O sorriso no rosto da crocheteira Kátia Lúcia Lima de Menezes, de 52 anos, resplandece também na parede da fachada de sua casa. Nas escadarias da rua Iemanjá, no Grande Mucuripe, em Fortaleza, as feições da dona de casa ganharam cores na representação artística de seu rosto pelas mãos de Dinha Ribeiro, uma das artistas convidadas pelo Coletivo Farol Encantado.
A obra é uma das incontáveis pinturas que compõem a galeria da iniciativa que se propõe a ser o maior museu a céu aberto da América Latina, como explica Márcio Gabriel ‘Pig’. Das 18 escadarias mapeadas pelo projeto, cinco já foram revitalizadas.
Aos 23 anos, o artista e produtor cultural capitaneia as pinturas das escadarias do Grande Mucuripe em parceria com o também artista visual e produtor cultural, Francisco Ribeiro ‘Berin’, de 26 anos; e da produtora comercial Amanda Oliveira Quintela, de 22 anos.
“Eles fazem isso de coração, pela comunidade. Eu acho uma coisa muito bonita, muito bem sucedida”, compartilha Kátia Lúcia. Ela relembra a emoção que sentiu ao vislumbrar a pintura de seu imóvel e acredita que a iniciativa vem ajudando os moradores a reencontrarem o sentimento de pertencimento no próprio território e a se unirem mais enquanto comunidade.
“Quando eles chegam, fica todo mundo ‘pinta a minha porta, pinta o meu portão’. Eu acho que eles fazem uma coisa para deixar as pessoas felizes. Às vezes a pessoa tá triste, porque não tem condições de pintar sua casa, e chega uma pessoa dessa e fala ‘eu vou pintar sua casa’. Que coisa boa. Ninguém quer que pare de pintar, é uma coisa muito legal”, conta.
Nos corredores da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) Matias Beck, a caminhada artística de Pig e Berin foi potencializada durante suas eletivas de Grafite e Desenho, respectivamente. Foi ali onde o Coletivo foi idealizado. Em 2017, a teoria foi colocada em prática durante a revitalização das escadarias que ligam a rua Professor Luís Costa e a comunidade do Pilão.
Inspirado pelo projeto Cores do Pizón, Gabriel ‘Pig’ conta que chamou Berin e sugeriu a criação do Coletivo. “Só que a gente tinha que colocar a nossa identidade, o nosso nome, aquele que a gente achava melhor; e aí acontecer do nosso jeito e do jeito de um toque mais especial”.
Rejeitando o batismo do projeto em homenagem ao colonizador espanhol, Vicente Pizón, nasceu o Coletivo Farol Encantado. “Hoje a gente já não se enxerga mais como o projeto, a gente virou um coletivo e um coletivo muito grande, que conecta vários artistas de Fortaleza, de vários territórios”.
Além do cenário local, as escadarias e paredes do Grande Mucuripe reúnem a produção de artistas de Pernambuco, Piauí, Brasília, Rondônia e São Paulo. O denominador comum dessa efervescência cultural brasileira? A pesca.
“A gente pede muito que os artistas se conectem ao território a partir desse processo da pesca, porque o Grande Mucuripe iniciou com a Vila de Pescadores, na Beira Mar. Com a chegada da urbanização, eles foram adentrando os morros e formando essa grande comunidade. A maioria das ruas são ligadas à pesca; o nome das ruas e as famílias que habitam aqui sobrevive da pesca”, explica Pig.
E acrescenta: “Eu acho que é importante essa identidade para trazer uma sensação de pertencimento, de resistência. Então, para além disso, tem essa conexão dos moradores com o coletivo, a partir desses murais”.
Os idealizadores contam que a iniciativa pauta e atua sobre outras questões socioambientais enfrentadas pelos moradores do território. “Tem a iluminação; tem as escadas que tinham muita sujeira. Então, a gente teve o processo de limpeza, teve um processo de plantio de mudas, para depois vir as pinturas (...) Quando a gente sai daqui, a gente precisa colocar um líder, e esse líder ele fica responsável de cuidar do espaço e mobilizar que outros moradores cuidem do espaço”, detalha Gabriel Pig.
O contexto urbano violento enfrentado pelo território obrigou os artistas a paralisarem as pinturas das escadarias no início do mês. Somente em julho, foram registrados sete homicídios no bairro Vicente Pizón, que vem sofrendo por um conflito entre as facções criminosas.
“A ideia do coletivo é funcionar como um colete à prova de bala para a comunidade”, enfatiza Berin ao falar sobre o propósito por trás da criação do Coletivo Farol Encantado.
Pig acredita que a revitalização pode contribuir para reduzir a violência no território. “A gente tenta se conectar com o poder público para que possa incentivar mais vezes essa revitalização, essa urbanização do nosso jeito, porque geram identidade, geram pertencimento e aí a partir disso as pessoas passam a cuidar melhor”, destaca.
Como um dos idealizadores do Coletivo, Berin espera que esse sentimento de proteção se estenda a todos os moradores do território. “Eu acho que o nosso coletivo vai trazer esse colete para a comunidade completa, tá ligado? Tipo assim, a gente não tá só pintando parede, a gente tá transformando a comunidade em algo vivo, em algo que pulsa para fora”.