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Bárbara Goulart: análise sociológica das memórias de Jango e do presente político
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Bárbara Goulart: análise sociológica das memórias de Jango e do presente político

Neta do ex-presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar, a socióloga e pesquisadora reflete sobre o cenário político atual interligando com o passado
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FORTALEZA-CE, BRASIL, 13-03-2024: Barbara Goulart. (Foto: Aurelio Alves/O Povo) (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA-CE, BRASIL, 13-03-2024: Barbara Goulart. (Foto: Aurelio Alves/O Povo)

Doutora em Sociologia e pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iest), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bárbara Goulart é mais do que neta do ex-presidente João Goulart. Mas não deixa de ser neta de Jango.

Entre as memórias de família e a pesquisa acadêmica, ela traz uma análise sociológica do avô como personagem da política brasileira. Em paralelo, ela reflete o cenário político atual com os fatos do passado — principalmente a ditadura militar, que depôs Jango em 1964.

A socióloga é uma das personagens no novo documentário da plataforma de multistreaming O POVO+, “Castello, o Ditador”, que será lançado na próxima segunda-feira, 18. A produção abordará o período de instalação da ditadura militar e o papel desempenhado pelo cearense, primeiro presidente do regime dos generais. 

O POVO - No livro “O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart”, você aponta que, enquanto trabalhos bibliográficos focam em como o indivíduo viveu, a Sociologia da reputação foca em como o indivíduo é lembrado. Como você destaca isso?

Bárbara Goulart - O livro é um resultado da minha tese de doutorado que eu defendi, em 2020, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) como uma pesquisa de quase quatro anos. A ideia do livro, na verdade, foi defendida em uma tese no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ.

Eu sou socióloga e, apesar da minha pesquisa ser histórica, eu não sou formalmente historiadora. A ideia da tese é não tanto trabalhar em relação aos fatos sobre o governo João Goulart e, sim, em relação às memórias sobre esses fatos e como essas memórias acabam criando memórias sobre o indivíduo e construindo uma reputação sobre ele.

A minha ideia foi seguir um caminho de como Jango foi lembrado para outros grupos políticos, como ele foi lembrado pelas esquerda que viveram Golpe de 64; como ele foi lançado pelas esquerdas que vieram depois, já no período da ditadura, que atingiram as suas maioridade já no período da ditadura; como ele foi lembrado no período de redemocratização depois; e como ele foi lembrado nas crises políticas mais recentes que a gente viu no Brasil. A ideia é um pouco isso, assim, não pensar tanto no que ele fez, mas, sim, como ele foi lembrado por grupos políticos diferentes.

Nesse caso, a lembrança tem um componente emocional e afetivo muito forte. A gente não leva em consideração só os fatos, mas também as emoções que essa pessoa gera na gente. Quando a gente fala na reputação de um político, de uma figura pública, a gente não tá falando apenas de uma maneira neutra sobre essa figura pública. As nossas memórias em relação a essas figuras públicas envolvem um componente ideológico e emocional afetivo muito forte.

OP - Olhando para o passado, qual a sua análise sobre a presença de militares na política?

Bárbara - Eu acho que isso faz parte da história brasileira, o Brasil tem uma história muito autoritária e de pouca democracia. Nossa democracia é muito recente, se a gente pensar já na nossa democracia atual e também se a gente pensar nos poucos períodos de democracia que a gente teve antes, compreende períodos muito curtos.

A gente tem uma tradição autoritária no Brasil muito forte em que as decisões são tomadas de cima para baixo e em grande parte as pessoas que tomam suas decisões foram os militares. A gente vê isso desde a Proclamação da República no Brasil, a presença dos militares é muito forte. 

Nas situações de crise da democracia brasileira, alguns militares acham que um golpe é a melhor solução. Existe esse pensamento de que “O povo não sabe o que ele quer"; "a gente tem que mostrar para o povo o que que é realmente melhor para eles" e é só pensamento de que um golpe seria melhor solução e que os militares sabem mais o que é melhor para o país do que a própria população. Então, essa população não saberia votar [segundo avaliam os militares]. Isso estava presente em 64 se está presente até hoje.

OP - Hoje vivemos um conflito entre democracia e autoritarismo? Como você analisa?

Bárbara - O que eu falo também no meu livro é sobre a importância do Jango e como as memórias dele passaram-se associadas à democracia. Logo no início do golpe, Jango sofreu certas críticas pela esquerda, sendo chamado de conciliador. Então, houve uma situação de frustração entre as estrelas logo no primeiro momento do golpe.

Porém, com o tempo, com o endurecimento da ditadura e com essa conclusão de que não seria possível resistir, onde a própria luta armada não conseguiu resistir à ditadura, começou a se ver o Jango a partir de uma luz mais positiva e pensar: “Realmente, Jango estava certo e talvez a resistência não era possível”, e, principalmente, no momento de redemocratização a imagem do Jango começa a voltar à tona.

O que eu argumento no livro é que a imagem do Jango reaparece, justamente, nesses momentos de conflito entre a democracia e autoritarismo. No momento do impeachment [de Dilma Rousseff], a imagem do Jango reapareceu e, agora, nesse momento de autoritarismo de crise na democracia durante a eleição de Bolsonaro e agora nesse momento de crise da democracia novamente com uma tentativa de golpe, a imagem do Jango reaparece também no cenário público.

OP - Há uma relação semelhante no momento em que Jango foi derrubado, em 64, com o 8 de janeiro de 2023?

Bárbara - Eu acho que existe algo semelhante porque houve uma tentativa de golpe, assim como houve uma tentativa de golpe em 64. Porém, a grande diferença, é que o que aconteceu agora, no Governo Lula, foi uma tentativa de golpe, não foi um golpe de fato.

Foi uma tentativa fracassada de golpe, enquanto em 64, foi um golpe realmente bem-sucedido em que  se instalou uma ditadura militar. Esse discurso de que: “Ah, o que aconteceu agora foi pior do que o que aconteceu em 64, e por isso é mais importante a gente pensar no que está acontecendo agora e esquecer 64, que já faz muito tempo e foi algo superado”. Eu discordo totalmente desse posicionamento.

Eu acho que a gente tem que lembrar do que aconteceu em 64, sim, justamente para evitar que aconteça novamente e para a gente preservar a nossa democracia que está em risco. Eu espero que não tenha outras tentativas de golpe e que a gente continue vivendo uma democracia.

OP - Você acredita que vivemos uma situação semelhante ao período do Governo Goulart?

Bárbara - A gente está em um momento de crise de democracia assim como teve em 64. Porém, eu acho que tem algumas questões diferentes. O poder dos militares naquela época era muito maior do que eles têm hoje. Eles têm poder hoje, mas é muito mais limitado pela Constituição. A gente hoje não vive um momento de Guerra Fria. O golpe de 64 aconteceu em um contexto de Guerra Fria, entre medo do comunismo, onde tinha acontecido a Revolução Cubana, e se tinha esse medo de que os países da América Latina fossem se tornar comunistas.

Não por acaso, o golpe no Brasil foi seguido por golpes em outros países na América Latina, como Argentina e Chile.

OP - Jango governou o Brasil com dois modelos: parlamentarismo e presidencialismo. Essa discussão vez ou outra aparece no Brasil sob o pretexto de que o modelo de presidencialismo atual estaria desgastado. O que você acha?

Bárbara - São situações diferentes. Quando Jânio Quadros renunciou e o Jango foi tomar posse, houve essa essa articulação para que ele não tomasse posse sobre o sistema presidencialista e sim pelo sistema parlamentarista. Porém, essa foi uma maneira de diminuir os poderes que Jango teria como presidente. Isso não foi algo organizado pela sociedade, não, foi algo discutido brevemente e não houve nenhum tipo de plebiscito para que o parlamentarismo fosse implementado. Isso foi uma decisão de última hora que o Jango acabou aceitando para tomar posse.

Isso foi algo que o imposto pelos grupos mais conservadores. Muito pelo contrário, houve um plebiscito posterior em que a grande maioria da população escolheu o presidencialismo como o melhor tipo de governo e o Jango tomou posse e se tornou presidente no sistema presidencialista.

O parlamentarismo acabou porque o presidencialismo tinha ganhado larga vantagem e grande margem de votos. No final do governo dele, ele conseguiu tomar posse sobre o que chama de presidencialismo. Em relação ao que acontece hoje, existem realmente diversas críticas em relação ao presidencialismo de coalizão, que a gente chama no Brasil, em que o presidente é eleito em separado do Legislativo, e que ele precisa da maioria dos Legislativo para governar.

Existem certos debates em relação ao que seria o melhor tipo de governo. De repente seria possível implementar um parlamentarismo ou algum tipo de governo misto. Eu acho que é um debate legítimo, que é algo que poderia ser feito, sim, mas a partir de um debate entre a população e um plebiscito que a maioria da população decidisse e não algo imposto, como foi durante o governo João Goulart. Esse tipo de mudança de governo teria que ser algo para melhorar a sociedade, onde ela decidisse.

OP - O que é a nostalgia democrática?

Bárbara - A tese foi escrita durante o governo Bolsonaro. Em momentos de crise, a imagem de um governo democrático se torna mais positiva. A gente para e pensa: “Era tão bom naquela época em que a gente podia sair na rua e [ir] para as manifestações"; "Era tão bom o momento em que a gente tinha um governo em que os direitos dos trabalhadores eram assegurados, um governo em que buscava diminuir as desigualdades”.

Durante o governo Bolsonaro, vimos que a imagem do Jango ficou muito forte entre a esquerda por se lembrar dessa democracia que se perdeu. Se perdeu em 64 e estava ameaçada no governo do Bolsonaro e está ameaçada atualmente também. A nostalgia democrática aparece um pouco nesse sentido de a gente se lembrar como é bom ter uma democracia e como ela tem que ser sempre preservada.

OP - Enquanto socióloga, quais você considera os maiores desafios da política brasileira atualmente?

Bárbara - É o desafio da radicalização política que a gente vê no cenário político atual. As pessoas estão com muita dificuldade de dialogar e chegar a um consenso e o grande desafio é pensar como a gente pode seguir daqui para frente mantendo essa democracia.

Sempre vão ter pessoas que não vão concordar com a gente e que pensam totalmente diferente, mas o que a gente tem que concordar é em relação à democracia. Desde que a outra pessoa defenda a democracia, a gente tem que estar disposto a dialogar com ela, independentemente de ela ter posicionamento político diferente da gente.

Temos que pensar o que a gente pode fazer para melhorar o nosso País para que esse diálogo seja possível e para que essa democracia seja fortalecida. Algumas das soluções possíveis de alguns grupos colocam, justamente, um parlamentarismo. Não sei se é uma discussão válida. Teria que pensar melhor e acho que a gente pode discutir como sociedade, mas, independentemente da solução que a gente chegue, eu acho que o primeiro passo é o diálogo e a tolerância.

Eu sempre falo que uma das características muito fortes do meu avô era tolerância, não por acaso ele era chamado de conciliador e, às vezes, para algumas pessoas ser conciliador é visto como uma crítica. Para mim, ser conciliador é uma qualidade extremamente positiva. É importante a gente estar aberto ao diálogo e, às vezes, neste momento, essa abertura para o diálogo falta. É só através da negociação, do diálogo, que a gente vai conseguir manter a nossa democracia.

Livro

Em 2022, a socióloga lançou o livro “O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart”. Produção foi tese de doutorado defendida Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Golpe de 1964

O golpe de 64 completa 60 anos em 2024. O episódio tirou do poder o presidente brasileiro João Goulart e deu início à ditadura militar, que perdurou 21 anos

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