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Maconha medicinal: receios médicos e o efeito do negacionismo no avanço científico
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Maconha medicinal: receios médicos e o efeito do negacionismo no avanço científico

Para o médico psiquiatra Urico Gadelha, o uso da cannabis para tratar pacientes já tem resultados favoráveis, mas que precisam avançar e se consolidar com mais pesquisas
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Urico Gadelha, médico psiquiatra, ex-membro do Conselho Regional de Medicina (Cremec) (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Urico Gadelha, médico psiquiatra, ex-membro do Conselho Regional de Medicina (Cremec)

O psiquiatra Urico Gadelha, 72 anos, confirma que na categoria médica local há profissionais que temem retaliações em prescrever tratamentos com o uso de substâncias produzidas a partir da maconha. "Se existe isso? Existe. Existe a recusa tácita de quem descrê, de quem não concorda, e existe o receio, sim, de retaliações. Você não tem, olhando para as políticas de estado, principalmente as políticas do Governo Federal, você não sente chão firme para poder pisar nesse tipo de matéria". 

Quatro décadas como médico, Gadelha é também advogado, ex-membro do Conselho Regional de Medicina (Cremec) por 14 anos e um dos fundadores do Coletivo Rebento — Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS. Para ele, a histórica decisão do Conselho Estadual da Saúde (Cesau) sobre a recomendação para o uso da maconha medicinal na rede pública do Ceará, anunciada nessa terça-feira, 14, era algo já necessário e prestes a se confirmar, como aconteceu, mas que agora precisa avançar com mais pesquisas científicas para se ter um posicionamento ainda mais consolidado. 

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Em consenso com o paciente, Gadelha já adotou o canabidiol num tratamento, o único que disse ter prescrito com a maconha medicinal, e disse que houve melhoras significativas quanto a dores e insônia. O ex-conselheiro do Cremec lamenta o negacionismo atual com a ciência no País, o que atrapalha as discussões mais sérias e equilibradas sobre o tema, mesmo que as informações favoráveis ao uso da cannabis como remédio sejam visíveis. 

Brasil atualmente tem 19 produtos à base de derivados da maconha autorizados pela Anvisa para comercialização em farmácias no País, sob prescrição médica. Óleo fitoterápico é extraído da Cannabis sativa no período da floração
Foto: Agência Brasil
Brasil atualmente tem 19 produtos à base de derivados da maconha autorizados pela Anvisa para comercialização em farmácias no País, sob prescrição médica. Óleo fitoterápico é extraído da Cannabis sativa no período da floração

O POVO - Como o senhor avalia a aprovação do Conselho Estadual da Saúde recomendando o uso da cannabis medicinal na rede de saúde do Ceará?

Urico Gadelha - Essa aprovação mais cedo ou mais tarde iria acontecer. O uso do óleo de canabidiol e a demonstração da eficácia dele tem se mostrado uma coisa inescondível. Havia necessidade de que essa medida fosse tomada para que se pudesse, vamos dizer, separar joio de trigo. O cultivo da Cannabis com a intencionalidade medicamentosa precisava ser garantido. Somente uma medida dessa poderia ajudar. Não resolve por ter uma eficácia limitada, é na esfera estadual, mas isso já representa um passo adiante.

OP - O senhor já prescreveu Cannabis medicinal?

Urico - Prescrevi uma única vez, agora recentemente, o uso do canabidiol. Num caso de indicação restrita.

OP - Qual era a enfermidade, o quadro do paciente?

Urico - Situação de ansiedade, insônia e manifestação dolorosa.

OP - Qual foi a melhora com a medicação que o senhor passou?

Urico - A melhora se deu principalmente na manifestação dos sintomas dolorosos do quadro depressivo. E também a melhora do sono. Se você está sem dor, você dorme melhor. Foi até agora o único caso. Não sou muito de estar receitando sem verificar, sem pesquisar, sem ver a experiência. Não quero ser nem fazer ninguém de cobaia.

OP - Essa é uma decisão que cabe exclusivamente ao médico? Quando o médico define o momento que vai prescrever esse produto?

Urico - Sem querer corrigir, mas essa não é uma decisão exclusiva do médico. Esse negócio de dizer que é decisão exclusiva do médico vai resvalar naquele discurso torto do CFM (Conselho Federal de Medicina) sobre a autonomia do médico. A relação médico-paciente só tem um sujeito autônomo: é o paciente. O médico não tem autonomia absoluta por quê? Porque ele há de se curvar às evidências científicas, aos conhecimentos da ciência, às técnicas. O paciente tem autonomia inclusive de ele ser definitivo. A utilização, nesse caso específico, decorreu exatamente de um consenso. As respostas às medicações tradicionais às vezes melhoravam num determinado aspecto, pioravam, até que a gente entrou num consenso. Fechamos um protocolo, evidentemente, um consentimento, e o uso foi feito. E a resposta foi positiva. Mas não é que o médico decidiu, isso não é decisão do médico. É que não quero ficar, por princípio, na posição do CFM com relação, por exemplo, à Covid-19.

OP - Essa decisão do Conselho Estadual ainda vai para a Assembleia até que possa virar lei. O que será mais difícil para avançar nessa política pública, com o uso da Cannabis para fins terapêuticos?

Urico - Estamos lidando com um assunto que, independentemente da nossa vontade, envolve substância ilícita. A planta maconha, que tem a substância THC, tetrahidrocanabinol, com seus efeitos inclusive causadores de transtorno mental, e o canabidiol (CBD). Mas temos uma cultura muito atrasada em relação a isso. Nós ainda falamos no trato de substâncias, de lei antidroga. Sou contra qualquer lei antidroga porque trabalho com droga. A sertralina é droga, a risperidona é droga. Lei antidroga? Ficam trazendo um universo de preconceito e de perseguição.

É preciso que se trabalhe com muita cautela, muito cuidado. Primeiro por causa do aspecto legal. Nós não temos o poder da mudança da lei. E o enfrentamento cultural dos costumes é das coisas mais difíceis, mais pesadas. E também tem a incipiência com o que se está lidando. Os efeitos com o uso do canabidiol, nós temos coisas que já estão sendo demonstradas. Entretanto é necessário que essas coisas que estão acontecendo, que estão tendo resultado, elas sejam cultivadas, mas que novas pesquisas avancem para se ter um posicionamento consolidado. A ciência não combate preconceito com preconceito nem com afrontamento. Então, novas pesquisas, para que a gente não trate de doenças e transtornos das pessoas corroborando para usos inadequados. Infelizmente a expressão tem que ser separar joio de trigo.

OP - Como fica a garantia para efetivar essa política pública, diante dos dogmas tanto de pacientes quanto de médicos?

Urico - Pra falar sobre isso, temos que contextualizar com o Brasil do momento. É um País de não à ciência, do negacionismo, do preconceito. E isso é um fator de dificuldade para que se possa trabalhar com seriedade e buscar avanços em pesquisas. Dentro da realidade brasileira, a ciência está sendo negada. O preconceito agora é orgulho nacional. Infelizmente é isso que a gente tem que dizer. Isso é um fator de imensa dificuldade para que se possa avançar. Tem que haver política de estado para incentivar, para fomentar e para regulamentar essas coisas. Mas é preciso instituições como a Vigilância Sanitária e organismos mundialmente reconhecidos, as pesquisas acadêmicas das grandes universidades. Instituições como a Fiocruz, elas precisam ser mais respeitadas, ser mais acatadas. Quando estamos trabalhando buscando caminhos nesse universo das pesquisas, a gente vê que o governo atual desmontou a política nacional de redução de danos.

"Estamos lidando com um assunto que, independente da nossa vontade, envolve substância ilícita. A planta maconha, que tem a substância THC, tetrahidrocanabinol, com seus efeitos inclusive causadores de transtorno mental, e o canabidiol (CBD). Mas temos uma cultura muito atrasada em relação a isso. " Urico Gadelha, médico psiquiatra

OP - Que contrapontos são necessários para discutir o uso da maconha medicinal na rede pública do Ceará?

Urico - Ela não é a panaceia resolutiva de tudo. Toda e qualquer coisa nova fica entre partidários que assumem ela como solução de tudo, e do outro lado os que dizem que é uma falácia, um engodo, um embuste. O que é necessário, em termos de política de estado, é que se garanta as pesquisas, com absoluta isenção, sem cortes preconceituosos e ideológicos. E que a utilização dessa substância, a maconha medicinal, seja marcada pelas evidências às quais os médicos hão de se curvar. Também pela vontade livre e consentida do paciente. São esses os personagens e cabe ao Estado garantir as pesquisas e controlar rigorosamente os excessos à direita, à esquerda, ao centro, acima e abaixo.

OP - O senhor tem alguma posição em relação ao paciente produzir o próprio óleo extraído da Cannabis, quando faz o cultivo caseiro autorizado pela Justiça, para facilitar o acesso e para segurar os custos muito altos do tratamento?

Urico - Isso é uma questão profundamente delicada. Penso que a produção e distribuição desse óleo já deveria estar sendo controlada pela máquina estatal. Na ausência desse ente produzindo isso é que o paciente está tomando essa iniciativa. Tem meio termo em relação a isso? Sim. Já que o Estado não está produzindo, que ele seja o agente fiscalizador desse cultivo pelo paciente. Que o Estado crie pelo menos uma espécie de cadastro e fiscalização desse produtor para que se possa garantir o uso adequado dentro da destinação proposta.

OP - Com essa sua vivência na medicina e seu tempo no Cremec, com a chegada de uma medicação como essa e tantas outras que surgiram nesses anos, qual vai ser o tempo para que essa política seja efetivada no Ceará e o benefício vá para a rua de fato?

Urico - É difícil dizer quanto tempo. Saí do Conselho Regional de Medicina em 2011. Depois que saí já passaram duas gestões. O Conselho teve muitas mudanças dentro do seu quadro, na sua visão. O Conselho é um órgão de regulação, de fiscalização, da boa prática médica. O que é a boa medicina? No Conselho Federal de Medicina, a visão negacionista pontificada no parecer 04/2020 (sobre uso da cloroquina e hidroxicloroquina em tratamento da Covid-19), foi aprovada por unanimidade por todos os conselhos. O conservadorismo, o caminho ao medievo, ele contaminou também o jaleco. De modo que é muito difícil a gente dimensionar esse tempo. Isso vai custar ainda muito, muitas amarguras, muitas contradições. Porque nós temos uma realidade absolutamente conservadora dentro da categoria médica. Não preciso procurar preconceito noutros profissionais. Não é simples. Mesmo havendo comprovações científicas. Falar sobre cuidar disso, mexer com isso, você recebe um olhar como se você estivesse aderindo ao narcotráfico. Não vai ser um caminho fácil, não. Vai ser duro.

OP - Existe receio dos médicos em prescrever a maconha medicinal?

Urico - Se existe isso? Existe. Existe a recusa tácita de quem descrê, de quem não concorda, e existe o receio, sim, de retaliações. Você não tem, olhando para as políticas de estado, principalmente as políticas do Governo Federal, você não sente chão firme para poder pisar nesse tipo de matéria. É muito difícil, complicado. Que os profissionais têm receio? Têm, e não desaconselho que eles tenham. A maré não tá pra peixe. A situação está difícil.

Reunião do Conselho Estadual da Saúde aprovou, na manhã desta terça, 14, a recomendação para que o Ceará adote o uso da maconha medicinal em tratamentos pela rede pública de saúde. Também indica incentivo a pesquisas e capacitação dos profissionais da área para diagnosticar e atender pacientes com o uso de remédios à base de cannabis
Foto: CLÁUDIO RIBEIRO
Reunião do Conselho Estadual da Saúde aprovou, na manhã desta terça, 14, a recomendação para que o Ceará adote o uso da maconha medicinal em tratamentos pela rede pública de saúde. Também indica incentivo a pesquisas e capacitação dos profissionais da área para diagnosticar e atender pacientes com o uso de remédios à base de cannabis


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