Logo O POVO+
‘Pai da internet brasileira’ minimiza temores de bolhas digitais e ChatGPT
Aguanambi-282

‘Pai da internet brasileira’ minimiza temores de bolhas digitais e ChatGPT

|AMBIENTE DIGITAL| Demi Getschko, diretor-presidente do NIC.BR, destaca poder do usuário para neutralizar riscos das redes sociais e das ferramentas de inteligência artificial
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Demi Getschko debateu futuro da internet no Futura Trends, em setembro (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Demi Getschko debateu futuro da internet no Futura Trends, em setembro

Natural de Triestre, na Itália, e filho de pais búlgaros, Demi Getschko chegou a Santos com cerca de 11 meses de idade, em 1955, poucos anos antes de o Brasil passar a ser conhecido mundialmente como o ‘País do Futebol’. Não havia internet, redes sociais, memes ou ChatGPT.

O que seus pais Emil Getschko e Erifili Dimitrova pensaram ao desembarcar como refugiados em uma terra estrangeira sobre o futuro dele possivelmente nem a mais avançada ferramenta de inteligência artificial é capaz de imaginar, mas, Demi foi um dos primeiros cidadãos brasileiros a se aventurar no ambiente digital, que virou no século XXI quase tão marcante na vida de seus compatriotas quanto o esporte de origem britânica.

Não à toa, hoje, aos 69 anos, ele é reconhecido como um dos “pais” da internet brasileira. Atualmente diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Demi Getschko foi um dos responsáveis pela primeira conexão TCP/IP do País, ligando a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) à Energy Sciences Network (ESNet), nos Estados Unidos, um passo fundamental para permitir que você tenha acesso a conteúdo, converse ou veja qualquer pessoa ou lugar do planeta.

Demi Getschko esteve no último dia 29 de setembro, no Futura Trends, em Fortaleza. O evento realizado pelo O POVO e pela Fundação Demócrito Rocha abordou na edição deste ano, justamente os rumos da inteligência artificial.

Para quem viu os primórdios da internet no País, no entanto, o tema não tem nada de assustador e pode ser uma ferramenta muito útil para internautas de ontem, hoje e de amanhã.

Confira o que ele disse ao O POVO!

O POVO - O senhor é considerado um dos pais da internet brasileira. Como foi o processo de chegada da internet ao Brasil? Como foi aquele momento que estavam sendo discutidas as perspectivas de trazer a internet para o País?

Demi Getschko - Certamente, qualquer coisa ligada à internet é uma atividade coletiva. Teve uma porção de gente envolvida.

Eu comecei nessa história quando fui para a (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) Fapesp, o professor Oscar Sala era o presidente da Fapesp, e uma das nossas missões lá era conseguir conectar as universidades brasileiras, no caso as paulistas, às redes acadêmicas, sem falarmos a palavra internet.

Na época, a internet era uma dessas redes de conexão, mas não era nem muito preponderante. Então, nós fomos atrás de um ponto de conexão no Exterior. Nós achamos um ponto de conexão num laboratório chamado Fermilab, perto de Chicago.

E aí a rede que nós conseguimos usar de princípio era a Bitnet, que era a mesma rede que que o (Laboratório Nacional de Computação Científica) LNCC, no Rio de Janeiro, tinha conseguido ligar em Maryland, na costa leste dos Estados Unidos, e nós passamos então a distribuir (conexão com a) Bitnet para quem quisesse usar essa rede.

Como é que se fazia essa distribuição? Quem queria usar Bitnet ou puxava uma linha até a gente ou puxava uma linha até o Rio, que também funcionária, e colocaria na máquina dele o software adequado e nós teríamos os recursos da Bitnet, que eram basicamente um correio eletrônico e alguma coisa mais simples de transferência de arquivos, mas nada muito sofisticado.

Em pouco tempo, o próprio Fermilab nos avisou que o Bitnet não era uma aposta de longo prazo e que a internet avançava rapidamente.

Eles próprios do Fermilab iriam se integrar a um backbone, uma espinha dorsal, da internet deles chamada ESNet (Energy Science Network) e aí nós pedimos: - Quando vocês forem para esse negócio nos deem carona, por favor, porque nós também queremos acompanhar a tendência que parece ser prevalente. Isso foi por volta de 1987 a 1988.

Demi Getschko lembrou primeiros passos da internet no Brasil em entrevista exclusiva ao O POVO(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Demi Getschko lembrou primeiros passos da internet no Brasil em entrevista exclusiva ao O POVO

OP - E então veio o conceito de endereço eletrônico. Como foi o processo para registrar o Ponto BR presente em sites e e-mails no Brasil até hoje?

Demi - Em 1989, nós fizemos um passo que foi importante com o time lá da Fapesp, onde eu estava, que foi pedir a delegação do BR que estava disponível.

Na raiz da internet e até hoje você tem uma tabela de códigos de região ou país chamada ISO 3166. É uma tabela internacional da ISO, onde cada região ou cada código de país tem duas letras correspondentes a ele. O BR era correspondente ao Brasil e o BR não tinha ninguém que o tivesse pedido.

Nós pedimos o br para quem cuidava daquilo, que era o Jon Postel, que a gente conhecia de outras reuniões. Ele nos delegou o BR e falou: - Cuidem do BR, em benefício da comunidade da rede local de vocês. E isso foi uma coisa feita entre operadores de redes sem nenhum envolvimento nem do governo, nem de burocracia adicional, mas simplesmente do pessoal que tocava a rede e a gente fez esse acordo.

Então, nós passamos a ter um sobrenome para dar nome às máquinas e, com isso, as máquinas que passaram a crescer dali para frente podiam escolher ter qualquer nome que quisessem, mas por algum motivo que para nós é muito grato e muito feliz, escolheram o br como sobrenome.

Com isso começou a crescer rapidamente. Nós aproveitamos para criar debaixo do br uma estrutura que primeiro parecia a estrutura norte-americana no sentido de ter gov.br, com.br, net.br, mil.br e depois nós criamos outros domínios para atender outras necessidades.

O edu.br não tinha, no começo, mas criamos logo em seguida. Então, a gente mimetizou o que existia na rede norte-americana original que era o com, o net, o gov, o com.

No gov, nós já aproveitamos para colocar o terceiro nível (relacionado) aos estados: sp.gov, rj.gov, ce.gov etc e isso foi bem aceito. Com o tempo foram criados mais domínios.

Foram criados domínios para o Judiciário, jus.br; para o Legislativo, leg.br, para profissionais, tais como eng.br, art.br, adv.br BR e isso foi funcionando bem.

OP - E hoje existem quantos domínios registrados com o Ponto BR?

Demi - Hoje, somos um dos códigos de países com maior população, de mais de 5,2 milhões domínios registrados, o que nos coloca bem internacionalmente.

O efeito colateral disso daí foi que, quando isso deixou de ser grátis e passou a ser cobrado por registro, nós seguimos a tendência mundial que começou em 1995 e em 1997 nós fizemos isso, porque também não tinha sentido uma estrutura que beneficiava todo mundo ter que ser sustentada por alguém. Tinha que ser autossustentável.

Nós passamos então a cobrar o registro brasileiro, pelo br, em níveis sempre menores que outros faziam lá fora, mas isso nos permitiu, já que tínhamos muitos usuários registrando, chegar rapidamente ao equilíbrio e rapidamente ter superávit.

E com isso nós pudemos fazer outras coisas em relação à internet brasileira que foi devolver isso aí para benesses na internet do Brasil e, com isso, o (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR) Nic.br finalmente se institucionalizou.

Em 2002, ele passou a ter um CNPJ. A gente já existia desde 1988, mas não tínhamos o CNPJ e não éramos uma instituição. Nós passamos, então, a ser uma instituição.

A nossa assembleia geral é o comitê gestor que foi criado em 1995 e, com isso, a coisa seguiu.

OP - A gente tem no imaginário como marco da internet para o usuário comum a criação da web. O surgimento do www, na sua opinião, foi mesmo um divisor na história da internet?

Demi - A internet começa a acadêmica e ela tem ondas de invasão de não acadêmicos que acontecem quando, por exemplo, os BBS originais migraram para a internet entrou um monte de gente, um monte de neófitos na internet, com os programas deles e tudo mais.

O BBS era um sistema chamado Bulletin Board System, onde usuários discavam para um certo número e trocavam informações ali. Então, as primeiras ondas que vieram, nesse sentido, foram as ondas do pessoal dos BBS se conectando à internet. A web, na verdade, é um processo de hipertexto.

Até havia iniciativas anteriores, mas a grande jogada da web foi permitir você criar um um sítio seu. Quer dizer, a web tornou possível você criar conteúdo seu na rede, porque o correio eletrônico já vinha. Com a web, os usuários não acadêmicos invadiram a rede quando evidentemente as BBS se integraram a ela.

Então, isso já trazia a gente não acadêmica, mas a possibilidade de você criar conteúdo e seu conteúdo estar disponibilizado e ser acessado, marcando o fim dessa barreira de entrada.

Nas velhas estruturas você jamais poderia criar uma estação de rádio, exceto, se você tivesse licença de alguém e um espectro em algum lugar etc e tal.  Na internet, você podia criar uma estação de rádio que emitisse streaming para as pessoas.

Quando você tem capacidade técnica e banda para fazer isso e não tem nenhuma outra restrição, com custo baixíssimo, isso é um atrativo, realmente, do tipo que você não consegue resistir.

OP - Ali já era possível perceber os efeitos positivo e negativos que a internet teria?

Demi - A entrada de pessoas e a geração de conteúdo por todo mundo foi o início dessa explosão da internet.

A contrapartida disso foi que como nós somos comodistas, você ter o trabalho de gerar um sítio começaram a aparecer agregadores dessas coisas que os não gostavam muito chamavam de jardins murados.

Como, por exemplo, o America Online (AOL) e outros em que você ganhava um monte de recurso se você fosse associado àquele grupo de usuários. Então, se montaram clubes na internet e isso te deu conforto e te deu vantagem para conseguir coisas com menos esforços.

Teve a parte ruim da história que gerou uma centralização na internet que não existia antes disso. Antes de haver os grandes provedores de conteúdo e de comunidades, as redes sociais, você fazia seu conteúdo e divulgava de alguma forma na rede. Os buscadores que te achavam e alguém te visitava ou não.

Quando passou a ter essas redes sociais, você passou a morar dentro delas, eventualmente, porque ela te dava um monte de vantagem e isso gera, evidentemente, uma economia de esforço seu, mas gera uma centralização, talvez, não adequada na internet como um todo.

Então, esse é o mundo em que nós vivemos agora. Existe uma onda para buscar uma descentralização na internet e você tem os dois lados de alguma forma em equilíbrio melhor.

OP - Nesse sentido, a internet foi vista, por muito tempo, como uma forma de descentralização. O que vimos, no entanto, foi o surgimento de bolhas em que as pessoas se fechavam cada vez mais em grupos restritos. Como é que o senhor vê esse processo?

Demi - Sem entrar em explicações maliciosas ou perversas, é um fato natural (o surgimento de bolhas) e se você é um provedor de serviços de conteúdo para seus usuários, você gostaria que eles continuassem cada vez mais bebendo da fonte e cada vez mais ligados a você.

Então, surgiram algoritmos, sem entrar no mérito se eles têm intenções maléficas ou não. Claro que você pode usar com intenções maléficas. É o seguinte: eles tentam deduzir o que você gosta, o que você visita, o que você faz, para te entregar mais do mesmo.

Esse é um mecanismo que primeiro te gratifica, porque você encontra eco no que você faz. Você acaba tendo uma realimentação positiva do seu próprio tema. Porém, isso gera uma bolha, no sentido que você fica muito confortável lá e você não procura mais nada além disso.

Eu tinha uma amiga que, inclusive trabalha na área, e ela dizia: - É importante dar like em coisas que eu detesto porque se eu não fizer isso aí eu só recebo aquilo que eu gosto. Então, se eu der like em coisas que eu detesto, eu vou passar a ser coisas que eventualmente enriquecem o conjunto de dados que eu recebo.

Isso é bom, mas também é ruim porque você tem ferramentas que viram seu perfil. Então, de repente elas vão dizer: - Olha, essa pessoa é do tipo esquisito, ela dá like em negócios horrorosos. Quer dizer, aqui você sai da frigideira para o fogo.

É difícil você ver qual é o melhor esquema, porque você tenta driblar a ferramenta que te entrega só o que você quer e você acaba caindo do outro lado na ferramenta que te inquieta como sendo um cara que você na verdade não é. Então, de fato fazer uma coisa que vai ter que ser lentamente negociada e consertada.

Está cheio de coisas a fazer aí. O problema principal é cultural, do natural conforto e comodismo do sujeito, que quer ter o menor trabalho possível e receber se possível as informações do tipo que ele gosta.

Se ele torce por determinado clube, ele quer saber daquele clube e não dos demais clubes. Então, isso é natural e alguém explora isso com bastante sucesso.

Você é que tem de ser hábil para ver até que ponto isso é de fato útil a você e até que ponto você está limitando a sua visão do universo e fica dentro de uma bolha.

OP - O desenvolvimento da inteligência artificial causou certo alarde, inclusive entre as big techs, com o advento do ChatGPT e de algumas ferramentas similares. Como é que o senhor enxerga o impacto da popularização dessas ferramentas?

Demi - É fato que essas ferramentas dominaram a linguagem muito bem. Você consegue conversar com o ChatGPT com qualidade de português muito bom, melhor do que se encontra em muitos humanos por aí.

E elas são muito críveis e muito verossímeis no que escrevem. Eu acho que nós temos vários erros ao discutir ou analisar o uso dessas ferramentas. Por exemplo, o primeiro erro que se comete é dizer algo como: - Eu pedi para ele fazer uma conta e ele errou. Eu pedir para ele fazer um treco e ele errou.

Bom, é que você talvez esteja medindo errado. O objetivo do ChatGPT não é acertar uma conta, nem acertar uma previsão, nem acertar uma verdade que existe escondida em algum lugar, nem ser um oráculo. O que ele quer atualmente é ganhar a condição de ser um interlocutor seu. Se ele for esse interlocutor, ele conseguiu o objetivo dele.

Então, você vê ele inventar coisas, às vezes. O pessoal chama isso de alucinações ou seja lá o que for, mas ele está inventando essas coisas porque isso não faz parte da meta dele. A meta dele não é dizer alguma coisa que é verdadeira.

A meta dele é te manter entretido e conversar contigo como se estivesse falando com um amigo. Tanto que se você mostrar que ele errou, ele vai responder: -Me desculpe! De fato, você tem razão! Eu errei!

Então, nós estamos medindo a coisa pela métrica errada.

OP - E qual seria a métrica pela qual deveríamos medir essas ferramentas? Há razão para nos preocuparmos?

Demi - O que devia te preocupar ou te alegrar não é que ele erra. O que devia te preocupar ou te alegrar é o fato de que ele funciona como humano até nos erros.

Quer dizer, ele erra, reconhece o erro e pede desculpa, como qualquer humano que erra um problema de lógica ou de matemática. Ele não é um oráculo na área e também não é uma calculadora eletrônica e não é um buscador, tipo o Google.

Ele adquiriu uma característica muito humana que vários filósofos consideram a base do pensamento que é a linguagem. Quando você domina a linguagem, você domina a forma de pensar. A gente pensa de uma forma oral. Você pensa juntando palavras na sua cabeça, você não pensa juntando só imagens.

Então, eu acho que é essa luta, ele já ganhou. Ele fala muito bem, mas, quanto ao ChatGPT, eu alertaria para se ter cuidado sobre quais são os próximos passos. Uma coisa é usá-lo para melhorar seu texto, para melhorar sua fala, para melhor uma tradução. Essas são coisas ligadas ao discurso. Para as coisas ligadas aos discursos, ele já é um excelente auxiliar.

Daí para o pensamento lógico e para a decisão é um grande salto. Ferramentas são ótimas também para examinar detalhes que nós não temos condições de examinar.

Você tem ferramentas que examina uma chapa de pulmão e tiram conclusões melhores do que um médico porque o médico tem distrações e coisas que atrapalham a concentração dele naquilo e uma ferramenta fará aquilo sempre do mesmo jeito, mas de novo daí a ela decidir se o cara vai ser operado ou não você tem que ter uma intervenção humana.

Então, eu não tenho competência para ir fundo nisso, mas eu alertaria para não migrarmos de uma ferramenta auxiliar para uma ferramenta decisória. Todos os casos que já houve de decisão na área jurídica e em outras áreas ele cometeu barbaridades, porque ele não consegue se omitir da sua ideia básica que é falar.

Então, ele fala coisas que não existem. Cria coisas que não existem porque o objetivo dele é esse de ser o dono do discurso e não ser o dono da verdade.

Tenha acesso a mais conteúdo no Dei Valor!

Mais notícias de Economia

Curiosidades

Docência

Perguntado se poderia ser tratado como professor durante a entrevista, Demi Getschko concordou. Ele leciona arquitetura de computadores na PUC-SP

Comitê Gestor

O pesquisador é também conselheiro do CGI.br, que coordena e integra iniciativas relacionadas ao uso e funcionamento da internet no Brasil

O que você achou desse conteúdo?