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Do Dia dos Mil Mortos ao isolamento dos indesejáveis: como epidemias afetaram os comportamentos
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Do Dia dos Mil Mortos ao isolamento dos indesejáveis: como epidemias afetaram os comportamentos

Luiz Alves, do Observatório História e Saúde, da Fiocruz, revisita antigas crises sanitárias para tirar lições no enfrentamento da Covid-19 no Ceará
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Camas enfileiradas em hospital de campanha da Gripe Espanhola, nos Estados Unidos (Foto: Exército dos Estados Unidos)
Foto: Exército dos Estados Unidos Camas enfileiradas em hospital de campanha da Gripe Espanhola, nos Estados Unidos

"Porque a vida toda é um doer." A frase de Rachel de Queiroz no romance Dôra, Doralina, de 1975, poderia resumir a história do povo cearense ao longo dos séculos. Seja para falar da fome, seja para contar da busca por melhores condições de sobrevivência. Nesta reportagem, a fala traduz como os episódios epidêmicos, desde o início da ocupação do território do Ceará, impactaram no comportamento da população e quais lições se pode tirar para o enfrentamento da Covid-19 no Estado. Para isso, a reportagem conversou com o historiador Luiz Alves, do Observatório História e Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

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No Ceará, o primeiro registro ocorreu ainda na colonização, no século XVIII. Conhecida como "epidemia de bexiga", nome dado à varíola, a enfermidade causou danos durante a guerra entre colonizadores e nativos. A doença era trazida nas naus vindas da Europa e África.

Os surtos epidêmicos estiveram associados, na história, à conquista de territórios, caso do sarampo e da malária, que dizimaram as populações nativas em algumas capitanias. Nas capitanias do norte, o que inclui o Siará - atual Ceará -, as epidemias de febres foram fator dificultador para os grupos conquistadores. “Embora participantes dos processos de conquista, as doenças não eram domesticadas pelos colonizadores, elas possuíam uma dinâmica própria que convergia ou divergia dos interesses invasores”, explica Alves.

A partir do século XIX, epidemias de febre amarela, malária, cólera e varíola se tornaram frequentes no cotidiano cearense. Tiveram pale importante na organização urbana de Fortaleza. Segundo o historiador, a preocupação com a disseminação das doenças fez os governantes adotarem normas sanitárias naquele que foi o período de intenso desenvolvimento econômico no Ceará. Durante a grande seca, ocorrida entre 1877 e 1879, a varíola dizimou 1.004 pessoas na capital, principalmente retirantes vindos do interior fugindo da fome, em 10 de dezembro de 1878. O episódio ficou conhecido como "o Dia dos Mil Mortos".

Isolamento como forma de exclusão social

O isolamento é uma antiga estratégia sanitária para evitar a propagação de doenças. Luiz Alves é cauteloso ao falar desse assunto em perspectiva histórica. Afinal, a política tanto foi usada como medida sanitária quanto de exclusão social daqueles considerados "anormais" ou "indesejados" pela sociedade. "Já tivemos medidas de isolamento social, normalmente pela separação de pessoas que sofriam de doenças infecciosas – como a hanseníase e a tuberculose – e condições consideradas como doenças mentais, a exemplo do alcoolismo, em instituições asilares."

No livro A Fome, de 1890, o farmacêutico e escritor Rodolfo Teófilo discorreu sobre o que via ao percorrer as ruas de Fortaleza durante o surto de varíola. "A peste e a fome matam mais de 400 por dia! Faz horror! Os que têm rede vão nela, suja, rota, como se acha; os que não a têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura."

Estima-se que 38.931 retirantes chegaram em Fortaleza em 1877. No ano seguinte, o número chegou a 200 mil. Os flagelados se instalavam em prédios e praças públicas da cidade. Assim, a administração da "capital mais limpa do País", orientada pelo discurso higienista e pressionada pela elite médica da província, adotou medidas com o objetivo de garantir a salubridade da população, dentre elas o isolamento das pessoas que “maleficamente atuavam no estado sanitário da província”, segundo relatório da época. “A migração do interior para Fortaleza, inclusive, é um fator fundamental da própria ocupação do território da capital, envolvendo a expansão do centro para as periferias e a criação de bairros”, indica Alves.

Com o aumento de contaminação pelo surto de varíola, a elite local resolveu, por conta própria, ficar reclusa dentro de casa. As atividades do comércio foram paralisadas enquanto os cadáveres eram levados diariamente pelas carroças até o cemitério de Lagoa Funda. Rodolfo Teófilo apontou que só no mês de dezembro daquele ano foram enterradas 14.491 pessoas.

Em 1904, diante de novo surto da varíola, Teófilo realizou com esforço próprio uma grande campanha de vacinação. Além do descontentamento com as condições de saúde do povo, acabou sendo maneira de incomodar Nogueira Accioly, governante na época. Diferentemente do episódio ocorrido no Rio de Janeiro, em que a população se levantou contra a ação dos militares resistindo a ser vacinada contra a febre amarela, a iniciativa liderada por Teófilo não envolveu uma revolta popular.

As epidemias no Ceará têm história que caminha ao lado das secas e do isolamento. Em O Quinze, Rachel de Queiroz descreve o campo de concentração do Alagadiço, criado para conter os imigrantes que chegavam a Fortaleza. Cerca de oito mil pessoas, que fugiam da morte no sertão, foram aprisionadas. No livro, o local é descrito como "atravancamento de gente imunda, de latas velhas e trapos sujos". Em 1932, mais sete "currais" foram espalhados pelo Estado, isolando os retirantes antes de chegarem à Capital.

Com o início da assistência de saúde às populações mais pobres, a mortalidade pela epidemia diminuiu. No relatório do ano de 1927, foram registrados apenas 71 casos de varíola, com apenas 19 mortes. Em 1930, após a elaboração da Reforma Pelón, proposta pelo médico sanitarista Amilcar Pelón, a saúde pública começou a se estruturar no Ceará. Na época, o Estado foi dividido em cinco regiões, onde foram distribuídos Centros de Saúde e Postos de Higiene.

A dimensão dos cuidados em saúde foi se atualizando até aqui, estabelecendo novas formas de fazer isolamento, principalmente após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição de 1988. Saiu do compulsório e se tornou uma medida que ajuda evitar uma catástrofe coletiva, como ocorre na atual pandemia de Covid-19.

Imprensa contestou a existência da Gripe Espanhola no Ceará

Durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918, a maior dos tempos modernos, a imprensa contribuiu para a disseminação da doença no Ceará, ao duvidar da chegada da doença. No primeiro momento, foram publicadas matérias questionando se o vírus realmente havia chegado no estado. Com o número de mortes disparando, logo a opinião pública foi mobilizada.

Estima-se que a pandemia vitimou cerca de 30 mil pessoas no País. Para o pesquisador da Fiocruz, o cenário é "gigantescamente" diferente do atual, de Covid-19, pois a estrutura sanitária no Ceará era praticamente inexistente e a saúde não era uma obrigação do Estado. "Isso não significa que não houve ação, mas que não havia uma estrutura para organizar a ação."

O dramaturgo cearense, Carlos Câmara, na peça teatral A bailarina, destacou o impacto da doença no Ceará. No texto, ele fala das ações de enfrentamento e do medo da morte. Em um dos trechos, diz: “A bailarina foi a pior epidemia que já assolou o mundo. Basta saber-se, senhores, que ela fez os fortes ficarem fracos, meteu os fracos no buraco e encheu os hospícios de doido”.

No mundo, estima-se que o número de mortos tenha ficado entre 50 milhões e 100 milhões, representando até 5% da população mundial da época. Foram calculadas 500 milhões de contaminações.

As lições que ficam

Alves acredita que as lições das crises sanitárias anteriores mostram que os problemas de saúde que estão ligados a processos e condições históricas mais amplos que as próprias epidemias. “A recorrência está ligada às más condições sanitárias, como a de cólera, que mostra a persistência do abandono da população mais vulnerável pelo poder público e importância da pobreza como um problema crônico”.

A dificuldade em convencer as pessoas a aceitarem o isolamento e outras medidas preventivas não é algo de agora. Tem relação com a carência ampla de educação para a saúde na sociedade brasileira, as profundas desigualdades socioeconômicas e os problemas estruturais do sistema de saúde.

“A história fornece lições, mas não como exemplos ou morais de histórias. A história não é um guia para verificar o que já funcionou ou não, pois cada período possui demandas e expectativas próprias. Cada epidemia é específica, ainda que seja possível fazer comparações”.

O pesquisador faz alerta sobre o impacto das doenças nas populações mais pobres. “A saúde e o adoecimento não dependem somente de bacilos e vírus, mas também de condições de acesso aos serviços de saúde, à nutrição, ao saneamento, à exposição a riscos e diferentes outros fatores, denominados de determinantes sociais da saúde (DSS)”, elencou.

Ideídes Guedes é jornalista

Especial para O POVO

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