou para a sociedade em geral?
Fernanda - Temos diversos benefícios da abertura de dados, que vão desde a melhoria do planejamento e da provisão de serviços públicos, de políticas públicas, porque os órgãos públicos têm muita dificuldade de conversar entre si. Temos uma estrutura federativa muito complexa, e às vezes, no mesmo território, temos Governo Federal, estado e município fazendo coisas em direções opostas. Quando os dados estão usando padrões abertos fica mais fácil de fazer essas políticas conversarem. A sociedade, jornalistas, pesquisadores podem avaliar as políticas. O estado não tem condição, braços e olhos, para fiscalizar toda a política pública, é uma capacidade limitada. O fato de estar aberto ajuda o governo a ter mais olhos para manter a coisa pública e as políticas. No caso de doadores de campanha, por exemplo, que é uma base que está em discussão no TSE, se fecha ou não, apontamos que seria muito danoso para a democracia não ter esses dados. Um argumento que surge internamente é que os dados vão continuar indo para os órgãos de controle, mas eles não têm braço suficiente para olhar candidaturas do Brasil inteiro. Então, o jornalismo local, as organizações que atuam no local conseguem contrapor a realidade delas com aquilo que está nas bases de dados. É muito importante que as pessoas se apropriem dos dados para monitorar. E estamos em uma economia digital que tem como matéria prima o dado. As próprias empresas, startups, que queiram fazer produtos digitais com dados públicos geram valor para a sociedade, geram produto, geram facilidade. Elas fazem a economia girar também. Fora o próprio cumprimento de um direito constitucional. Quando você tem dados e informações, você consegue exercer plenamente a sua cidadania, participar das decisões políticas.
O POVO - Quais são os riscos de os dados não serem atualizados e claros?
Fernanda - Temos que encarar a publicação de dados como uma política pública. E toda política pública é incremental, ela começa de um jeito e vai sendo aprimorada com o tempo. (Com) a política de transparência é a mesma coisa. Temos mesmo diversos riscos associados à publicação de dados. Tem o risco de o dado ter uma qualidade ruim, e de as pessoas interpretarem errado por causa dessa qualidade ruim; tem o risco de o dado estar errado mesmo, de ter sido produzido errado ou coletado errado; tem um risco de confiança porque, se o dado estiver errado, você pode provocar uma crise confiança; tem o problema de, se você não tomar os cuidados devidos, identificar pessoas que não deveriam ser identificadas, você violar a privacidade e colocar pessoas em risco, (expor) pessoas a condições vexatórias. Então, o risco nunca vai ser zero, mas temos que trabalhar para atenuar ou eliminar esses riscos. Problemas de qualidade vão sempre existir, então a transparência acaba ajudando a corrigi-los. A partir do momento que um jornalista, um cidadão percebe um problema nos dados, tem que ter um canal de diálogo com aquele órgão que está publicando os dados para poder dar feedback dos erros, dos problemas, e isso ser corrigido. Isso é a quantidade de olhos ajudando a melhorar.
O POVO - Com a Covid-19, a Open Knowledge Brasil (OKBR) criou o Índice de Transparência para avaliar a qualidade dos dados e informações sobre o cenário da pandemia nos estados e municípios. Essa experiência resultou inclusive em um livro digital lançado em novembro de 2021. Como avalia os avanços e as dificuldades na abertura de dados de saúde ao longo desses dois anos?
Fernanda - Ninguém estava preparado, nenhum órgão do Brasil e acho que nem do mundo, estava preparado para divulgar diariamente esse volume de dados com tanto detalhamento. Então, é normal que vai dar problema. Mas o problema é não mapear o que está acontecendo, não identificar os problemas e não corrigir. (Nossa equipe) tinha que coletar mais de trinta indicadores para cada município e cada estado e Governo Federal. Além disso, cada município às vezes tinha quatro páginas em que divulgava as coisas — secretarias diferentes divulgando dados diferentes. Isso também dificultou muito não só o nosso trabalho, mas o de qualquer pessoa que queria acompanhar a pandemia naquele lugar. Essa falta de unidade vem dessa ausência de governança dos dados. Você tem órgãos caminhando de forma diferente dentro de um mesmo governo, e os dados ficam diferentes também. Isso ficou claro durante a pandemia, e ficou claro também que os governos podem avançar muito rápido se tiver uma junção de fatores: vontade política, incentivo político da autoridade máxima daquele órgão de sinalizar que transparência é importante; parâmetros objetivos do que é uma política de transparência e acompanhamento da imprensa, que colocou na agenda pública a necessidade de transparência. Então, você cria esse ciclo vicioso de melhoria. Para fechar o ciclo, os pesquisadores e os próprios jornalistas, que usaram esses dados e ajudaram a melhorar a qualidade deles.
O POVO - Quais os principais problemas enfrentados em relação aos bancos de dados disponíveis — não só em relação à pandemia?
Fernanda - Temos problemas de ordem técnica e de ordem política. Mas, uma vez que existe a vontade política, a publicação pode acontecer com a capacidade que o órgão tem. Os principais problemas de qualidade que costumam acontecer nas bases de dados são a falta de documentação — não ter contexto sobre a base e explicações básicas sobre o que cada variável significa —, questões técnicas de formato — os dados não estão no melhor formato para serem consumidos —, há problemas de completude — às vezes o gestor decide agregar os dados em uma unidade muito grande, por exemplo, por estado ao invés de agregar por município. Um ponto muito importante que foi da pandemia, mas também (ocorre) em outras bases, é que temos indicadores essenciais para compreender a desigualdade que não são bem preenchidos, não tem um cuidado na ponta, orientação, para preencher dados, por exemplo, de raça/cor e etnias indígenas. O dado pode até estar preenchido no sistema, mas, na ponta, a pessoa acha que ninguém vai fazer nada com aquilo, coloca qualquer coisa. Isso é ruim porque acabamos perdendo a precisão e a confiabilidade neles.
O POVO - Recentemente, o Inep omitiu informações dos microdados do Enem e suprimiu bases do Censo da Educação Básica, justificando que estava atendendo às exigências previstas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Qual o possível impacto dessas mudanças para esse cenário da transparência das informações públicas?
Fernanda - O Inep, ao tomar essa decisão precipitada, passou uma mensagem muito ruim para todos os entes públicos que pode até gerar um efeito cascata, de que a LGPD, por si, já impediria de publicar qualquer coisa que tivesse risco de reidentificação. É uma base de dados disponível há muitos anos. Esse risco já estava colocado, então o que deveria ser feito era uma consulta pública e técnica muito mais aberta e plural sobre esse problema, porque que o Inep fez foi contratar um estudo de um grupo de cientistas da Computação que olharam a coisa puramente do ponto de vista da segurança e não consideraram todos os outros aspectos dessa questão. O aspecto dos usos, dos benefícios que esses dados abertos trazem, e que já eram anonimizados, não estavam expondo as pessoas diretamente. Então, acho que passa uma mensagem ruim, não só para a área de Educação, mas para outras áreas também, de que é possível retroceder em uma política tão consolidada como essa de abertura de dados, e tão referência no País e fora. Imagina limitar (todo) esse tipo de experiência de uso, até pedagógico, de uma base de dados a uma sala de sigilo, que é uma outra política, para dar acesso, aí sim, a dados pessoais para um conjunto super restrito de pesquisadores que têm que comprovar vínculo com universidade, aprovar um projeto de pesquisa. É uma situação super complicada e que precisa existir para garantir acesso seguro a dados pessoais, mas que não tem nada ver com política de dados abertos. São coisas que não substituem uma à outra.