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"Existe uma noção de que os homens têm poder sobre os corpos das mulheres"
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"Existe uma noção de que os homens têm poder sobre os corpos das mulheres"

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Sociologia e coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS-UFC), Marcelle Jacinto da Silva, fala sobre como o machismo estrutural e a falta de informação sobre violência contra mulher pode impactar em casos de abuso
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 13.07.2022: Aguanambi 282 - Violencia contra mulher. Porfessora e pesquisadora Marcelle Jacinto da Silva. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO) (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita FORTALEZA, CE, BRASIL, 13.07.2022: Aguanambi 282 - Violencia contra mulher. Porfessora e pesquisadora Marcelle Jacinto da Silva. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)

Nessa última semana, mais um caso de violência sexual contra mulher ganhou repercussão nacional. No dia 10 de julho, um médico anestesista estuprou uma grávida dopada em trabalho de parto. O caso aconteceu no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em Vilar dos Teles, no município de São João de Meriti, no Rio de Janeiro.

Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Os dados mostram que houve 56.098 estupros — incluindo de vulneráveis — com vítimas do gênero feminino em todo o país.

O episódio acende o alerta sobre o machismo estrutural inserido na sociedade e a importância da disseminação de informações sobre o assunto para identificar e evitar demais casos de estupro ou de outras violências. É o que destaca a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Sociologia e coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS-UFC), Marcelle Jacinto da Silva.

O POVO - Um homem abusou de uma paciente dopada que passava por uma cesárea no último domingo, 10. O que pode estar relacionado a atitude de um homem em cometer um crime nesse formato?

Marcelle Silva - Atos como esse do homem são muito comuns e, infelizmente, podem acontecer novamente. Eu considero (isso) porque a gente vive em uma sociedade estruturalmente machista, sexista, racista, misógina e, enfim, discriminatória. Se a gente vive em uma sociedade machista, isso significa que a nossa educação, enquanto sociedade, é muito voltada para esse tipo de pensamento. Os meninos, desde muito jovens, são ensinados a violência, por mais que neguem. Desde pequenos, quando são ensinados a não mostrarem emoção, por exemplo. Toda essa construção de masculinidade está relacionada à violência, como em relação aos brinquedos, como armas, e são ensinados a dominarem.

Pela educação que a gente tem enquanto sociedade, os meninos vão crescendo achando que têm esse lugar de poder na sociedade e que pode usar esse lugar de poder e de dominância em qualquer espaço e com qualquer pessoa. E eu não acredito na defesa desses homens que cometem esse tipo de crime, que dizem que foi um momento de descontrole e de problema mental. Eu acredito que esse tipo de ações reflete em como a sociedade é estruturada, em que a violência é muito natural, especialmente para os homens. Eu considero que isso é um problema de educação e de socialização, ou seja, de como a gente é como sociedade, (mais) do que uma questão mental.

OP - Em que âmbitos o machismo e a misoginia atuam em relação à violência sexual contra a mulher?

Marcelle - A questão dessa ideia do masculino está associada à violência, à dominância, à liderança; enquanto as mulheres estão associadas a esse lado mais de delicadeza e de menos força física. Então, os homens, a construção do masculino é aquela figura que tem a força física, o poder, a dominância. Além dessa construção de que a violência faz parte da masculinidade, tudo aquilo que é considerado feminino, até no corpo masculino, está associado à questão da misoginia. Acredito que, dentro dessa cultura machista estrutural que a gente vive, tudo que é associado ao feminino é rejeitado, principalmente em forma de violência, porque o feminino está ali para ser dominado, então ele é inferiorizado. A masculinidade e a misoginia estão associados a esse abuso de poder.

Professora e pesquisadora Marcelle Jacinto da Silva. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)
Foto: Thais Mesquita
Professora e pesquisadora Marcelle Jacinto da Silva. (Foto: Thais Mesquita/OPOVO)

OP - O que é a cultura do estupro e como combatê-la?

Marcelle - O conceito da cultura do estupro está diretamente associado a essa questão que a gente vive em uma sociedade estruturalmente machista e que é algo naturalizado. Quando a gente fala em machismo, a gente fala em relação de poder nessa questão do abuso de poder. E se existe esse abuso de poder, existe uma noção de que os homens têm poder sobre os corpos das mulheres, e se eles têm esse poder, eles podem abusar e usar esse corpo da forma que eles querem.

OP - Além das leis já implementadas sobre o crime de estupro, o que é ainda preciso ser feito para reduzir os casos?

Marcelle - A socialização das informações. Tem muitas mulheres adultas e, principalmente, jovens que não conseguem identificar situações de abuso e de estupro. Vejo muito a questão de a mulher, dentro de um relacionamento estável, por exemplo, não querer fazer sexo e elas acabam não interpretando como um estupro porque é com o marido ou o namorado. Como a gente evita isso? Informação! A socialização de informações por meio de um debate público, que é um assunto que é muito difícil de ser discutido, é um assunto que mexe muito com a gente, mas que é necessário. Quando a gente fala nesse assunto, a gente imagina que poderia ter sido a gente. É como se a gente sempre sentisse que aquilo ia acontecer com a gente só não sabemos quando. A gente está extremamente vulnerável, quanto mais a gente se informar sobre (o assunto), vamos entender a complexidade das relações. É conversar, debater mais em salas de aulas, jornais, fazer realmente um debate público. Além da mudança na educação de meninos e meninas para minimizar essa violência.

OP - Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A maioria das vítimas eram mulheres. Como você analisa o crime de estupro em relação à desigualdade de gênero?

Marcelle - (Existe) Esse lugar da vulnerabilidade que a mulher é colocada na nossa sociedade. A gente tende a vivenciar uma cultura de que a gente vive o tempo inteiro com medo. Toda a mão de obra que a gente tem antes de sair de casa, escolhendo a roupa que a gente vai sair, escolhendo a hora de voltar se você for sair sozinha porque é uma coisa que a gente pensa que a violência pode acontecer a qualquer momento. A gente fica com medo o tempo inteiro porque a gente sabe que lá fora ou (em) qualquer espaço que a gente estiver, isso pode acontecer porque é muito naturalizado o homem tomar posse do corpo da mulher, independente de ser marido, namorado, amigo ou parente. Não importa para essa sociedade doente que vivencia essa lógica de que é normal, que o homem com necessidades sexuais possa abusar, e é como se ele fosse um predador e a mulher é aquela presa que está vulnerável o tempo todo. Isso não pode ser naturalizado. Culturalmente, a gente é colocada nesse lugar da vulnerabilidade, mas, de fato, a gente se coloca por conta do medo.

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Sociologia e coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS-UFC), Marcelle Jacinto da Silva, fala sobre como o machismo estrutural e a falta de informação sobre violência contra mulher pode impactar em casos de abuso
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC), doutora em Sociologia e coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS-UFC), Marcelle Jacinto da Silva, fala sobre como o machismo estrutural e a falta de informação sobre violência contra mulher pode impactar em casos de abuso (Foto: Thais Mesquita)

OP - De que forma o estuprador ser privilegiado, como homem classe média alta e branco, o deixa à vontade para cometer esse tipo de crime até mesmo na frente de outras pessoas?

Marcelle - Volta aquela construção do masculino, aquela figura de que eles não conseguem se segurar. Quando um homem tem essa tendência ao crime, ele não se importa em qual situação ele vai cometer esse crime, ele vai se importar como ele vai driblar aquilo e exercer o poder dele seja em qual momento for. E ele está em uma situação de privilégio, primeiro, por ser homem branco, e o nosso modelo de privilégio, de beleza, de cidadania, é esse homem branco de classe alta. Então, enquanto raça, ele já está no lugar de privilégio, e isso o deixa mais à vontade para fazer esse tipo de crime em qualquer espaço. O lugar do privilégio é um lugar da verdade, da não dúvida, de caráter, e de tudo. Ou seja, você passa, você transita e passa a imagem de uma boa pessoa. Enfim, é confortável.

OP - Após a exposição do crime, o acusado de estupro teve uma alta de seguidores nas redes sociais. O que isso reflete na sociedade?

Marcelle - Primeiro que é muito preocupante a gente viver em uma sociedade em que as pessoas têm uma atitude como essa. É como se a sociedade tivesse dando uma medalha para esse cara. Eu não sei o que se passa por uma cabeça de uma pessoa querer seguir, acompanhar a vida de um criminoso, de um caso aterrorizador, que coloca a gente, mais uma vez, (na posição) de que poderia ser com qualquer uma de nós. Isso fala do quanto a nossa sociedade tem essa mentalidade de dar um prêmio para um homem branco porque existe toda uma construção de masculinidade tóxica que é violenta. Então, a sociedade privilegia a violência e a gente está vivendo um momento em que a violência é natural e esperada porque faz parte de ideologia. Isso é muito perigoso e preocupante, viver em uma sociedade que dá prêmio para abusador.

Lei

Em 2009, a Lei nº 12.015/09 passou a definir, mediante seu artigo 213, o crime de estupro como: ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Se a conduta resulta em lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 ou maior de 14 anos, a pena é de 8 a 12 anos. Em caso de conduta que resulta em morte, a pena é de 12 a 30 anos.

Casos

Em 2021, o Brasil registrou um estupro a cada 10 minutos, segundo um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em março deste ano. Os dados mostram que houve 56.098 casos, apenas do gênero feminino, em todo o país.

Fórum

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) é uma organização não-governamental, apartidária, e sem fins lucrativos, que se dedica a construir um ambiente de referência e cooperação técnica na área da segurança pública.

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