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Denúncias de racismo crescem 54% em 2022 nas delegacias do Ceará
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Denúncias de racismo crescem 54% em 2022 nas delegacias do Ceará

Estado não tem dados estratificados sobre injúria racial, ilícito penal equivalente ao crime de racismo
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Rio de Janeiro - A Associação do Conselho Gestor de Esporte e Lazer do Estado do Rio de Janeiro(Ascagel) promove o ato
Foto: Tania Rego/Agência Brasil Rio de Janeiro - A Associação do Conselho Gestor de Esporte e Lazer do Estado do Rio de Janeiro(Ascagel) promove o ato "A alma não tem cor - Não ao Racismo", na praia de Copacabanal(Tania Rego/Agência Brasil)

Na fila do check-in de uma academia de alto padrão em Fortaleza, a microempresária Lívia Nunes, cliente do estabelecimento, foi confundida na recepção com a babá de uma família branca que havia acabado de entrar no local. Sentindo-se constrangida e humilhada, a mulher negra de 41 anos procurou uma Delegacia para formalizar denúncia por crime de racismo.

O caso, que aconteceu em agosto do ano passado, é uma das 171 ocorrências de preconceito de raça e cor registradas no Ceará em 2022. O número é 54% maior do que as estatísticas de 2021, que foi encerrado com 111 denúncias. Os dados foram fornecidos ao O POVO pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS).

A discriminação, na prática, pode ser ainda maior, já que a pasta alega não dispor de informações estratificadas sobre as ocorrências de injúria racial, crime equiparado ao de racismo por uma nova lei em vigor desde o dia 11 de janeiro. Nas Delegacias de todo o Brasil, é comum que a maioria dos casos de intolerância racial sejam enquadrados como injúria. Em São Paulo, por exemplo, o tipo penal foi registrado em 84% das ocorrências ante a 16% de racismo em 2022.

Sem os dados no Ceará, não há como traçar um panorama geral sobre o nível de incidência da discriminação racial no Estado. Além disso, há casos que sequer são levados ao conhecimento das autoridades, conforme analisa o sociólogo, professor e militante do movimento negro, Hilário Ferreira.

“Os casos são bem maiores. As ações racistas estão muito presentes no cotidiano, mas poucas pessoas denunciam. Esse número [fornecido pela SSPDS] talvez seja uma realidade diária e não anual”, pontua. O pesquisador considera que o preconceito motivado pela cor da pele é uma construção histórico-social permanente ainda não tratada com a devida seriedade pelo Estado.

Para Hilário, a punição “quase nula” aplicada a quem comete racismo no Brasil e no Ceará é a causa de um ciclo de discriminação sem horizonte para ser encerrado. Ele mesmo, enquanto homem negro, sente na pele as consequências do preconceito. “Às vezes ando pelas ruas, as pessoas me olham, mas me veem como um inimigo potencial, principalmente mulheres brancas, porque no imaginário coletivo, nós homens negros, somos marginais”

A discriminação narrada por Hilário é a mesma que se manifestou diante de Lívia. O racismo, muitas vezes velado, é demonstrado com gestos que machucam tanto quanto palavras ofensivas. “Na cabeça daquela recepcionista, uma preta não pode pagar quase 500 reais numa academia, ela enxerga isso como algo inconcebível”, reflete a microempresária.

Mais de cinco meses após registrar o Boletim de Ocorrência, ela segue em busca de respostas da Justiça. O inquérito do caso foi concluído e encaminhado ao Ministério Público no começo de dezembro. Não há data prevista para novos desdobramentos. “A morosidade favorece o infrator”, assinala Lívia.

A luta contra a impunidade, na visão de Hilário Ferreira, teria mais chances de progresso caso estivesse amparada em um pacto nacional entre sociedade e Estado, tendo quatro eixos: fortalecimento das políticas afirmativas, discussão profunda sobre as relações raciais nas escolas, expansão e criação de delegacias especializadas de combate ao racismo e atualização do estatuto da igualdade racial.

Delegacia especializada e nova Secretaria reforçarão combate ao racismo


O enfrentamento ao preconceito racial no Ceará será reforçado pela recém-criada Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim), unidade especializada vinculada à Polícia Civil. Ainda não há prazo, conforme a SSPDS, para a abertura do equipamento. Além da repressão ao racismo, a Delegacia vai atuar no combate a crimes de intolerância religiosa e LGBTfobia.

Em outra frente, o Governo do Ceará anunciou a criação da Secretaria da Igualdade Racial do Ceará, cuja atribuição central será a formulação de políticas públicas para a redução do racismo estrutural e construção de uma agenda de avanços na pauta racial.

A professora universitária Zelma Madeira, militante histórica na área de igualdade étnico-racial, foi a escolhida pelo governador Elmano Freitas para comandar a pasta. “Vamos trabalhar diretamente no enfrentamento ao racismo estrutural para que a gente possa superar as desigualdades sociais que ainda imperam entre nós”, disse ela.

A secretária comentou que equivalência penal entre os crimes de racismo e injúria, instituída pela recente mudança na legislação, é um ativo a mais na luta contra a discriminação racial. “Isso vai servir para que a gente pare de naturalizar as hierarquias raciais e que não podemos achar que a injúria tem menor desdobramento na vida da vítima”, reforçou.

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