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Primeira e segunda ondas da Covid-19 tiveram velocidade e percurso diferentes em Fortaleza
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Primeira e segunda ondas da Covid-19 tiveram velocidade e percurso diferentes em Fortaleza

Velocidade, dispersão pelos bairros, perfil de pacientes foram algumas características diferentes entre os dois períodos. Para conter uma terceira onda, é preciso considerar os riscos da variante Delta e estar atento aos sintomas
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Na primeira onda, Covid se dispersou primeiro pela faixa litorânea de Fortaleza (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Na primeira onda, Covid se dispersou primeiro pela faixa litorânea de Fortaleza

O Ceará enfrenta o risco de recrudescimento de casos da Covid-19 em razão da variante Delta, cujos primeiros casos foram confirmados oficialmente há cerca de duas semanas. A chegada da variante Gama, também chamada P1, no início do ano, foi um dos fatores que determinaram características epidemiológicas diferentes na curva transmissão do vírus na segunda onda em Fortaleza. O segundo ciclo de disseminação foi mais longo e percorreu um caminho diferente pelos bairros, além de ter sido afetado por outros aspectos, como a vacinação. 

A chegada do vírus em março de 2020 pegou a população com 100% de suscetibilidade. O pico foi atingido em maio e seguido por uma queda de indicadores considerada "rápida". No final de junho, a primeira onda "acaba". A segunda, por sua vez, começa a ser registrada na Capital em outubro e segue de forma lenta até meados de dezembro, quando ganha impulso e acelera a velocidade de transmissão. Ela se estende até abril. 

"São sete meses de extensão com velocidade menor no início. Depois, cresceu exponencialmente com a dominância da P1, que ocorreu em Fortaleza sobretudo a partir de dezembro de 2020. A epidemia se tornou sincrônica em todo o Brasil, com esse grande 'surto' de hospitalizações e óbitos, quando a P1 ganhou dominância", explica o gerente da Célula de Epidemiologia da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza, Antônio Lima Silva Neto.

Com a chegada da P1, saímos do vírus original para uma nova variante com uma taxa de ataque muito elevada em várias áreas da cidade. Um das principais semelhanças observadas nas duas ondas é que ambas se iniciaram na mesma região, em bairros de alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como Meireles e Aldeota.

A dispersão secundária pelos bairros, entretanto, muda de local porque "de fato, raramente duas ondas atingem com a mesma força os mesmos locais". Ele explica que, na segunda onda, foi observado um grande aglomerado na região Centro-Oeste da Cidade.

A mais recente curva de novos casos diários apresenta vários pequenos picos. "Isso pode ser o que a gente chama de artefatos, ruídos, que são dificuldades e limitação de testagem em áreas específicas da cidade. Como também pode ser realmente porque tá vindo de uma queda e têm pequenos surtos, pequenas cadeias que mudam a trajetória e depois caem novamente quando o surto é controlado naturalmente ou por meio da vacina", relaciona.

Lima aponta outro fator que não pode ser descartado na análise da evolução da pandemia na Capital, que é uma taxa de isolamento bem menor do que na primeira. "Fizemos o lockdown em abril mas ele não teve a mesma força que o de maio de 2020", compara. 

Sobre as diferenças, ele resume: "Quando tem dominância, ganha muita força e provoca um número enorme de pacientes mais graves e aumenta a transmissão muito rápido. Outro fator é a vacinação, que chegou para bloquear em alguma medida. Terceiro fator é que a população já estava muito cansada e menos suscetível às recomendações mais restritas de isolamento social".

Thereza Magalhães, pesquisadora e professora de Epidemiologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), frisa que a segunda onda em Fortaleza teve o foi chamado de repique de casos. "Com um volume residual principalmente nos bairros onde a taxa de transmissão nunca diminuiu substancialmente. A gente não chegou a zerar a transmissão antes de ter a segunda onda", diz. Isso porque a circulação do vírus continuou ativa.

Disseminacao espacial da covid-19 em Fortaleza nas duas ondas(Foto: Disseminacao espacial da covid-19 em Fortaleza nas duas ondas)
Foto: Disseminacao espacial da covid-19 em Fortaleza nas duas ondas Disseminacao espacial da covid-19 em Fortaleza nas duas ondas

Disseminação no Ceará

Thereza atenta ainda que, no Estado, a dispersão pelas regiões foi diferente. "Na 1 ª, a gente teve 50% dos casos em Fortaleza, em três tempos de pandemia. Uma onda mais baixa e mais curta. Na 2ª onda, a gente teve 40% dos casos em Fortaleza e um tempo de pandemia no Estado", explica. Os "tempos" se referem ao pico da curva.

Ela detalha que o pico da primeira onda em Fortaleza foi registrado por volta de maio de 2020. Um mês depois, em Sobral. Dois meses depois, em Juazeiro do Norte. "Na segunda, a gente teve praticamente uma simultaneidade das cidades do Interior com Fortaleza. Uma ou outra cidade teve depois. Isso fez com que a rede de saúde fosse exigida simultaneamente no estado todo", pontua.

Como os três tempos de pandemia da segunda onda nas principais regiões do Ceará foram simultâneos, o sistema de saúde ficou "engessado". "Estado todo com o platô praticamente junto de Fortaleza".

Segunda onda se dispersou para bairros centrais e menos afetados na primeira onda 

Apesar da disseminação nas duas ondas de Covid-19 ter se iniciado pela mesma região de Fortaleza — bairros de classe alta — a propagação se deu de forma bem diferente. A primeira se dispersou inicialmente pela faixa litorânea, tanto para o leste como para o oeste da Capital. No segundo ciclo de contaminação, a contaminação se deslocou para a região central da Cidade, principalmente em bairros menos populosos.

As razões que explicam a aglomeração de casos inicial nessa região são diferentes nos dois períodos. "Na primeira, porque eram casos importados de pessoas que vinham do exterior e de outros estados. Na segunda, porque foi uma população que se protegeu mais na primeira, eram jovens que passaram a fazer grandes aglomerações, causando surtos que se iniciaram na mesma área", diferencia o gerente da Célula de Epidemiologia da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza, Antônio Lima Silva Neto.

A primeira onda se dispersou inicialmente na faixa litorânea. Atingiu a zona oeste, do grande Pirambu, que foi a área com altíssima densidade, atingindo maior taxa de mortalidade, "onde foi muito difícil lidar com a pandemia".

Outro caminho percorrido em paralelo foi para em direção a parte leste da Cidade, que pegou ali o Grande Vincente Pinzon, Cais do Porto. A partir disso, dispersão se deu pela divisa com Caucaia até atingir muito duramente o Bom Jardim. "Foi uma epidemia com esses principais aglomerados: grande Pirambu, Cais do Porto, Barra do Ceará e Vila Velha. Escorreu pela divisa com Caucaia, pegando também Autran Nunes, Antônio Bezerra, chegando ao Bom Jardim, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira", delimita o epidemiologista.

Por sua vez, a segunda onda, de propagação bem mais lenta, passou a se deslocar em bairros menos populosos, que não tinham sido atingidos pela primeira onda porque "existia alguma barreira imunológica". "Tanto é que a segunda onda não teve uma taxa de mortalidade tão importante principalmente no Grande Pirambu e no Grande Vincente Pinzon, que foram duramente afetados na primeira (onda)", compara.

A partir do aglomerado Central/Litorâneo, de bairros de alto IDH, a contaminação se deslocou para a região central da cidade, atingindo bairros menos populosos da antiga regional 3, 4 e mais internos da regional 1. Desde o bairro de Fátima, Benfica, Parquelândia, Damas e cai para o Sul, pegando Jóquei Clube e João XXIII.

Outra semelhança identificada entre os dois recortes temporais é que a regional 6 foi poupada em ambos os casos. Conforme Antônio Lima, isso se deve muito provavelmente pelo fato de a região ter aglomerados mais espaçados. "Embora tenha muitos óbitos e casos, não se aglomeraram de forma intensa", aponta.

Mudança no perfil

Outra mudança observada foi no grupo de idade mais atingido. Conforme o epidemiologista Antônio Lima, houve um rebaixamento de faixa etária "clássico" quando a população se defronta com uma variante. "Começa a atingir pacientes mais jovens, embora a mortalidade e as complicações continuarem com as pessoas mais idosas até que a vacina conseguisse ter uma cobertura razoável para construir esse muro", explica.

De toda maneira, é possível identificar até hoje que, embora a faixa etária tenha se deslocado e tenham sido registrados muitos pacientes graves mais jovens, a média de idade dos pacientes que falecem continua em torno de 64, 65 anos. Na primeira onda, essa média girou em torno de 68 anos. "Se for para as internações, muitos pacientes eram mais jovens, até porque a vacinação começou pelos mais idosos e deu um bloqueio, protegeu essa população mais rapidamente", justifica o gerente da Célula de Epidemiologia da SMS.

Variante Delta: população deve se atentar a sintomas leves

As principais medidas para contenção do vírus continuam as mesmas e os cuidados precisam ser intensificados para evitar uma terceira onda, principalmente considerando a transmissão comunitária da variante Delta, mais transmissível, já registrada no Estado. Os sintomas iniciais observados até então são mais leves, parecidos com os de uma gripe, e justamente por isso eles podem passar "despercebidos".

Thereza Magalhães, pesquisadora e professora de Epidemiologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), alerta que conter a disseminação não vai ser um processo fácil. "O mundo inteiro tem sofrido com ela (Delta) no sentido de que ela tem uma transmissão mais rápida e menos sintomática. Com quantidade maior de vírus também", diz.

Ela detalha as diferenças entre as duas mutações e possíveis consequências: "Na variante anterior (Gama), a gente tinha uma pessoa contaminando até três pessoas. Já na Delta, até oito pessoas. Uma diferença substancial. Um ciclo mais veloz e menos sintomático. Posso não estar pensando que estou com Covid-19 e já estar".

A questão dos sintomas é preocupante porque é o principal norteador para indicar quando o exame deve ser realizado, por exemplo. " A gente sempre pergunta: 'Quantos dias de sintomas você tá hoje?' Qual foi o dia que seu RT-PCR positivou?'". 

Por isso, é preciso ficar  atento "a qualquer fungado, como a gente diz aqui no Ceará", brinca a pesquisadora. "Digo com certa dose de exagero e aspecto cômico porque é algo peculiar nosso. Mas acho que é essa a maior preocupação. Sinais que parecem não ser nada, ficar atento", considera.

O infectologista Guilherme Henn, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e presidente da Sociedade Cearense de Infectologia, afirma que os sintomas são basicamente os mesmos. O que tem sido observado clinicamente é que os sintomas de anosmia (perda do olfato) e ageusia (perda do paladar) são menos frequentes em comparação com as versões anteriores.

"A Covid-19 causada pela Delta, como os sintomas são muito parecidos com as outras variantes do coronavírus, continua podendo ser confundida com um processo alérgico, resfriado ou gripe comum. Essa diferenciação habitualmente não é fácil", explica.

Mas alguns sintomas podem indicar a diferença. Como a presença de febre, por exemplo, afasta a hipótese de um processo alérgico, que dificilmente causa esse sintoma. O infectologista aponta que quem tende a ter sintomas leves são as pessoas que são completamente imunizadas com a vacina. Mas elas ainda podem transmitir o vírus.

"O principal fator para abortar uma terceira onda é as pessoas entenderem que mesmo completamente imunizadas ainda podem adoecer e transmitir principalmente para quem não tomou vacina ainda. Essa não é a hora de festejar como se a guerra estivesse vencida", alerta Guilherme Henn.

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