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De perdas evitáveis a berçários lotados: o cenário da Covid-19 entre gestantes no Ceará
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De perdas evitáveis a berçários lotados: o cenário da Covid-19 entre gestantes no Ceará

Número de grávidas infectadas aumentou em 2021, mas mudanças nos encaminhamentos e atendimentos no Estado reduzem óbitos
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Fabiana e Benjamin se conheceram por videochamada enquanto estavam internados no Hospital Regional Norte (Foto: Divulgação/ Teresa Fernandes/ Sesa)
Foto: Divulgação/ Teresa Fernandes/ Sesa Fabiana e Benjamin se conheceram por videochamada enquanto estavam internados no Hospital Regional Norte

“Meu filho reconheceu minha voz quando cantei e eu fiquei muito emocionada”, lembra Fabiana Alves Sousa, de 31 anos, sobre o momento em que viu o filho pela primeira vez, por videochamada. Diagnosticada com a Covid-19 ao fim do sexto mês de gravidez, a dona de casa passou por um parto de emergência devido às complicações da doença. Foram 12 dias desde o nascimento de Benjamin até a alta médica de Fabiana para que os dois pudessem se encontrar pessoalmente.

O bebê nasceu prematuro de 29 semanas e seis dias no início de março e ficou sob os cuidados da equipe de assistência da UTI Neonatal do Hospital Regional Norte (HRN), em Sobral. Fabiana foi transferida para a UTI no mesmo dia para receber o tratamento adequado. “Lembro apenas que ouvi o chorinho dele quando nasceu, mas já acordei na UTI Covid”, conta. No último dia 4 de abril, mãe e filho receberam alta.

Como Fabiana, segundo o Ministério da Saúde, pelo menos 543 cearenses contraíram Covid-19 enquanto estavam grávidas, sendo 73 apenas neste ano. Ainda conforme o documento, mulheres pardas, de 30 a 39 anos e no trimestre final da gravidez são as mais acometidas pelo coronavírus. A Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) aponta que 37 grávidas infectadas pelo novo coronavírus morreram no Estado. Foram 16 gestantes e 21 mulheres que haviam acabado de dar à luz.

“A realidade é muito dura. Dados dos sistemas estaduais mostram que no Ceará tivemos 2.142 gestantes com Síndrome Respiratória Aguda. Muito mais gestantes que puérperas", expõe Liduína Rocha, obstetra e presidente do Comitê Estadual de Prevenção à Morte Materna, Fetal e Infantil. “Já quanto aos óbitos, as puérperas são em maior número. A maioria das mulheres que morreram tinham de 20 a 29 anos e a maioria tinham alguma comorbidade”, completa.

Berçários lotados

"Ano passado tivemos algumas perdas evitáveis de pacientes gestantes e puérperas, então desde fevereiro foi criado um grupo a fim de fazer com que a gestante com Covid-19 grave chegue ao hospital de alta complexidade a tempo de fazermos alguma coisa por ela”, conta Zeus Peron, chefe da Emergência da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). A partir desse grupo, as secretarias da saúde do Ceará e de Fortaleza organizaram o atendimento em quatros hospitais terciários da Capital para receber essas pacientes: Meac, Hospital Geral de Fortaleza (HGF), Hospital Geral Dr. César Cals e Hospital da Mulher.

Conforme Peron, diante dessa reestruturação, “o número de gestantes infectadas pelo coronavírus aumentou em relação a 2020 tanto no serviço público quanto no privado, porém estamos tendo a possibilidade de diminuir a morte materna”. “Ao mesmo tempo, os berçários estão completamente lotados com recém-nascidos prematuros. Essa é a complicação que estamos tendo atualmente com todas as unidades de alta complexidade”, observa.

Os partos precoces são um dos recursos empregados na tentativa de melhor atender os bebês e as mulheres em quadros graves de Covid-19. Conforme dados do IntegraSUS atualizados às 13h dessa terça-feira, 6, a taxa de ocupação das UTIs neonatais é de 55%. A taxa é de 33% nos leitos intensivos para gestantes com a doença e 55,4% nos leitos de enfermaria.

Cuidados

“A ciência já aponta que tanto a Covid-19 pode complicar a gravidez — no sentido de maior possibilidade de abortamento, partos prematuros, eventos embólicos e complicações de pressão —, quanto que a gravidez também complica a Covid. As gestantes estão no grupo de indivíduos que, quando complicam, complicam mais rapidamente e mais gravemente”, explica Liduína.

Peron complementa que outros riscos da doença para gestantes se dão diante do volume uterino aumentado, que naturalmente já comprime o pulmão e diminui a capacidade respiratória. Ele enfatiza que, tranquilizando, não há qualquer evidência no mundo, até o momento, de transmissão da Covid-19 de mãe para filho.

“Para a criança, a gente só vai ter sequelas se tiver que interromper a gravidez precocemente, a prematuridade vai trazer suas consequências. Para a mãe, as repercussões são alteração da função pulmonar, cardíaca e renal, além de maior risco de coagulação e sangramento aumentado, pro exemplo”, cita Peron. Diante disso, os especialistas frisam a necessidade de manter as medidas sanitárias e de isolamento, garantir o acompanhamento pré-natal e realizar a imunização contra a pandemia.

Atualmente, tanto a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia quanto a Sociedade Brasileira de Pediatria recomendam a vacinação contra a Covid-19 em grávidas e lactantes. “O que vamos chamar a atenção, diante das vacinas já tomadas no pré-natal, é observar um intervalo entre elas”, orienta Peron. No plano de vacinação no Ceará, as pessoas com comorbidades estão na 3ª fase; entretanto, não há menção direta a gestantes.

Ponto de vista

Gestantes e prematuros da pandemia

Por Jessika Sisnando

Dia 24 de fevereiro deste ano, passei por uma cesárea de emergência. Meu filho, João Arthur, nasceu de 30 semanas e pesando 790 gramas. Ele precisou ser internado na UTI neonatal do hospital particular, onde todos os dias chegavam bebês prematuros. A maioria vinha de complicações devido as mães terem contraído o coronavírus.

Por causa do risco de contágio, o nosso tempo com os bebês é controlado. Só podem entrar mães e pais, em horários diferentes. Vi uma tia em meio às mães: a irmã grávida morreu vítima de Covid-19 e os médicos conseguiram salvar a criança, que nasceu prematura. Na fila do boletim médico, ela chorava. Disse que o plano era ajudar no resguardo da irmã. Agora, a missão seria cuidar da pequena sobrinha, que ficava sem a mãe.

Na UTI, um bebê estava sem receber visitas por muitos dias. E pude ver o dia em que a mãe dele entrou naquela salada gelada com passos bem lentos e o pegou no colo pela primeira vez. Com a voz bem rouca e baixa, ela explicava à enfermeira que passou muito tempo entubada. Também havia sido vítima da Covid-19 quando estava grávida. Aquele encontro entre mãe e filho marcava um recomeço muito doloroso, mas cheio de esperança.

Na UTI neonatal, no mesmo dia que vi mesaniversário, eu também testemunhei mães saindo com bebês em óbito. Na sala de espera, eu presenciei um pai chegar sozinho para buscar um prematuro que havia recebido alta. A esposa grávida havia falecido vítima do coronavírus. O médico conseguiu salvar a criança. Saídas da maternidade costumam ser cheias de amor. Naquela, faltava um pedaço. O pai segurava o bebê conforto como se ainda aguardasse a companheira, como se aquilo tudo fosse um pesadelo.

Eu vi histórias tristes e de superação ali, mas tinha a minha história também: apesar de ter problema relacionado ao cordão umbilical (restrição de crescimento) e meu bebê ter nascido muito pequeno, a gente seguia firme e ele foi ganhando peso. Mas, prestes a ele completar os quilos necessários para a alta, eu contrai Covid-19. Meu filho foi colocado em isolamento; testou negativo. Fomos afastados. Tive de interromper os estímulos para amamentar, tomar uma pilha de remédios. Vi meu leite secando, a saudade do meu bebê apertava.

Na segunda-feira, 12, meu bebê prestes a completar 50 dias de UTI neonatal, eu recebi a notícia de que estou curada. Depois de ficar dias longe dele, a esperança nos move mais uma vez. Saber que vamos nos reencontrar ameniza a dor.

Conversei com mães que tiveram complicações durante a gestação por causa do coronavírus e que viram o sonho da maternidade virar de cabeça pra baixo. Algumas tiveram bebês com apenas 26 semanas de gestação. Convivem com seus filhos em meio a aparelhos de oxigênio, sondas e o barulhinho das máquinas. A gente aprende o que significa cada som, aprende a ordenhar o leite manualmente, já não faz mais diferença onde estamos. O hospital vira nossa casa.

Os prematuros da pandemia são fortes, esforçados e buscam a vida a todo instante. E nós, mães, vivemos esse momento com muita apreensão, mas também cheias de fé.

Ministério

Segundo o Ministério da Saúde, o Ceará tem pelo menos 453 casos confirmados de Covid-19 entre grávidas. Esse total resulta da soma dos casos confirmados até a última semana epidemiológica de 2020 e aqueles registrados até 27 de março deste ano. O número coloca o Estado como o com mais casos da doença entre gestantes no Nordeste, seguido pela Paraíba (com 318 confirmações).

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