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Há 30 anos era lançado ‘Da Lama ao Caos’, álbum que inaugurou o movimento Manguebeat
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Há 30 anos era lançado ‘Da Lama ao Caos’, álbum que inaugurou o movimento Manguebeat

O disco ocupa a 13ª posição na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Rolling Stone
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jornalista e crítico musical José Teles (Foto: José Teles/Acervo pessoal)
Foto: José Teles/Acervo pessoal jornalista e crítico musical José Teles

Há cerca de 30 anos, em 1994, era lançado o álbum ‘Da Lama ao Caos’, disco que inaugurou o Manguebeat, movimento pernambucano de contracultura que uniu ritmos regionais — como o maracatu — ao rock, hip hop e eletrônica. O álbum é considerado um divisor de águas no rock brasileiro. Ele ocupa a 13ª posição na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da Rolling Stone.

A agitação surgiu em um período de declínio econômico. Em 1990, Recife tinha sido considerada a 4ª pior cidade do mundo para se viver pelo Population Crisis Commitee. A pesquisa foi desenvolvida com base no desemprego, na violência e no enfraquecimento de políticas públicas.

Diante da situação, os idealizadores do Manguebeat, Fred 04 e Chico Science, buscaram questionar a situação social da cidade, além de revitalizar a cena cultural pernambucana com o movimento.

“O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”, diz trecho do texto ‘Caranguejos com Cérebro’, de 1992, que mais tarde viraria o manifesto do movimento.

Para entender um pouco mais sobre o Manguebeat, O POVO conversou com José Teles. Ele é jornalista, critico musical e autor dos livros ‘Do frevo ao manguebeat' e 'Da lama ao caos: que som é esse que vem de Pernambuco?'.

O POVO - Como o Manguebeat surgiu? Quais foram os principais elementos musicais e culturais que influenciaram a criação do movimento?

José Teles - Sintetizando, foi a reunião de jovens com fome de informação, e com os mesmos objetivos, ou seja, de desfrutar no Recife, o que jovens nos EUA ou Inglaterra desfrutavam, sem sair do País. Estavam a par das mais novas tendências da música internacional, e mesclaram estas informações com a própria música que faziam. Quem deu liga a esta química foi Chico Science, que trouxe informações de cultura popular para a turma, e vinha do hip hop e da música black americana. O momento também ajudou, com o surgimento de bares descolados um festival que logo seria a vitrine do rock dos anos 90 no país, o Abril pro Rock, e jornais simpatizantes ao Manguebeat.

O POVO - Quais foram os principais artistas e bandas que emergiram junto com o Manguebeat?

José Teles - As bandas que saíram das curtições dessa turma foram a Chico Science & Nação Zumbi, e Mundo Livre S/A, que já existia desde 1984, fazendo punk rock, e atualizou sua música, criando uma estética própria, com influência de Jorge Ben. Depois outros grupos foram se agregando ao que se convencionou chamar de Manguebeat.

O POVO - O caranguejo e uma antena fincada na lama são os dois principais símbolos visuais do movimento. A questão da lama também está presente no título e nas letras do disco de estreia de Chico Science com a Nação Zumbi. O que eles representam?

José Teles - A antena parabólica, porque era a novidade da tecnologia de informação na época. A lama, porque o Recife, e a região metropolitana, é de muitos manguezais. O Recife foi construído sob mangues. O mangue está presente tanto em que mora tanto na periferia quanto em bairros mais classe média. Chico morava numa rua que acabava num mangue, cresceu convivendo e brincando nos mangues. Quando pensou em criar algo que extrapolasse as divisas de Pernambuco deu-lhe o nome de mangue.

O POVO - Em algumas grafias - no inglês, por exemplo - o nome do movimento é escrito como MangueBIT, ao invés de MangueBEAT. O bit é um termo proveniente da linguagem de computador. ‘Da Lama ao Caos’ tem uma música que cita: “Computadores fazem arte/artistas fazem arte”. A questão da tecnologia era recorrente nas letras de músicas do movimento? Isso tinha algum significado?

José Teles - O manguebeat foi o primeiro movimento musical do País a usar computadores. Parte dos integrantes da turma que estabeleceu os parâmetros do movimento era ligada em linguagem de computadores. Um deles, H.D Mabuse, fazia parte da turma ainda adolescente, devia ser o único garoto em Olinda a possuir um computador pessoal. Ele fez parte de um trio, o Bom Tom Radio, com Chico Science e Jorge du Peixe, em que usava bases criadas num tosco computador DMX (acho que é assim que se chamava a máquina).

O POVO - Pode-se dizer que o Manguebeat foi influenciado pelo Movimento Armorial, que buscava desenvolver uma cultura “essencialmente” nordestina a partir de raízes populares?

José Teles - Nem um pouco. Em Pernambuco, sempre se trabalhou música com toques de manifestações da cultura popular do estado, que deve ser o mais rico do País nesta área. Maracatus, emboladoras, repentistas, cavalo marinho, ciranda, urso, coco, desde sempre faziam parte do cotidiano do recifense desde os anos 20, 30. Nos anos 60 foi muito forte. A MPB pernambucana dos anos 60 se valeu muito da cultura popular. A psicodelia dos anos 70 também. Tem maracatu no disco Marconi Notaro no Sub-Reino dos Metazoários, de Marconi Notaro, martelo agalopado no disco Paêbiru, de Lula Côrtes e Zé Ramalho. O Quinteto Violado e a Banda de Pau Corda, no inicio dos anos 70, também se valeram da cultura popular. O armorial também fez isto, porém mais com elementos da música e poesia oral do sertão. Aliás, a música armorial é uma derivação do que faziam os autores do erudito nacionalista, como Guerra-Peixe, Alberto Nepomuceno, Camargo Guarnieri e outros, nos anos 40.

O POVO - O primeiro álbum de Chico Science com o Nação Zumbi, o ‘Da Lama ao Caos’, aborda temas que vão desde a violência policial até a desigualdade social em Recife. Na sua visão, após 30 anos do lançamento, o disco continua a ter uma relevância sociopolítica?

José Teles - Acho que tem até mais, porque aquela época em relação a atual era de muita tranquilidade. Hoje a barra tá pesada, e Pernambuco é um dos estados mais violentos do Brasil, ou pelo menos tem algumas das cidades mais violentas, feito o Cabo de Santo Agostinho, um das cidades em que mais se mata gente no País.

O POVO - Como é a cena do movimento hoje em dia?

José Teles - Na verdade o Manguebeat nem foi um movimento. Foi mais uma movimentação, uma cooperativa, bandas como a Devotos e a Eddie existiam antes de Chico formar o Nação Zumbi. O que aquela turma fez foi religar o motor cultural do Recife, e cidades vizinhas, que sempre foi muito ativo, e estava devagar quase parando desde meados dos anos 70. Atualmente tem muita coisa nova, muito do passado recente, menos bandas de rock, muito rap, uma corrente meio MPB, que já chegou ao Sudeste, com autores gravados por Maria Bethânia, Zélia Duncan, Ney Matogrosso. A usina cultural não parou mais de moer.

O POVO - Como você vê a influência do Manguebeat em gerações posteriores de músicos brasileiros? Existem nomes populares atualmente que bebem da fonte do movimento?

José Teles - A Nação e a Mundo Livre continuam aí. Na época foram mais influentes, o Rappa, o Afro reggae, Pedro Luis e a Parede tinham muito da Nação Zumbi. Acho que bandas como BaianaSystem também, de certo modo, têm. A música fragmentou-se muito com a Internet, Chico Science & Nação Zumbi nunca tocou no rádio, hoje muito menos. A memória dele está muito viva no Recife, pelo Brasil há bandas covers, algumas muito boas. Talvez nos 30 anos de Da Lama ao Caos a gravadora faça alguma ação pra impulsionar os dois discos feitos por Chico Science. Falo apenas dele, porque aquele estilo das músicas que fez era apenas do CSNZ, as demais bandas faziam outros sons. A própria Mundo Livre S/A só tem uma música que fala de manguebeat, a Manguebit.

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