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Chacina dos Portugueses: 22 anos depois, mentor está em semiliberdade
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Chacina dos Portugueses: 22 anos depois, mentor está em semiliberdade

| Mais de 100 anos | Três dos quatro condenados pelo crime estão em regime de semiliberdade. Luís Miguel Militão deverá ter pena encerrada em 2027
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 09-08-2016: 15 anos de chassina dos portugueses na Praia do Futuro. NA FOTO- Adelina Farias Barroso, dona da barraga Vela Latina. (Foto: Evilázio Bezerra/O POVO) (Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA FORTALEZA, CE, BRASIL, 09-08-2016: 15 anos de chassina dos portugueses na Praia do Futuro. NA FOTO- Adelina Farias Barroso, dona da barraga Vela Latina. (Foto: Evilázio Bezerra/O POVO)

Três dos quatro homens condenados pela "Chacina dos Portugueses", ocorrida em 2001, estão em regime semiaberto. Todos tiveram penas de mais de 100 anos e o mentor do crime - seis empresários foram torturados e enterrados vivos - Luís Miguel Militão Guerreiro, também português, tem previsão para encerrar a pena em 20/03/2027.

Foi Militão que teve a maior pena: 150 anos, em julgamento realizado em 2002. Manoel Lourenço Cavalcante e José Jurandir Pereira Ferreira foram condenados a 120 anos de prisão, enquanto
Raimundo Martins da Silva Filho (considerado o mais violento) foi condenado a 132 anos.

Outro condenado, Leonardo Sousa do Espírito Santo, está em regime fechado. Já no nome de José Jurandir Pereira, conforme o Tribunal da Justiça do Ceará (TJCE), "não consta processo em andamento ou em fase de execução penal". Como a lei brasileira prevê pena máxima de 30 anos, presos devem sair da cadeia dentro desse prazo limite.

Era madrugada de 12 de agosto de 2001 quando a barraca Vela Latina, na Praia do Futuro, em Fortaleza, se tornava cenário de um crime que viria a assombrar o Brasil e a Europa. Seis empresários portugueses foram torturados e enterrados vivos, naquela que ficou conhecida como a "Chacina dos Portugueses", marcada como um dos crimes mais chocantes da história do Ceará.

O mentor intelectual do ato criminoso foi Militão, natural de Portugal, tal qual todas as vítimas. Em entrevista ao O POVO em 2001, o homem comentou que tudo começou com uma “brincadeira”. 

Conforme contou, ele teria avisado ao restante dos acusados sobre a chegada de uns amigos de Portugal. Seus conterrâneos, e futuras vítimas, eram Joaquim Silva Mendes, Joaquim Manuel Pestana da Costa, Joaquim Fernandes, Manuel Joaquim Barros, Vítor Manuel Martins e António Correia Rodrigues.

Ao saber da notícia, os demais acusados teriam passado, então, a ventilar a possibilidade de ficar com o dinheiro dos empresários. O planejamento do crime teria começado a se consolidar cerca de um mês antes da chegada dos portugueses. Sequestro e um pedido de resgate chegaram a ser cogitados pelo grupo. 

Segundo contou Militão ao O POVO na época, matar os turistas não fazia inicialmente parte das intenções dele e dos demais acusados. No entanto, pouco dias antes da chegada do estrangeiros, os criminosos chegaram a conclusão de que essa seria a “melhor solução” para que não fossem descobertos.

Militão conhecia António Correia Rodrigues, um dos viajantes, e inclusive morou com a família da vítima por três meses— segundo apurou, à época, a Folha de S. Paulo. Na entrevista para O POVO, Militão chegou a dizer que havia se separado e que o contemporâneo "tinha sido o seu melhor amigo" após divórcio. 

Naquele período, Militão havia arrendado a barraca Vela Latina, junto ao seu cunhado, Manoel, e transformado o espaço em boate. Assim que chegou ao Aeroporto de Fortaleza, o grupo de turistas foi conduzido pelos criminosos ao local, onde começaram a beber juntos. Alguns dos envolvidos eram seguranças do espaço. 

Durante a madrugada, os acusados renderam os turistas e trancaram eles no banheiro do estabelecimento. Militão fez com que vítimas entregassem seus cartões de créditos e bancários, junto com as senhas, e saiu para testar se conseguiria realizar saques. Ao confirmar a possibilidade, ele faz uma única ligação para os associados que ficaram na barraca, dando aval para a execução do crime macabro.

O grupo, então, iniciou uma sessão de torturas contra as vítimas, que terminaram sendo enterradas no chão da cozinha. De acordo com resultados das autópsias feitas nos corpos, os turistas foram torturados, espancados, agredidos a pauladas, estrangulados, baleados, asfixiados e enterrados vivos.

 

Destino do "Monstro de Fortaleza" e dos demais acusados

O retorno do grupo turístico para Portugal estava previsto para o dia 21 de agosto e, diante da falta de notícias da família sobre eles, os lusitanos foram dados como desaparecidos. No dia 23 do mesmo mês, O POVO trazia estampada na manchete a notícia: "Empresários cearenses desaparecem no Ceará".

Militão chegou a fingir que também era vítima do crime. No entanto, ele usou os cartões da vítimas para realizar saques e foi descoberto pela polícia um dia após a ação criminosa. O mandante português fugiu para Barra do Corda, no Maranhão, mas foi localizado e confessou sua parte no crime, indicando os demais associados.

Popularmente conhecido como o “Monstro de Fortaleza”, o português revelou detalhes que assombraram até mesmo o delegado federal responsável pelo caso, Cláudio Barros Joventino. Segundo reportagens anteriores do O POVO, ele disse "nunca ter visto" um crime assim sem "compaixão".

De acordo com denúncia do Ministério Público, o segurança Raimundo Martins foi o mais violento durante a ação. Ele teria, "de revólver em punho e mediante grave ameaça de morte", rendido os portugueses e os obrigado a deitar no chão. Grupo criminoso foi condenado a mais de 100 anos de prisão, em julgamento realizado em fevereiro de 2002 — um ano após o crime. 

Apuração feita pelo O POVO em 2021 apontou que Militão, o mentor do crime, se dedicou aos estudos na cadeia. Ele se formou em Pedagogia, fez estágios no próprio sistema prisional, chegou a cursar Letras e a fazer uma especialização em Gerontologia (estudo do envelhecimento). À época, uma pessoa que manteve contato com o português informou que o réu confesso passava uma sensação "de arrependimento" e buscava pela ressocialização.

Militão ainda escreveu um livro descrevendo detalhes do caso. Em trechos da obra, intitulada como "Morrer na Praia do Futuro — a verdade de Luís Miguel Militão", ele detalha: “O rosto deles era de pânico e senti que alguns desconfiavam do meu envolvimento no sequestro (....) Olhei para o Tavares (António) e vi que ele estava de cabeça baixa com ar de abatido e sentia-se traído por mim. Foi a última vez que vi aqueles seis homens, compatriotas e pais de família”.

Crime assombrou o Ceará 

Cláudio Ribeiro, que à época do crime era um dos editores de Cidades do O POVO, lembra que a notícia do desaparecimento movimentou a redação. Conforme o hoje repórter especial da mesma editoria, houve inicialmente a suspeita de que turistas estivessem envolvidos com turismo sexual, que naquele período era muito forte em Fortaleza.

"Foi um caso que teve muita repercussão (...) Houve uma reclamação das famílias junto à Polícia Federal para saber onde eles (vítimas) estavam. Imediatamente a polícia passou a rastrear gastos bancários (...) Publicamos uma matéria com poucas informações e no dia seguinte já havia informações de que o Militão seria a pessoa envolvida nesse caso", destaca o jornalista. 

Por volta das 17h45min do dia 23 de agosto de 2001, a Polícia Federal achou o primeiro dos corpos empilhados em uma cova coletiva, debaixo do piso da barraca. A notícia virou destaque nos jornais locais e assombrou cearenses na época, que não estavam acostumados a ver crimes desse tipo nos noticiários.

"Esse caso foi muito horroroso naquela época. Foi uma coisa que chamou muita atenção realmente (...) A forma como eles morreram chocou por ser um grupo de estrangeiros. Chacina não era um crime tão em evidência (no Ceará) (...) Chama a atenção o cinismo do português que planejou tudo (Militão) A motivação banal por um dinheiro besta, a forma como eles foram enterrados no piso", detalha Cláudio.

Com pouco mais de três décadas de atuação como jornalista, Cláudio ainda afirma que a cobertura do crime foi uma das mais chocantes em que já atuou no Estado. "Esse caso não vai sair da história do jornalismo local. O crime do Ceará tem esse caso como um capítulo, certamente", destaca.

Demitri Túlio foi um dos jornalistas do O POVO a assinar matérias sobre o caso na época em que ele aconteceu. É dele, ao lado de Luiz Henrique Campos, a reportagem publicada no dia 27 de agosto de 2001, trazendo uma entrevista com Militão, intitulada: "O golpe, sequestro e resgate de um milhão de reais". 

Mais de duas décadas após o crime, Demitri é um dos profissionais que assinam a direção de filme documental sobre a chacina, exclusivo para O POVO +. Produção original, intitulada “Enterrados Vivos”, tem previsão de estreia para 27 de novembro na plataforma, exclusiva para assinantes.

Repercussão do outro lado do Atlântico

Na época do ocorrido, O POVO mostrou ainda a repercussão que o caso teve em Portugal, terra natal das vítimas. A edição do dia 26 de agosto de 2001, por exemplo, trouxe a imagem do periódico português "Correio da Manhã", que trazia em sua manchete a frase: "Morte de seis no Brasil convoca reações de dor". 

Já o "Jornal de Notícias", também de Portugal, usou apenas uma palavra para expressar a gravidade do caso: "Choque". A Rádio-Televisão Portuguesa (RTP) acompanhou o ocorrido intensamente e agências internacionais também noticiaram o ocorrido, se referindo à tragédia como "Viagem para a morte". 

Nas semanas seguintes ao crime foram veiculadas reportagens sobre o rumo das investigações também direto das localidades de onde saíram as vítimas e o executor. O caso ainda ecoa no lado lusitano do Atlântico. Prova disso é que, em 2019, o site "Observador" publicou um especial com o título: "Militão. 18 anos depois do massacre, o 'Monstro de Fortaleza' quer ser professor".

O POVO também teve acesso ao drama vivenciado pelos familiares das vítimas. Uma reportagem veiculada na edição do impresso do dia 25 de agosto de 2001, traz o relato sobre o estado psicológico de Alice Barros, esposa do empresário Manuel Joaquim, ao saber da morte do marido por meio de rede nacional. "Ela não para de chorar. Foi medicada mas está abalada demais", contou uma amiga da família.

Confira passo a passo de como o plano foi executado:

1: Militão recebe os conterrâneos no aeroporto e os convida para uma "farra".

2: O grupo dispensa o transporte que o levaria para um hotel na Praia de Iracema e segue em uma van para a barraca Vela Latina, na Praia do Futuro.

3: Na barraca, eles bebem um litro e meio de uísque por cerca de duas horas.

4: Cansados, os turistas pedem para ir para o hotel e Militão diz a frase "agora ou nunca", que serve como código aos demais para dar inicio a operação.

5: Turistas são rendidos, coagidos a entregarem cartões e senhas, e depois são amarrados e presos em um banheiro do local.

6: Militão sai para testar as senhas. Uma vez confirmadas, ele liga para um dos associados e manda executar todos os portugueses.

7: Empresários são tirados do banheiro e submetidos a uma sessão de tortura que envolve pauladas, asfixia e tiros. Depois são enterrados em um única vala, cavada no dia anterior, e coberta em seguida com cimento para não deixar pistas.

8: No dia seguinte, um outro homem é contratado para abrir mais um buraco e enterrar as malas e sacolas trazidas pelos turistas. Um pedreiro é contratado para cimentar o local. 

 

Com informações de Lucas Barbosa e pesquisa de 
Miguel Pontes (Data.Doc O POVO) 

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