Apesar de estar no olho do furacão, naquele momento, ela não entendia. Sabia que estava em um relacionamento sofrível com o então companheiro. Mas a clareza de que não era a culpada pelas agressões psicológicas que passava lhe faltava. O impulso divisor de águas para se desvencilhar de um relacionamento abusivo ocorreu quando a própria vida foi colocada em risco. A escritora Kah Dantas, assim como inúmeras mulheres, teve as estruturas de apoio minadas, bem como a percepção de si mesma. No relacionamento tóxico, o apagamento do outro exercido pelo abusador fere e se consolida das mais diversas formas.
"A princípio você não percebe, a autoestima é destruída. Você acredita que o que você passa é sua culpa, que ninguém mais vai te querer. Eu sabia que era ruim, que estava sofrendo, mas não entendia que a culpa não era minha", relata a escritora. Ela resgata a lembrança de um momento de suspensão da credulidade: "Você não acredita que aquilo tá acontecendo, pensa que tudo vai voltar a ser como era antes. Acredita que ele não é desse jeito. Que o normal era no começo, quando tudo era ótimo".
Psicóloga do Núcleo de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Úrsula Malveira Góes fala sobre a associação esse tipo de relacionamento à cultura machista. "O homem acha que a mulher não deve usar determinado tipo de roupa, sair com determinadas pessoas. Não quer que trabalhe ou estude. Com uma fala de zelo, cuidado e respeito vai tirando a autonomia dela. O que mais segrega alguém de ser um ser social ativo e participante? Quando você impossibilita a mulher de ser participante, mina a autoestima, a possibilidade de autodefesa", explica.
Uma das características da violência psicológica é o isolamento social. Distanciando a parceira dos núcleos de sociabilização, o agressor vai minando as redes de apoio, como amigos, família e colegas de trabalho paulatinamente. A mulher se vê dependente por razões financeiras, emocionais e até religiosas. "O ponto crucial é quando há uma tentativa de diminuir a autoestima e a capacidade de realização. Quando há essa tentativa, tem de ficar alerta".
Carol Maia, psicóloga e psicoterapeuta de mulheres, detalha os impactos desse abalo na autoestima. "Ferir recorrentemente a autoestima, dizendo que 'não é boa, não é suficiente, tudo o que faz é ruim', gera um enfraquecimento das bases de suporte interno. A mulher acredita que só o que tem é aquela pessoa. Pensa: 'sou tão ruim e aquela pessoa continua me querendo'".
Ela destaca que o relacionamento abusivo não acontece só no contexto da relação amorosa. "Pode ser na família, entre amigos, no trabalho. O que caracteriza é o exercício de controle sobre a identidade da pessoa", detalha. Isso ocorre quando, dentro da dinâmica da relação, alguém detém uma posse e alguém funciona como se fosse propriedade. Isso resulta no controle das escolhas e formas de se comportar, "muitas vezes baseado em humilhações e ameaças, seja violência física ou psíquica".
No caso de Kah, as agressões psicológicas eram comuns. "Dizia que eu era feia, burra, que eu não era digna, vagabunda, lixo. Fui agredida fisicamente, mais de uma vez. Ele me beliscava, dava chutes, soco no estômago. Mas essas foram as que doeram menos. Porque elas passam. As psicológicas ficam. Toda vez que você lembra, dói".
Dados
Conforme levantamento de dados do Núcleo de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará, 97,2% de mulheres atendidas no período de dez meses denunciam ter sofrido violência psicológica durante relações afetivas.
Livro
Kah Dantas é autora do livro "Boca de Cachorro Louco", que relata as experiências de um relacionamento abusivo. A escritora também tem um canal no youtube. Assista seu depoimento no link bit.ly/depoimentokah
Onde procurar ajuda
Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem) - Defensoria Pública
Onde: Casa da Mulher Brasileira (Rua Tabuleiro do Norte com Rua Teles de Sousa - Couto Fernandes)
Horário de atendimento: Aberto 24 horas
Telefone: (85) 3108 2999
Para denúncias, disque 180 - Central de Atendimento à Mulher, de recebimento de denúncias ou relatos de múltiplos casos de violência.