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Daniel Rezende: "O público agradece quando é respeitado", afirma Daniel Rezende,
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Daniel Rezende: "O público agradece quando é respeitado", afirma Daniel Rezende,

Diretor Daniel Rezende fala sobre os desafios na primeira adaptação para o cinema do livro homônimo de Valter Hugo Mãe
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REBECA Jamir, Johnny Massaro e Rodrigo Santoro (Foto: Netflix/Reprodução)
Foto: Netflix/Reprodução REBECA Jamir, Johnny Massaro e Rodrigo Santoro

A gente foi apostando cada vez mais no silêncio e isso foi uma coisa dele também", conta Daniel Rezende sobre o trabalho com Rodrigo Santoro em "O Filho de Mil Homens", filme que chegou na plataforma da Netflix no dia 19 de novembro.

Conhecido como um autor de filmes mais elétricos, como "Bingo: O Rei das Manhãs" (2017) e os dois filmes da saga "Turma da Mônica" (2019 e 2924, respectivamente), a grande surpresa da audiência ao assistir seu novo filme é se deparar com os silêncios de pessoas atravessadas por angústias muito diferentes.

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Primeira adaptação de um livro de Valter Hugo Mãe, a trama começa com a solidão do Crisóstomo (Santoro), um pescador que lamenta nunca ter tido um filho. Daí em diante, uma série de outros personagens vão surgindo para criar uma reflexão sobre família, cheia de aflição e esperança. "Ele escreve de maneira tão apaixonante, tão poética, que essa era a grande armadilha do filme. Fui me soltando da palavra dele", conta sobre o processo de adaptação.

Com um esforço técnico visual e sonoro impressionante em torno desses personagens que vivem à margem de um paraíso aprisionado, a coprodução com a Netflix fez com que o filme tivesse um período reduzido de exibição nas salas de cinema para priorizar a estreia na plataforma de streaming. "Eu acharia lindo se os filmes originais ficassem mais tempo no cinema. Todo mundo ganharia", opina. Confira a entrevista:

O POVO - No processo de adaptação do livro para o cinema, o que precisou ficar de fora?

Daniel Rezende - De ordem prática, não deu para colocar todas as histórias e todos os personagens. Quando comecei a trabalhar no projeto, além da ousadia de querer adaptar um Valter Hugo Mãe, também foi a primeira vez que resolvi escrever um roteiro eu mesmo e transformar isso num projeto pessoal. Foi difícil entender que eu tinha que me desvencilhar da palavra do Valter. Precisava me desapegar. Ainda que tenha sobrado um pouquinho da poesia dele, que eu coloquei em off, tentei ir tirando da boca dos personagens. A maior dificuldade foi isso: ele escreve de maneira tão apaixonante, tão poética, que essa era a grande armadilha do filme. Fui me soltando da palavra dele. Principalmente no personagem do Crisóstomo. No filme, ele é muito silencioso, e no livro ele não é tão silencioso. ele fala mais, fala coisas lindas. No livro, todos os personagens têm algum passado, menos o Crisóstomo. A gente não sabe o passado dele. Então criar esse passado foi fundamental para entendermos, não racionalmente, mas sensorialmente, quem era esse homem tão longe dos ideais de homem que nos foram contados.

OP - Neste ano o Rodrigo viveu também um "homem do mar" no Último Azul, do Gabriel Mascaro, mas que é muito diferente desse. Como foi o seu trabalho com ele? Como vocês chegaram nesse personagem silencioso?

Daniel - O Rodrigo é um grande patrimônio cultural do nosso país. Digo e repito: que sorte viver no mesmo tempo que um artista, um talento e um ser humano como o Rodrigo. Quando mandei o roteiro pra ele, ele não tinha lido o livro, mas conhecia o Valter Hugo Mãe. Ele leu e ficou maravilhado com a história. Mas dizia: "Como é que faz esse personagem? Eu não tenho a menor ideia de como fazer. É difícil transformar esse personagem". Ainda que a gente esteja no mundo da fábula e do realismo mágico, ele tem que ser de carne e osso. A gente foi apostando cada vez mais no silêncio. Isso foi uma coisa dele também. No roteiro, ele dizia: "Ele não precisa falar isso". Trabalhamos muito como o Crisóstomo, que no filme é alguém muito conectado com a natureza, mas não com as pessoas. A gente invertia ordens de frases, invertia conjugações. Não para ele falar errado, mas para que a lógica dele fosse outra lógica. Toda vez que ele podia ficar em silêncio, a gente apostava no silêncio. Foi um pacto conjunto de criar esse personagem do não-dito. Trabalhamos com olhares, toques, símbolos, situações. Acho que foi um dos personagens mais difíceis e mais diferentes que ele já fez. Por isso ele tinha certo receio no começo. Mas agora, vendo o filme, a gente fica muito feliz com todas as escolhas, até com aquelas de que não tínhamos muita certeza.

OP - Assim como o silêncio, o tom meditativo do filme está em todas as esferas técnicas, com destaque para a cor. É uma cor fria, e você faz isso de maneira emocionante, o que não é fácil. É um filme com tanto "paraíso", mas sem cor saturada, com cor fria. Como vocês chegaram nisso?

Daniel - Dos trabalhos que fiz, eu gosto de cor. "Bingo" é ultra colorido, "Turma da Mônica" é supercolorido, "Ninguém Tá Olhando" é supercolorido. Então foi um processo conjunto com o fotógrafo Azul Serra, a diretora de arte Taísa Malouf e a figurinista Manuela Mello. Todas as escolhas visuais tinham que ser narrativas. O Crisóstomo era a "luz laranja", essa energia da natureza que ele pega do corpo e joga para o planeta. Mas ele tem uma casa azul. A gente queria que o filme começasse mais frio, mais dessaturado, mais esmaecido, com cores pastéis. E à medida que os personagens fossem se cruzando, essa luz laranja dele ia tomando conta da fotografia. A tela do filme começa mais fechada, quase 4:3, e termina em 16:9, ela vai se expandindo. E a cor começa a vir, principalmente o laranja. O filme termina naquele jantar com a pele das pessoas totalmente laranja. Essas decisões foram tomadas por uma questão dramática e sensorial para que o filme fosse esquentando, ganhando tom, ganhando espaço visualmente. Não chegamos nisso do dia para a noite. Tentamos vários caminhos. Mas esse brilhou o meu olho, o do Azul, o da Taísa, o da Manu… e funcionou muito bem.

OP - Você deve ter acompanhado a discussão sobre a Netflix comprar a Warner, e isso reacendeu a conversa sobre "filme de cinema" e "filme de streaming". Seu filme teve exibição nos cinemas, mas a estreia principal foi no streaming. O filme tem uma riqueza visual enorme, mas foi pensado para ser lançado massivamente no streaming? Isso moldou o projeto?

Daniel - Não. Quando a Netflix se interessou pelo projeto, pensamos muito nos caminhos a seguir. Mas desde o começo, o desenho era o mesmo que a Netflix faz para filmes originais: lançamento restrito no cinema. "Frankenstein" ficou duas semanas, a gente ficou três, quase quatro. É a mesma linha de pensamento de "Roma" e outros projetos da Netflix que têm potencial para o público de cinema. Hoje teve essa fusão e o pronunciamento do Ted Sarandos, e quem sou eu para dizer qualquer coisa sobre o planejamento da Netflix. Mas acho importante pensar no que é melhor para o mercado e para as pessoas. Eu acharia lindo se os filmes originais ficassem mais tempo no cinema. Todo mundo ganharia. Quando decidimos ir com a Netflix, sabíamos que independentemente da janela do cinema, o poder deles de chegar no mundo inteiro seria importante. Esse filme vai na contramão do algoritmo e a reação das pessoas tem sido muito calorosa. Acho que o público é muito mais inteligente do que às vezes o mercado acha. O público agradece quando é respeitado, provocado, quando recebe algo que não estava esperando. Toda cultura tem uma contracultura. Agradeço a Biônica Filmes, a Barry Company e a Netflix por terem tido a ousadia de investir num filme assim. Que venham mais filmes sobre afeto, sobre masculinidade saudável, que expandam o conceito de família. Seja pela Netflix, seja por qualquer produtora, estúdio ou streaming.

 

O Filho de Mil Homens

Onde assistir: Netflix

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