A Covid-19 deixou o mundo como conhecíamos de ponta-cabeça: em poucos meses, foram mudadas desde as formas de trabalhar, interagir com as pessoas e estudar, até a maneira com a qual lidamos com questões existenciais, tais como a proximidade da morte, a vida que levávamos até então e as prioridades que escolhemos.
“Estas mudanças ocorreram não só no plano pessoal mas também no coletivo, afetando a sociedade como um todo. Dentre os aspectos que mais contribuíram para esse processo, destaco o ficar mais tempo dentro de casa, o que redimensionou a maneira dos pais lidarem com os filhos, por exemplo. Outras questões também surgiram, como a busca por formas alternativas de lazer e de aprendizagem. Além disso, o trabalho em casa ajudou a ter uma relação mais disciplinada com o tempo, sendo para alguns uma melhora na qualidade de vida. Por outro lado, também houve um aumento significativo de violência doméstica e da incidência de doenças mentais, como ansiedade e depressão”, enumera o psicólogo Erasmo Ruiz, doutor em Educação e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Enquanto muito se discute se chegamos a um “novo normal”, que seria uma mudança drástica da sociedade no modo de fazer as coisas - um dos efeitos sociais do novo coronavírus - há também o apego ao “antigo normal”, sendo as praias lotadas em plena pandemia um reflexo desse fenômeno, segundo o professor.
“O mundo já passou por pandemias antes, como no caso da Gripe Espanhola. O que a história nos diz é que quando um evento como dessa magnitude passa, grande parte dos hábitos anteriores são retomados, sendo que algumas mudanças estruturais ficam. Imagino que a sociedade pós-Covid irá adaptar principalmente as inovações ligadas à economia e ao mercado de trabalho, como o home office”, aponta.
Cinco lições que aprendemos (ou, pelo menos, deveríamos ter aprendido)
1. O cuidado com a higiene pessoal
“Antes da pandemia, os cuidados básicos de higiene eram, de certa forma, banalizados. Muitas pessoas não tomavam cuidados para protegerem a si mesmas e muito menos o outro de infecções respiratórias transmissíveis. Agora as pessoas estão se preocupando mais com a lavagem das mãos. No Oriente, por exemplo, o uso de máscaras em espaços públicos faz parte da cultura, antes mesmo da pandemia. Espero que o cuidado e a atenção com o outro possa melhorar aqui no Brasil após a experiência da Covid-19”, afirma a médica infectologista Dionne Rolim.
2. Os efeitos de nossas interferências na natureza
“Muitos problemas que temos hoje vêm da ação humana na natureza. Muitos patógenos (organismos capazes de causar doenças) surgem ou sofrem mutações que os tornam mais resistentes para o ser humano. Um problema com o qual convivemos há um tempo é a dengue, que é uma arbovirose (doenças causadas por vírus transmitido por mosquitos, por exemplo). Como uma das consequências do desmatamento de florestas, temos a incidência urbana de infecções que antes estavam restritas aos ambiente rurais ou de mata."
3. A ciência é fundamental para a compreensão e tomada de decisões
“Moramos em um país no qual a valorização da ciência e o investimento para a pesquisa são deixados muito à parte. Quem trabalha com ciência enfrenta dificuldades imensas e, muitas vezes, precisa se dedicar a mais de uma atividade para conseguir ter uma produção na área. Não temos reconhecimento nem investimento por parte do governo. Gostaria muito que a pandemia pudesse trazer uma atenção maior nesse aspecto.”
4. As informações falsas são um veneno a ser enfrentado por todos
“No auge da pandemia, circularam diversas mensagens falsas anunciando tratamentos e até curas milagrosas para a Covid-19, algumas compartilhadas por políticos e celebridades com grande alcance de público. Aprendemos que as chamadas ‘fake news’ têm poder de matar pessoas desinformadas.”
5. O combate à desigualdade
“A desigualdade social e a diferença de privilégios ficou escancarada de vez nesta pandemia. Ficou evidente que a maioria da população está sem o básico, como casa, água limpa, ar puro e alimentação.”
Fontes: Dionne Rolim, infectologista, professora, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas e do curso de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor) e do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) / Jonathan Queiroz, ambientalista e cientista social
Alguns números que indicam o tamanho do desafio em melhorarmos como sociedade no mundo pós-coronavírus
Apenas 41,1% dos domicílios no Ceará tinham banheiro e esgotamento sanitário em 2019;
81,7% da população cearense não possui plano de saúde, médico ou odontológico;
Ao menos 800 pessoas morreram ao redor do mundo por causa de informações falsas relacionadas à pandemia de Covid-19 nos três primeiros meses do ano;
O Brasil é o 6º país do mundo com maior desigualdade social / concentração de renda, atrás apenas da África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana e Lesoto;
Mais de 3 mil km² da Amazônia foram desmatados no primeiro semestre de 2020, e a estimativa é que supere a do ano passado, que teve a maior taxa oficial de desmatamento em 11 anos;
De 2019 para 2020, o orçamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para pesquisa científica sofreu um corte de 48%.
Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde 2019 - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) / American Journal of Tropical Medicine and Hygiene / Relatório de Desenvolvimento Humano 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) / Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) / Capes