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Divaldo Franco: As muitas vidas de um espírito
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Divaldo Franco: As muitas vidas de um espírito

Líder espírita, Divaldo Pereira Franco, que desencarnou aos 98 anos, popularizou a doutrina num país de maioria católica
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Divaldo Franco (Foto: Fco Fontenele)
Foto: Fco Fontenele Divaldo Franco

Aos 7 anos, Divaldo contou em casa que um espírito o perseguia aonde fosse. Receava que lhe fizesse mal, embora não soubesse àquela altura do que se tratava. Homem curvado e de rosto encoberto, nele era indistinguível qualquer silhueta, exceto os contornos afogueados no centro dos quais brilhavam dois olhos. Apelidou-o mais tarde de "máscara de ferro".

Das sete décadas dedicadas ao espiritismo, o baiano Divaldo Pereira Franco, desencarnado na terça-feira passada (13) prestes a se tornar centenário, foi ladeado por essa companhia durante 30 anos. Nesse período, recebeu costumeiramente a visita indesejada e cujo propósito ele já adivinhara: colocar fim à doutrina kardecista no Brasil.

Leia entrevista de Páginas Azuis com Divaldo Franco

Não conseguiria. Um dia, nas palavras do próprio Divaldo, uma criança desnutrida aproximou-se da Mansão do Caminho, instituição filantrópica fundada por ele, em 1952, no bairro de Pau da Lima, em Salvador. Sozinha, procurava ajuda. Foi acolhida pelo médium, que lhe deu de beber e de comer. Logo descobriria que o garoto era o espírito reencarnado da mãe daquele espectro que o seguia de perto desde menino.

Tudo mudou, então. De perseguidora, essa entidade comunicante tornou-se colaboradora, contribuindo com a obra de Divaldo, talvez a maior referência desse conjunto de princípios decodificados por Allan Kardec muito tempo antes, misto de ciência, filosofia e religião que explicita as leis que regem a interface entre vida espiritual e terrena.

Daí a natureza pedagógica da história, narrada oral e textualmente muitas vezes por Divaldo, de modo a deixar claro como se dava a interlocução entre mundo material e imaterial, base dessa intercessão que fundamenta o espiritismo. O religioso estava certo de que podia se conectar com esse "lado de lá do espelho", aproximando as dimensões de uma trajetória que se mostrava comum e sem fronteiras: o fluxo interrupto de nascimento/vida.

Era o que havia intuído muito cedo, a ponto de os pais o açoitarem por supor que tinha o diabo em si quando se encontrava em conversações mais demoradas com essa esfera evanescente e invisível para a maior parte das pessoas, vedada apenas em aparência.

Professor, filantropo, orador, médium, escritor e líder, Divaldo foi muitos nesta encarnação. Eram convergentes para o mesmo corpo, que cuidava de se multiplicar. Trabalho social, de saúde, educacional, financeiro - a Mansão do Caminho, que atende a milhares, punha-se a serviço de toda sorte de gente necessitada de abrigo.

Antes, porém, houve o Centro Espírita Caminho da Redenção, que se estabeleceu na capital da Bahia, resultado da cooperação entre Divaldo e Nilson de Souza Pereira (1924-2013) quando o baiano contava somente 20 anos. A ele se seguiu uma série de iniciativas cujo objetivo era sobretudo prático: ir além da assistência, assegurando formação para jovens pobres, estendendo-se a outras áreas.

Esse era o Divaldo "obreiro" e cioso de suas tarefas de cidadão, uma marca que não se desfaria sequer pela aproximação tardia com figuras políticas reacionárias, tal como Jair Bolsonaro. Em paralelo, havia também o Divaldo autor de mais de duas centenas de livros oriundos de atividade mediúnica, dos quais o primeiro foi "Messe de amor", publicado ainda em 1964, creditado ao espírito que lhe seria guia por toda a andança: Joanna de Ângelis.

E, finalmente, o Divaldo orador e conferencista, hábil na apresentação e popularização do espiritismo num país majoritariamente católico. Pelos dados oficiais (censo do IBGE de 2010), há 3,8 milhões de seguidores da doutrina de Kardec no Brasil, atrás apenas do catolicismo e dos evangélicos. Em números absolutos, trata-se de um feito, que se explica talvez pela morfologia da paisagem nacional, já inclinada a cultivar denominações que se constituem nesse intercâmbio com as representações extracorpóreas, ou seja, crenças cuja espinha-dorsal é o apreço pelo encantamento e pela intervenção de forças além-mundo.

Veja-se o sincretismo, por exemplo, que nada mais é do que o cruzamento de matrizes diversas plantadas em solo pátrio (africanas, indígenas, europeias etc.). Foi nesse território que o espiritismo se aclimatou facilmente, em parte por suas características, em parte pelo empenho de lideranças de vocação para esse exercício missionário.

Eis, assim, um derradeiro papel de Divaldo, que se encontrava numa encruzilhada também de linguagens. Psicografando, era um tradutor das mensagens de ao menos seis espíritos mais profícuos: Vianna de Carvalho, Amélia Rodrigues, Manoel Philomeno de Miranda, Victor Hugo, Marco Prisco e Rabindranath Tagore. Todos formal e estilisticamente distintos uns dos outros, valeram-se do médium como canal para se expressar sobre temas variados, da compaixão às questões filosóficas.

Numa entrevista depois recolhida em livro, o espírita confessaria: "Foi em 1949 que senti imperiosa vontade de escrever, acompanhada de estranha sensação no braço, bem como ansiedade de difícil descrição". Esse frêmito inédito, que o havia repentinamente acometido, era já uma mensagem entre tantas que receberia ao longo do tempo.

O estremecimento que o convocava ao amor e à palavra só se aplacaria na passagem. Era por volta das 21h45min da terça passada quando, acomodado na mesma Mansão do Caminho onde havia criado mais de 600 filhos por adoção, Divaldo transpôs essa divisória, após mais de um ano pelejando com uma doença contra a qual não havia mais nada a fazer. Pela primeira vez desde a infância, experimentava o silêncio.

 


Social

O outro campo de lutas
de Divaldo foi a filantropia, tão importante quanto
sua atividade
religiosa-doutrinária

Sucessor

Nesse âmbito, Divaldo exerceu papel só comparável ao de Chico Xavier, maior liderança da doutrina kardecista no País

Diálogo

A obra do baiano Divaldo Pereira Franco se estrutura em dois campos. Um deles é o da divulgação e popularização do espiritismo

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