Logo O POVO+
Cinebiografias levam artistas brasileiros dos discos à tela de cinema
Vida & Arte

Cinebiografias levam artistas brasileiros dos discos à tela de cinema

Sucesso nos cinemas, as cinebiografias ganham apoio do público brasileiro que vibra ao ver a história de ícones da música nacional projetados em uma grande tela
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Foto: Angelica Coutinho/divulgação "Nosso Sonho" relembra carreira de Claudinho e Buchecha

Como condensar décadas de vida em uma obra de no máximo duas horas? Esse é um dos questionamentos em torno da produção de cinebiografias musicais. O gênero, popularizado no Brasil a partir dos anos 2000, ganhou um novo fôlego com o lançamento de longas que retratam a vida de ícones da música popular brasileira. É o caso de "Homem com H", cinebiografia de Ney Matogrosso, que ultrapassou a marca de 600 mil telespectadores desde sua estreia, conforme divulgado pelo site Filme B Box Office Brasil.

LEIA TAMBÉM | Homem com H é o filme mais assistido da Netflix; Jesuíta Barbosa agradece

"É impossível descrever a vida de um ser humano em um filme", disse Ney Matogrosso em sua autobiografia "Vira-Lata de Raça" ao comentar sobre o longa "Cazuza - O Tempo Não Pára" (2004). Sua opinião parece ter mudado desde a publicação do livro, em 2018, pois Ney participou ativamente da produção de "Homem com H", chegando a ler 12 tratamentos do roteiro escrito pelo diretor Esmir Filho.

Ao longo dos seus 129 minutos, o filme perpassa pelos problemas paternos do artista, interpretado por Jesuíta Barbosa, até sua estreia no Secos & Molhados. Em seguida, adota elipses temporais para dar conta de momentos marcantes como o relacionamento com Cazuza (Jullio Reis), a reinvenção na carreira e a gravação da música que rendeu o título do longa.

"É preciso fazer escolhas porque, a depender do retratado, tem muitos eventos que queremos retratar", diz Mariana Marcondes, produtora executiva dos filmes "Homem com H" e "Meu Nome é Gal", em entrevista ao O POVO. Com mais de dez anos de experiência, ela ajudou a recontar a história de ícones musicais por meio da produtora Paris Entretenimento.

"Meu nome é Gal"  é protagonizado por Sophie Charlotte(Foto: Divulgação/PARIS FILMES)
Foto: Divulgação/PARIS FILMES "Meu nome é Gal" é protagonizado por Sophie Charlotte

"Existe uma importância cultural em produzir cinebiografias. Não é só pelo público, mas especialmente no contexto de construção da identidade de um país, elas atuam como instrumentos de memória, transformando lembranças individuais em patrimônios coletivos e valorizando a música como patrimônio cultural", explica Mariana sobre a tendência do mercado em produzir cada vez mais obras do gênero.

Apesar do sucesso recente, as cinebiografias musicais não são um fenômeno inédito no cinema nacional, com uma de suas primeiras produções datando de 1952. "Tico-Tico no Fubá", dirigido por Adolfo Celi, foi pioneiro ao retratar a vida do compositor Zequinha de Abreu, interpretado por Anselmo Duarte. No entanto, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, a tendência era que cantores da Jovem Guarda, como Erasmo Carlos, Wanderléa e Roberto Carlos, interpretassem versões fictícias de si em filmes que não necessariamente contavam suas vidas.

Foi apenas na virada do século XX para o XXI que as cinebiografias musicais começaram a pipocar. Em 2000, "Villa-Lobos - Uma Vida de Paixão" trouxe Antônio Fagundes no papel de Heitor Villa-Lobos, um dos mais importantes compositores do País. Quatro anos depois, o Brasil parava para conferir Daniel de Oliveira no papel de Cazuza, vocalista do Barão Vermelho e grande poeta do rock, que teve sua história resumida em um longa de 98 minutos.

Dentre os cortes feitos para contar sua vida no cinema, um dos mais notáveis foi a ausência de Ney Matogrosso, responsável por dirigir e iluminar o espetáculo que dá nome ao longa. A relação dos dois é finalmente transposta para a tela do cinema em "Homem com H" - que sintetiza o romance que durou três meses, mas foi essencial para as carreiras de ambos.

Leia na Coluna Discografia | Cinebiografia traça retrato sincero e impactante de Ney Matogrosso

Mariana Marcondes conta que lidar com as expectativas dos fãs é uma imensa dificuldade na produção de cinebiografias. "Às vezes, as pessoas querem ver um personagem ou passagem que marcou o imaginário delas, mas que não foi necessariamente relevante dentro da história do biografado".

Ainda em sua autobiografia, Ney revela que disseram que ele era um "personagem muito grande" e não cabia na cinebiografia de Cazuza. No livro, ele dedica um capítulo inteiro para contar a história de amor entre os dois.

Essa preocupação de colocar momentos-chave para o artista e para o público também foi algo que esteve no radar de Mariana durante a produção de "Homem com H". "Quando buscamos uma biografia, queremos saber mais sobre a vida daquela pessoa. Queremos nos inspirar. No meio musical, isso com certeza vai estar conectado com as músicas que marcaram cada momento da vida daquele artista", declara.

A produtora revela que parte de suas funções, além de contribuir criativamente, consiste em acompanhar de perto a escrita, a escolha e a preparação de elenco, além de administrar e garantir a execução do projeto. Mariana também elucida que para conseguir as canções que aparecem nas cinebiografias, é preciso trabalhar em conjunto com o departamento jurídico e um profissional de "clearance musical", o responsável por obter permissões de terceiros.

"Os filmes 'Homem com H' e 'Meu Nome é Gal' foram cinebiografias autorizadas. Os artistas estavam de acordo com suas histórias serem contadas. Isso não facilita diretamente a negociação, visto que fonogramas são de autoria de múltiplos artistas e controlados por editoras e gravadoras, mas indiretamente todos os envolvidos ficam mais dispostos a encontrar bons acordos", detalha.

Com as músicas autorizadas, Mariana conta que é preciso ter muito cuidado na produção de uma cinebiografia porque às vezes o artista biografado pode ter uma visão "muito romantizada" de si ou é a família que cuida dos direitos de imagem, limitando o lado criativo da produção.

"Muitas vezes vamos tocar em assuntos delicados, mas que são importantes dentro da obra, então temos que ter jogo de cintura. Construir uma relação de confiança é essencial para que o filme encontre soluções criativas para todas as dificuldades que existem ao contar a história de uma vida em duas horas de filme", diz a produtora.

Apesar dos fãs que essas obras atraem, Mariana não enxerga cinebiografias como uma jogada fácil em termos de garantir audiência. "Uma cinebiografia já vem com público, mas esse também pode ser um 'calcanhar de Aquiles', porque é um público fanático, apaixonado e altamente crítico, que se você não conseguir agradar, pode repercutir negativamente", comenta.

No entanto, ela reconhece o apelo de produzir filmes como estes: "Cinebiografias costumam retratar artistas que marcaram época, que têm histórias de vidas intensas e geram identificação e inspiração. Elas conseguem estabelecer uma conexão emocional intensa porque a própria música tem este poder, e juntando com uma narrativa envolvente e um visual impactante, temos um conteúdo altamente atrativo".

Filme
Filme "Nosso Sonho"

Do sertanejo ao funk, o sonho não vai terminar

Dentre o gênero das cinebiografias musicais, um filme em especial se destaca pela sua proposta e alcance. É o caso de "Dois Filhos de Francisco", lançado em 2005, que conta a história da dupla sertaneja formada por Zezé di Camargo e Luciano. Segundo o levantamento feito pelo Filme B Box Office Brasil de público nacional dos anos 2000 a 2023, o longa se encontra na nona posição de mais vistos com mais 5 milhões de espectadores e R$ 36 milhões arrecadados.

O sucesso mostrou um padrão: as cinebiografias musicais precisavam de um fio narrativo que seja mais que a ascensão meteórica do artista. No caso de "Dois Filhos de Francisco", além da luta contra a pobreza, o sonho de cantar é o que conecta a família, servindo até mesmo para vencer o luto de um filho perdido.

A trama dirigida por Breno Silveira serviu de pesquisa tanto para a produtora Mariana Marcondes, quanto para Fernando Velasco, roteirista de "Nosso Sonho", cinebiografia da dupla Claudinho e Buchecha. "Eu queria fazer uma coisa mais coreografada, menos realista e mais circense", diz Fernando sobre a concepção do longa. "'Dois Filhos de Francisco' deu a referência de tom para a gente da produção. E essa é uma história sobre pais e filhos, assim como 'Nosso Sonho'", explica.

Fernando diz que a ideia de contar a história de Claudinho e Buchecha começou na adolescência. O roteirista lembra de uma memória afetiva das pessoas ao ouvirem as músicas da dupla, não importando se estivessem em uma festa ou reunião, elas "entravam na mesma sintonia". Foi então que, atraído pela sensibilidade que havia naquela relação, ele começou a elaborar o roteiro.

Escrito a oito mãos por Fernando Velasco, Maurício Lissovsky, Daniel Dias e Eduardo Albergaria, o longa tinha a missão de contar a origem da dupla de funkeiros passando pelo trágico acidente que ceifou a vida de Claudinho em 2002. O recorte escolhido foi um que se inicia na infância de Buchecha e vai até momentos depois do acidente, dando uma ideia de destino e continuidade sem apelar para um fim de notas trágicas.

"Um artista tem que confiar. Muita gente criticou o recorte temporal do filme. Opinião todo mundo tinha, mas não tem fórmula. Cada história pede seu tratamento, e a mesma história comporta múltiplos tratamentos. É uma proposta como de qualquer ficção", responde Fernando.

O roteirista explica que conversou bastante com Buchecha, na casa do artista, mas que, a partir disso, sentiu-se na liberdade de escrever sem se ater à realidade. "O Buchecha me disse: 'Fernando, às vezes, um filme vale mais do que uma história', e eu entendi exatamente o que ele quis dizer", conta.

A partir desse momento, Fernado diz que se sentiu autorizado a ficcionalizar o que precisasse, mas se mantendo fiel ao que poderia ter sido. Segundo ele, o que não se pode existir no filme é o "que não poderia ter sido, o que não faz parte do repertório e da experiência".

A colaboração de Buchecha rendeu a ele o crédito do produtor da cinebiografia, que, segundo Fernando, foi aprovada pelo artista que enviou diversos áudios emocionados quando a assistiu. A reação foi uma surpresa e um alívio, diz o roteirista, já que Buchecha deu uma "liberdade enorme" ao projeto.

"Nosso Sonho" se tornou um sucesso de público. Alcançou a marca de 539 mil espectadores e arrecadou mais de R$ 8 milhões, se tornando o filme nacional de maior bilheteria de 2023. Números como estes mostram que assim como a música feita por artistas como Claudinho, Buchecha, Ney Matogrosso, Cazuza e Gal Costa, o sonho de cantar não termina nunca. Ele se reinventa por meio de livros, documentários e, principalmente, cinebiografias.

 

Quais as próximas cinebiografias musicais?

Anunciada no dia 1º de junho deste ano, a cinebiografia da cantora Cássia Eller está agendada para começar suas gravações até 2026. Produzido pela Migdal Filmes, o longa está sendo desenvolvido pela produtora Iafa Britz que recebeu a autorização da família para conduzir o projeto. Informações como elenco, direção e data de estreia ainda não foram divulgadas.

Com produção da 02 Filmes, Elza Soares ganhará vida no cinema interpretada por Taís Araújo. A cinebiografia, que ainda não possui título, mas tem previsão de filmagens para o segundo semestre de 2026. O roteiro está sendo escrito por Patrícia Andrade e Viviane Pistache e o longa também não possui data de estreia.

Acumulando seis décadas de trabalho, o cantor Roberto Carlos é um dos artistas que está participando ativamente da produção de sua cinebiografia. O projeto intitulado provisoriamente de "Detalhes de Uma Vida" estava sendo conduzido pelo diretor Breno Silveira, morto em 2022, mas será dirigido por Maurício Farias, que também assina "Hebe: Nasce Uma Estrela" (2018). O longa será gravado no Espírito Santo com previsão de lançamento para 2026.

 

O que você achou desse conteúdo?