O Cariri cearense é fértil, também, na produção de "santificados". Uma nação de personagens "canonizados" pela vontade popular e independente do aval do Vaticano. Muitos deles, donos de um destino penoso capaz de despertar a compaixão do povo e, por conveniência, a rendição da Cúria Romana. A caririense Benigna Cardoso da Silva é uma dessas histórias. A menina assassinada aos 13 anos de idade, vítima do machismo de Raul Alves em 1941, teve seu martírio reconhecido ontem, 3, pelo papa Francisco. É o caminho burocrático para se tornar a mais nova beata da Igreja Católica. Benigna é a primeira cearense a fazer o caminho da canonização segundo as normas oficiais do clero.
A beatificação da menina Benigna é o tema do podcast Recorte
Ícone de fé: conheça a história da menina benigna
Durante uma audiência no Vaticano, na última quarta-feira, o papa Francisco autorizou o cardeal Angelo Becciu - prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, a promulgar decretos concedendo a beatificação para cinco beatos.
Benigna ainda não é beata. Segundo o pesquisador Renato Cassimiro, o papa Francisco aprovou o reconhecimento do martírio da adolescente. A morte violenta em Santana do Cariri foi "objeto de estudos de modo que a conclusão é pela aceitação do caráter heroico de suas virtudes". Por isso, autorizou que se prepare o respectivo ato formal que ainda será assinado pelo sumo Pontífice.
Para Maria da Penha Pereira, da Comissão de Beatificação e coordenadora do Memorial da garota, Benigna se tornou "santa" para o povo de Inhumas desde o momento em que foi atacada brutalmente e resistiu à violência de Raul Alves. Arredia aos assédios anteriores do rapaz, que queria lhe namorar à força, a moça terminou espancada e teve parte do corpo dilacerado por golpes de facão.
Maria da Pena também entende que o começo da "santificação" formal de Benigna teria sido iniciado quando o padre Christiano Coêlho, então vigário de Santana do Cariri na época do crime, deixou escrito em um documento da paróquia: "Morreu martirizada às 4 horas da tarde, do dia 24 de outubro de 1941, no Sítio Oiti, heroína da castidade. Que sua santa alma converta a freguesia e sirva de proteção às crianças e às famílias da província".
Comitiva visita possíveis locais para a construção de estátua da Menina Benigna
Em 2010, dom Fernando Panico, na época bispo da diocese de Carto, foi a Inhumas e determinou a instalação de uma comissão diocesana para dar início ao processo de beatificação. A causa de Benigna foi aprovada em outubro do ano passado pela Comissão dos Teólogos da Congregação para as Causas dos Santos.
O processo de beatificação foi aberto em 2011 pela Diocese do Crato. Em 2016, o Vaticano chegou a buscar depoimentos de pessoas que viveram entre 1940 e 1980 para fortalecer a tese do martírio cristão da jovem Benigna. Em 2013, o Vaticano a transformou em "Serva de Deus".
Órfã de pai e mãe, Benigna Cardoso da Silva nasceu em 15 de outubro de 1928, em Inhumas (Sítio Oiti), no município de Santana do Cariri. Foi assassinada em 24 de outubro de 1941. Benigna é considerada pela igreja e seus devotos "Heroína da Castidade". A partir de 1942, muito antes da Igreja trazer a menina para rol de candidatos a santos de altar, fiéis já vinham ao túmulo da garota morta para acender vela por supostas graças alcançadas.
"É uma importante notícia não apenas para o povo católico e da Região do Cariri, mas para o povo cristão, que vê reconhecido mais um exemplo de bondade e fé", declarou o governador Camilo Santana. A romaria da Menina Benigna, em Santana do Cariri, entrou para o calendário oficial de eventos do Ceará. Acontece dia 24 de outubro, data da morte da adolescente do vestido vermelho de bolinhas brancas. Roupa que usava no dia do martírio. A data é feriado municipal em Santana e o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio.
DECRETOSDO VATICANO
OS PRÓXIMOS BEATOS
Benigna Cardoso da Silva (1928-1941). Brasileira de Santana de Cariri (CE). Foi martirizada aos 13 anos de idade quando ia buscar água em um poço.
Cardeal Stefan Wyszyski (1901 - 1981). Polonês de Varsóvia. Arcebispo Metropolitano de Gniezno e Varsóvia, Primaz da Polônia. O cardeal foi um defensor da fé durante o regime comunista polonês.
Francesco Mottola (1901-1969). Italiano, sacerdote diocesano, fundador do Instituto Secular das Oblatas do Sagrado Coração.
Alessandra Sabattini (1961-1984). Italiana, leiga nascida em Riccione, da Comunidade Papa João XXIII.
Juan Roig y Diggle (1917-1936). Espanhol, mártir, leigo, nascido em Barcelona e morto na noite entre 11 e 12 de setembro de 1936 em Gramanet.
BATE-PRONTO
O POVO - Quando o Vaticano autoriza a beatificação de Benigna, qual mensagem que manda para o Cariri de Padre Cícero?
Renato Cassimiro - Sobre algum recado eu até poderia relembrar a visita de João Paulo II: O Brasil precisa de santos. Seguramente esta manifestação não está na visão mais voltada para qualquer observação de um aparente mea-culpa da Igreja, como se isso dependesse dela. Mas sem dúvida da identificação e reconhecimento de que é necessária esta revelação para que a própria Igreja possa ter melhores elementos para estudos e decisões.
OP - Benigna já foi "santificada" pelo povo, há necessidade dessa oficialização?
Renato Cassimiro - Se cabe a Igreja a proclamação da santidade de um dos seus servos, naturalmente não é apenas a impressão, mesmo de grande coletividade que legitima o ato. Veja, por exemplo, o caso de que ainda recuadamente o Padre Cícero tenha sido canonizado por uma igreja. Isto não produziu o efeito desejado junto à comunidade católica brasileira. É preciso que o caso esteja sob a coordenação de uma competência e de uma legitimidade que o próprio povo devoto reclama e reconhece.
Renato Cassimiro é pesquisador da vida de Padre Cícero e da formação de Juazeiro do Norte