Com fama de ser “mal assombrado”, o casarão imponente localizado no distrito de Água Verde, em Guaiúba, a 52,2 km de Fortaleza, virou protagonista de um romance escrito por três cearenses. O livro “Progresso Obscuro” mistura ficção, horror e fatos históricos, resgatando o passado da cidade e do Estado. O abolicionismo no Ceará é um dos assuntos abordados.
O historiador e professor Marcos Fábio Oliveira, o administrador Leonardo Alves e o designer gráfico e graduando em História Leiwilson Silva são os autores da obra disponibilizada desde a última semana para venda online.
O trio começou as investigações ainda em 2016. Os amigos fazem parte de um mesmo grupo de teatro e faziam apresentações em Guaiúba. “Nessas idas e vindas, a gente se encantou muito com a arquitetura da casa e a partir daí surgiu a ideia. Decidimos começar a pesquisar”, recorda Fábio, que também é ator, dramaturgo e diretor teatral.
No livro, construído a partir de depoimentos de moradores e pesquisas bibliográficas, eles recuperam a história do Casarão de Água Verde, pertencente à fazenda da família Cavalcante (citada como Gonçalves no livro).
Às margens da 060-CE, a casa isolada em situação de abandono é terreno fértil para histórias de “assombramento”. Segundo moradores, ao meio-dia, às seis da tarde e à meia-noite fenômenos sobrenaturais acontecem no local. Luzes se apagam, correntes se arrastam, choros de crianças são ouvidos e vultos de pessoas passam pelos corredores do local.
Fábio, Leonardo e Leiwilson não chegaram a presenciar nenhum acontecimento paranormal durante as visitas à casa, mas não foi por falta de vontade. “Até gostaríamos de ter visto”, revela Fábio.
“Nós, como historiadores, temos de valorizar o que nos é contado. Não temos intenção de dizer que [a fama do casarão mal assombrado] é mentira ou verdade, pelo contrário. Criamos uma história a partir desses fatos mesclando a oralidade com documentos escritos”, completa.
Embora tenha uma aparência velha, o casarão foi erguido em meados da década de 1990 por um dentista da família Cavalcante sobre as ruínas de outra casa, mais antiga, de acordo com as pesquisas dos autores. Em situação de abandono hoje, o casarão não pode sofrer intervenções públicas por se tratar de um bem privado. A família também não teria condições econômicas para realizar reformas.
Edificado em dois pavimentos, o casarão tem no primeiro piso cômodos bem definidos. No segundo piso é possível encontrar portas, janelas e corredores com aberturas para passagem da luz e de ar.
O enredo do livro se constrói na perspectiva da família fictícia do personagem Benedito Cabral, que vivia no casarão com esposa e filhos. Em um primeiro momento, a família precisa passar um tempo em Fortaleza, em meados dos anos 90, para depois voltar à Guaiuba.
“Quando retornam para Guaiúba começam a ver influências espirituais na casa que aos poucos vão se revelando e remetendo ao período final da escravidão no Ceará”, conta Fábio.
Assim, questões espíritas, históricas e políticas se revelam na obra a partir da família de Benedito, que foi morar no casarão.
A capa do livro, concebida por Leiwilson Silva, remete a um passado recuperado. “A proposta seria fazer uma reforma virtual. A gente fez uma foto da casa atualmente e pelo Photoshop restaurei ela, pus janelas e portas. A história acontece com a casa recém-construída. Na verdade começa bem antes e vai até a casa atual”, explica o designer, que também é ator e dramaturgo.
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O título foi sugerido por Leonardo Alves e faz referência às origens de Guaiúba, que surgiu a partir da Estrada de Ferro de Baturité — um marco de desenvolvimento econômico construído com mão de obra escrava.
Para Leonardo, que possui trabalhos artísticos e culturais em um grupo teatral, o aprofundamento sobre o processo de abolição da escravidão no Brasil foi um dos maiores ganhos durante as pesquisas realizadas para o livro.
“O que aprendemos na escola é superficial. Quando a gente pesquisa e vai a fundo realmente tentar entender o que aconteceu, isso desperta ainda mais nosso interesse com relação a entender e descobrir a nossa história”, aponta.
Os amigos se encontravam semanalmente para alinhar o processo de escrita do livro. Com a pandemia de Covid-19, as reuniões se tornaram virtuais.
Do Brasil imperialista, passando pela Velha e Nova República, a escravidão, o abolicionismo até a emancipação de Guaiúba. Esses são alguns dos conteúdos históricos abordados no livro “Progresso Obscuro”. Mais do que um romance, a obra também foi pensada para servir como fonte de pesquisa.
Conforme revela a obra, não existem registros de que o casarão de Água Verde tenha abrigado escravos, porém a família proprietária do imóvel tinha escravos em sua fazenda. “Visitamos a sede da fazenda, que se assemelha muito com a fazenda do Escravo Negro Liberto (atual Museu Senzala Negro Liberto), em Redenção. Eles também tem um porão, uma divisão, como se fosse uma senzala”, comenta Fábio.
Para ter acesso à fazenda, os autores contaram com o auxílio da única moradora do local, viúva de um herdeiro da família Cavalcante. A propriedade dista pouco mais de um quilômetro do casarão, seguindo em direção a Baturité. Redenção, antiga vila de Acarape, no Maciço de Baturité, é reconhecida pelo pioneirismo na libertação de negros escravizados no Brasil, em 1883.
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O que poucos sabem é que o local também foi palco de um crime alvo de disputas. Na fazenda de Água Verde residia o coronel Emiliano Cavalcante (citado no livro como Hermiliano Gonçalves por questões de direitos autorais), cuja morte foi atribuída pela família ao rival político, o coronel Juvenal de Carvalho.
Segundo pesquisas dos autores, o acusado, por sua vez, sustentava que houve suicídio, mas chegou a ser condenado como mandante do crime apesar de ter conseguido habeas corpus depois. Juvenal de Carvalho dá nome a um colégio localizado em Fortaleza hoje.
“Tudo isso está ‘linkado’ no livro, partindo do casarão de Água Verde e da fazenda na qual ele está inserido. Nossa meta é fazer o Ceará conhecer Guaiúba, conhecer o casarão que tanto chama atenção, mas conhecer também nossa história”, assinala Fábio.
Os autores do livro “Progresso Obscuro” firmaram uma parceria com a Prefeitura de Guaiúba na última sexta-feira, 16. O município vai apoiar a publicação de 500 exemplares da obra. Alguns deles serão usados na rede municipal de ensino.
Acesse o link aqui
Autores: Marcos Fábio Oliveira, Leonardo Alves e Leiwilson Silva
Romance Brasileiro
Publicação: 2020
Revisão Ortográfica: Dayne Kelly Almeida
Capa e diagramação: Leiwilson Silva
Prefácio: Prof. Dr. Altemar Muniz (Uece)
Orelha: Claudio Peixoto, historiador e professor de Guaiuba
Texto contra capa: Antônio Marcelo Gran Fort, escritor e dramaturgo
Editora: Clube dos Autores
Preço: R$ 57,14 (versão impressa). Na versão e-book, os preços variam de R$ 17,00 a R$ 25,19
Sinopse: A Família Gonçalves, proprietária da Fazenda Ribeirão de Água Verde, ergueu em suas terras, na cidade de Guaiúba, um famoso casarão, tido atualmente como mal assombrado. A partir de depoimentos colhidos por populares e estudos bibliográficos, mesclamos ficção e realidade para contar a história da cidade, do estado e do país em seu aspecto social, político e econômico. Benedito Cabral, com esposa e filhos, são levados por esse contexto histórico a viverem no imóvel dos Gonçalves. Nele passam a serem usados pelos espíritos que ali vivem para resolver suas questões oriundas do período da escravidão. As dores trazidas n’alma desses escravos assim como de seu senhor, o coronel Hermiliano Gonçalves, dão à família de Benedito um clima de terror físico e psicológico tornando suas vidas insustentáveis. Cada tortura, exploração e outras formas de violência serão revividas pelos atuais moradores do chalé. Não adianta demolir. Uma obra histórica já está edificada em Água Verde. PROGRESSO OBSCURO, revive, analisa e repassa um Brasil do passado que permanece em nosso cotidiano, repleto de medos, incertezas e outras tantas questões culturais.
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