A profundidade já chegou a ser de cinco metros em alguns pontos, mas hoje a lagoa do Cauípe, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, está num raso desolador. Dá para se caminhar por onde era o meio do espelho d'água. O rio que leva o mesmo nome e alimenta o manancial está com o leito desviado e a parede da lagoa, próxima ao mar, foi aberta. Por isso o esvaziamento repentino. Em vez de banhistas e kitesurfistas costumeiros do local, o vaivém na manhã desta quinta-feira, 24, era de caçambas (pelo menos oito), recarregadas em sequência, a cada três minutos, por uma pá escavadeira. Bem próximo, um trator remexia o fundo do rio e de um trecho da lagoa com resto de água. Desde dezembro, a terra extraída é despejada sobre a vegetação de restinga a sudeste, já encobrindo uma área bastante extensa. A paisagem natural está desfigurada. "Está sendo de domingo a domingo. A gente tá jogando (a areia) onde eles mandam, até lá embaixo", disse um dos caminhoneiros, apontando para a frente, onde outras caçambas circulavam em fila.
Na última segunda-feira, 21, o Ministério Público Federal deu entrada com uma Ação Civil Pública junto à Justiça Federal para suspender e paralisar os trabalhos. O pedido do MPF seguiu com uma tarja amarela de “urgente”. O órgão quer a “interrupção definitiva e reparação integral do dano ambiental". A obra é tocada pela Prefeitura Municipal de Caucaia, anunciada como um projeto de "desassoreamento e dragagem" da lagoa. A proposta descrita pela gestão local é para um “reordenamento” da área. O caso está sob análise da 10ª Vara Federal desde quarta-feira, mas não há prazo para uma decisão.
Entre os argumentos expostos, o Ministério Público diz que o projeto é realizado dentro de uma área de preservação ambiental - APA do Lagamar do Cauípe, existente desde 1998 -, que não teriam sido apresentados estudo prévio nem relatório de impacto ambiental (EIA-Rima). A lagoa é inserida dentro de território indígena e o MPF também aponta que não houve consulta aos representantes da aldeia dos anacés. "Há o risco de (o dano) se tornar irreversível", afirmou ao O POVO o procurador Fernando Negreiros, autor da ação. “Enviamos ofício à Prefeitura e aos órgãos ambientais. No nosso entendimento há o dano, mas precisará evidentemente de perícia. Mas essa obra deveria ter sido paralisada administrativamente”.
O MP Federal se referenciou no parecer técnico-científico assinado pela geógrafa Vanda Claudino Sales (pós-doutora em Geomorfologia Costeira), pelo advogado João Alfredo Telles (doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente, presidente da comissão de Direito Ambiental da OAB-CE) e a bióloga Liana Queiroz (doutora em Ciências Marinhas Tropicais). Os ambientalistas estiveram no local no início de janeiro, quando a execução da obra ainda estava na fase inicial. “O conselho gestor da APA não foi ouvido”, denuncia Weibe Tapeba, vereador em Caucaia e presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara Municipal local.
Ministério Público Federal teme dano irreversível e quer a interrupção urgente das obras no Cauípe: https://t.co/eDdUusamfZ pic.twitter.com/xhdSIbtFw5
— O POVO (@opovo) March 25, 2022
“Cauípe, na língua dos tapuias, quer dizer ‘rio onde o grande espírito caminha’. Então, além disso tudo que está acontecendo aqui, esse é um local sagrado para nós”, disse Paulo Anacé, um dos líderes da aldeia. Em vídeos divulgados pela prefeitura, a promessa é de que a obra beneficiará visitantes, esportistas e barraqueiros. Num desses vídeos, barraqueiros se declaram favoráveis ao projeto. “Os barraqueiros que estavam apoiando a obra já não estão mais. Eles começaram apoiando, mas mudaram de opinião. Estão todas fechadas”, apontou Roberto Anacé. O POVO não teve contato com proprietários das barracas na margem da lagoa. Na manhã desta quinta-feira, nenhuma funcionava.
“O que vemos aqui hoje é mais que uma destruição ao meio ambiente, mas a toda a nossa história e à nossa mãe terra. É duro você ver onde nasceu, onde você tem o seu sangue, do seu povo, ser destruído pela ganância e a força da especulação imobiliária dos grandes empresários”, falava Paulo, em pé no meio da lagoa seca, enquanto a escavadeira enchia outra caçamba à sua frente. “A etnia Anacé, que já obteve o processo de demarcação de seu território, tem no Lagamar do Cauípe uma de suas fontes cruciais de sustento hídrico, e ocupa uma área considerável, sendo que em nenhum momento as lideranças e demais membros, Funai e Ibama foram consultados acerca do empreendimento que vem sendo realizado”, diz trecho da ação do MPF.
Acostumados à pesca farta no local, todos com mais de 30 anos na atividade, Flávio Duarte (52), Francisco da Silva (49) e José Alberto Santos (55) haviam chegado à lagoa por volta das sete da manhã desta quinta-feira. Três horas depois, estavam indo embora quase sem nada. “Peguei dois siris e um bagre”, disse Francisco. Sempre saíam com os urús (cestos de palha) cheios de carás, tucunarés, siris, saúnas grandes. Nas tarrafadas recentes, depois do início da obra, os peixes sumiram. “Acabou-se tudo. Tem mais nada”, confirmou Flávio. “A gente vem de longe, não adianta mais”, lamentou Alberto.
ERRAMOS: A área dos Anacés está em processo de demarcação, e não como foi publicado na primeira versão da matéria.