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ANP faz leilão hoje, com blocos sobrepostos a comunidades, incluindo quilombo no Ceará
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ANP faz leilão hoje, com blocos sobrepostos a comunidades, incluindo quilombo no Ceará

Negócio está sendo chamado de "leilão do fim do mundo", por envolver terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação ambiental. Serão postos à venda 602 blocos, na terra e no mar, para exploração de petróleo e gás natural no Brasil. Ações judiciais tentam reverter a situação
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Foto de apoio ilustrativo: Prédio da igreja de São José, na comunidade Córrego de Ubaranas, teria mais de 200 anos, segundo lideranças locais (Foto: DIVULGAÇÃO / ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA CÓRREGO DE UBARANAS)
Foto: DIVULGAÇÃO / ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA CÓRREGO DE UBARANAS Foto de apoio ilustrativo: Prédio da igreja de São José, na comunidade Córrego de Ubaranas, teria mais de 200 anos, segundo lideranças locais

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realiza nesta quarta-feira, 13, no Rio de Janeiro, o megaleilão de 602 áreas para exploração de petróleo e gás natural no Brasil. Com lotes na terra e no mar por nove bacias sedimentares, será o maior do setor já realizado no País. Chega a mais de 2% do território brasileiro. Os lances ocorrerão pela manhã, para o 4º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão (OPC), e à tarde, para o 2º Ciclo da Oferta Permanente da Partilha (OPP). Há 87 empresas inscritas para a disputa. Mas, para além do negócio, ambientalistas e representantes de povos tradicionais estão dimensionando o impacto socioambiental da possível venda como "o leilão do fim do mundo”.

A pecha é atribuída por conta da sobreposição ou interferência direta desses blocos exploratórios a pelo menos 6 territórios quilombolas, 22 aldeias indígenas e a 15 unidades de conservação nacionais. O risco, citado em relatórios técnicos, descreve danos a cadeias de montanhas oceânicas de Fernando de Noronha, a exploração acontecendo em costas de corais e manguezais em vários pontos do País, além de desfazer as rotinas das comunidades e atingir solo, rios, fauna e flora. Nenhum aldeamento ou quilombo teria sido comunicado ou consultado a respeito.

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A situação alcança diretamente o Ceará. Quatro desses lotes negociáveis, inseridos na Bacia Sedimentar Potiguar, estão totalmente sobrepostos ao Quilombo Córrego de Ubaranas, dentro do município de Aracati. A área afetada tem 16,26 km², com 316 pessoas (61 famílias) que se autodeclaram quilombolas. As lideranças só teriam sido alertadas cerca de três semanas atrás, por uma mensagem de WhatsApp enviada por um representante do Instituto Internacional Arayara, de Brasília. A organização não-governamental atua desde 1992 em causas ambientais, de direitos humanos e de justiça social.

“Vou te confessar, pensei que era fake news, quando nos disseram. A gente ainda passou uns dias investigando se era verdade. Chegou uma mensagem da (ONG) Arayara. Fiquei assustada. A gente não estava sabendo de nada. Quando recebemos os mapas, fizemos uma reunião, aí foi caindo a ficha que era mesmo verdade”, descreve Kilvia Pereira da Silva, vice-presidente da Associação dos Agricultores e Agricultoras Remanescentes do Quilombo do Córrego de Ubaranas.

“Agora o medo dos moradores é ter que sair do canto deles. São mais de sete gerações. Minha avó contava histórias da avó dela, que já estava aqui”, desenha a representante, sobre a cronologia do lugar. A Igreja de São José, imóvel mais antigo do povoado, existe há mais de 200 anos, segundo ela. “Minha vó contava que a avó dela e outras mulheres carregaram as pedras na construção da igreja. E que havia um tronco na região onde os trabalhadores eram açoitados pelos patrões”.

“Se essas terras forem adquiridas no leilão, esses territórios tradicionais vão ser substituídos por áreas de exploração de petróleo”, afirma Nicole Araújo, diretora-executiva da Arayara. Ela disse que a estratégia tomada foi judicializar a questão, para tentar reverter ou reduzir a abrangência do leilão. Pelo menos oito ações civis públicas pedem a exclusão de 77 blocos ofertados (13%), dos que alcançam as áreas das comunidades ou das unidades de conservação. “São ações diferentes, cada uma com características e justificativas jurídicas para os vários tipos de ilegalidades”, pontua.

A situação teria sido tão surpreendente que a ação judicial que menciona a sobreposição dos blocos exploratórios aos quilombos só foi protocolada na tarde da última segunda-feira, 11. Nem o próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que conduz o processo administrativo por ser terra de interesse federal para demarcação, teria sido avisado sobre o leilão. O POVO procurou o órgão federal, mas não recebeu resposta até o fechamento da edição. Essa informação foi confirmada pelo Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA)

Em 2010, a comunidade Córrego de Ubaranas recebeu o Certificado de Reconhecimento da Alta Identificação Quilombola. O documento, concedido pela Fundação Cultural Palmares, do Governo Federal, é usado para obter a demarcação do território e o reconhecimento da ancestralidade negra. Em março de 2022, o juiz Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro, da 15ª Vara Federal em Limoeiro do Norte, anulou o procedimento de 2010.

Atendeu a demanda feita por fazendeiros locais, em 2017, que reivindicam o direito a propriedades dentro da mesma área demarcável. O caso está em recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife (TRF-5). Na decisão, o magistrado destacou que “no Ceará nunca houve uma quantidade tão expressiva de negros escravizados como existia em estsdos vizinhos".

Nota não esclarece se comunidades foram consultadas

Em nota ao O POVO, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) não respondeu se havia contatado ou consultado previamente as comunidades quilombolas e indígenas afetadas pelos lotes oferecidos nesta quarta, 13, no maior leilão para exploração de petróleo e gás natural já realizado no Brasil.

Sobre as questões ambientais, a ANP detalha que "a aprovação de inclusão dos blocos nas rodadas de licitações não significa aprovação tácita para o licenciamento ambiental pelos órgãos responsáveis, etapa que é realizada após a assinatura dos contratos". Segundo o órgão, todas as atividades que as concessionárias venham a executar nas áreas demandarão processo de licenciamento ambiental detalhado, conduzido pelo órgão ambiental competente.

"Como o licenciamento ambiental é feito para cada atividade a ser executada nas áreas sob contrato (por exemplo, perfuração de um poço), não teria como ser feito previamente ao leilão", amplia a nota. A ANP diz que segue determinação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), com consulta prévia aos órgãos ambientais (Ibama, para áreas marítimas, e estaduais), além de manifestações dos ministérios das Minas e Energia (MME) e do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

Nos dois leilões de hoje, a diferença será quanto ao regime de contratação das áreas. Um será de partilha (2º Ciclo da Oferta Permanente de Partilha), para as áreas de pré-sal e as consideradas estratégicas pelo CNPE. O outro será de concessão (4º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão), o mais abrangente, relativo às demais áreas. É o que tem os lotes questionados por conta das sobreposições a aldeias, quilombos e unidades de conservação.

Protesto

Moradores de várias das comunidades atingidas pelos lotes e ambientalistas farão protesto hoje no Rio de Janeiro, em frente ao Windsor Barra Hotel, onde o leilão será realizado.

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