Há 20 anos, o Ceará, o Brasil e Portugal recebiam em choque a notícia de que seis empresários portugueses, dados como desaparecidos, haviam sido enterrados vivos em uma barraca na Praia do Futuro. A Chacina dos Portugueses, como o caso ficou conhecido, chegou a ser tratada como a maior da história do Estado, isso em uma época em que os assassinatos múltiplos não faziam parte do cotidiano do cearense.
O crime ocorreu na madrugada de 12 de agosto de 2001. No dia 16, o então cônsul honorário de Portugal em Fortaleza, Carlos Pimentel de Matos, recebeu o primeiro contato. O retorno deles a Portugal era aguardado em 21 de agosto. No dia 24, O POVO trazia a notícia do desaparecimento. Por volta das 17h45min de 24 de agosto de 2001, a Polícia Federal achou o primeiro dos corpos empilhados em uma cova coletiva, debaixo do piso de uma barraca da Praia do Futuro, a Vela Latina.
O crime completa duas décadas com o homem apontado como articulador do crime ainda preso em regime fechado. O também português Luís Miguel Militão Guerreiro, hoje com 51 anos, foi condenado a 150 anos de prisão — como a lei brasileira prevê pena máxima de 30 anos, ele deverá ser solto em 2031. E poderá receber progressão para o regime semiaberto em 2024, conforme apurou O POVO, onde poderá sair para trabalhar e estudar e retornar para uma unidade prisional.
Pelo menos, outros três condenados pelo crime — Manoel Lourenço Cavalcante, Leonardo Sousa dos Santos e Raimundo Martins da Silva Filho — já cumprem pena em regime semiaberto, confirmou o Tribunal de Justiça do Estado (TJCE). O TJCE não conseguiu encontrar, no sistema que centraliza as informações de execução penal, dados referentes ao quinto condenado, José Jurandir Pereira Ferreira. Em 2016, o Tribunal havia informado a O POVO que José Jurandir poderia pedir progressão de regime em 2021.
Todos os cinco homens apontados na investigação da Polícia Federal (PF) como sendo partícipes no crime foram condenados a penas que ultrapassaram os 100 anos. As autópsias revelaram que os portugueses foram espancados, agredidos a pauladas, estrangulados, baleados e asfixiados. Entretanto, eles foram enterrados ainda vivos. Foram mortos na chacina: Joaquim Silva Mendes, Joaquim Manuel Pestana da Costa, Joaquim Fernandes, Manuel Joaquim Barros, Vítor Manuel Martins e António Correia Rodrigues.
Em entrevista a O POVO ainda em 2001, Militão disse que tudo começou com uma “brincadeira”. Ao dizer que uns amigos “estribados” de Portugal estavam vindo para Fortaleza, ele e os demais acusados passaram a comentar sobre ficar com o dinheiro deles. Sequestro e pedido de resgate também foi ventilado. O crime começou a ser planejado cerca de 20 ou 30 dias antes, segundo afirmou. Matar, porém, só foi acordado poucos dias antes. Seria a “melhor solução” para não serem descobertos, contou. Ele chegou a dizer na entrevista que Antônio havia sido o seu melhor amigo, após o divórcio.
Assim que chegaram ao aeroporto em Fortaleza, as vítimas foram direto para a barraca Vela Latina, que Militão havia arrendado junto ao seu cunhado, Manoel, e transformado em boate. Lá, passaram a beber com Militão, Manoel e os demais acusados, seguranças da barraca. Em seguida, porém, eles foram rendidos e mortos. Militão chegou a fingir que também era vítima do crime, tendo saído para confirmar as senhas dos cartões dos compatriotas. Mesmo após o crime, ele continuou fazendo saques e foi assim que a PF localizou seu paradeiro: havia fugido para Barra do Corda, no Maranhão. Na delegacia, ele confessou o crime.
RELEMBRE CAPAS HISTÓRICAS DO O POVO:
Militão chegou a escrever um livro contando detalhes do caso. “O rosto deles era de pânico e senti que alguns desconfiavam do meu envolvimento no sequestro”, disse em "Morrer na Praia do Futuro — a verdade de Luís Miguel Militão". Olhei para o Tavares (Antônio) e vi que ele estava de cabeça baixa com ar de abatido e sentia-se traído por mim. Foi a última vez que vi aqueles seis homens, compatriotas e pais de família”.
Na cadeia, Militão passou a se dedicar aos estudos. Ele se formou em Pedagogia, fazendo estágios no próprio sistema prisional. Também cursou Letras, faculdade em que ainda não se graduou, assim como uma especialização em Gerontologia. Conforme pessoa que manteve contato com ele, a sensação que o português passa é de arrependimento e busca pela ressocialização. Militão ainda nutriria um sentimento de injustiça com a “fama” obtida pelo alcance midiático que o caso teve. Isso resultou, segundo acredita, em um tratamento normal aos demais réus, enquanto ele teve dificuldade de conseguir benefícios legais.
O sentimento que as notícias provocaram do outro lado do Atlântico foi sintetizado na manchete do Jornal de Notícias, de Portugal: "Choque". A cobertura foi intensa não só na imprensa portuguesa, mas também agências internacionais divulgaram o assunto pelo planeta. "Viagem para a morte" foi a forma de se referir ao assunto usada pelo site Lusomundo.
A imprensa portuguesa descreveu a reação dos familiares. "Tenho chorado mais pelo meu filho do que na minha vida toda", disse Luísa Barros, mãe de Manuel Barros, que tinha 80 anos, publicou o Jornal de Notícias.
"As viúvas de Manuel Barros e Joaquim Mendes, duas irmãs que viram partir os maridos no dia 11, para uma viagem de férias a Fortaleza, não conseguiram conter os gritos e as lágrimas. Cedo a casa se encheu de gente. Familiares e amigos que se uniram na dor", informou o jornal na época.
A Rádio-Televisão Portuguesa (RTP) acompanhou o caso intensamente, desde o desaparecimento, entrevistou o delegado durante as buscas, até a notícia do trágico desfecho.
Nas semanas seguintes, a cobertura continuou intensa dos dois lados do oceano. Enquanto a imprensa portuguesa acompanhava o rumo das investigações em Fortaleza, havia reportagens direto das localidades de onde saíram as vítimas e o executor, na tentativa de reconstituir os passos de uns e outro.
O caso ainda assombra os lusitanos. Em 2019, o site Observador publicou especial com o título: "Militão. 18 anos depois do massacre, o 'Monstro de Fortaleza' quer ser professor".
"Apesar de, no início, não terem acreditado na confissão — 'Era demasiado macabro' –, as autoridades assumiram logo que o responsável máximo pelo que quer que tivesse acontecido, sequestro ou homicídios, era Luís Miguel Militão Guerreiro. 'Não quero eximi-los de culpa, também foram condenados, sabiam o que estavam a fazer, mas os outros foram meros executores. O Militão não sujou as mãos com sangue, ele era o intelectual, foi ele quem teve a ideia e comandou tudo', garante o responsável pela investigação" (o delegado federal Cláudio Barros Joventino).
"Investiguei outros crimes violentos, mas assim, seis homicídios visando apenas a parte financeira, sem compaixão, eu nunca vi, não", disse Joventino 18 anos depois, ao site português.
Nos 20 anos da chacina dos portugueses, O POVO remonta a trajetória das chacinas no Ceará