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Covid-19: Quais são os impactos para quem está crescendo na pandemia
Ciência e Saúde

Covid-19: Quais são os impactos para quem está crescendo na pandemia

Os primeiros anos de vida, importantes para o desenvolvimento infantil, exigem exposição a uma diversidade de estímulos. Apesar de necessários para conter a Covid-19, o distanciamento social e a consequente falta de convivência com colegas e familiares podem proporcionar consequências negativas para os mais novos
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O bebê Davi e o irmão Caio crescem em contexto de menor convivência com a família estendida, com colegas na escola e em locais públicos (Foto: BARBARA MOIRA)
Foto: BARBARA MOIRA O bebê Davi e o irmão Caio crescem em contexto de menor convivência com a família estendida, com colegas na escola e em locais públicos

Caio tinha 9 meses de idade quando chegou à família da bióloga Cintia Melo, 39, e do engenheiro mecânico e professor Jean Silva, 41, em julho de 2019. Dez meses depois, nasceu o irmão mais novo, Davi. Era maio de 2020, e o Ceará vivenciava o primeiro pico da pandemia de Covid-19. Caio não estava mais frequentando a escola desde março, quando também houve interrupção de consultas que realizava semanalmente. As visitas a avós e tios e os passeios na pracinha perto de casa também já não faziam parte da rotina.

O período entre junho e setembro após o nascimento do caçula foi estressante para a família. Os quatro se mantiveram em confinamento, e as saídas de casa restringiam-se às idas ao supermercado. Além dos cuidados com um recém-nascido e uma criança pequena, lidar com todas as tarefas domésticas sugou as energias dos pais. Quando as aulas presenciais voltaram, Caio não estava mais tão sociável como era antes. “Ficava encostadinho na gente, evitava as pessoas, não tentava falar, não emitia som para as pessoas. Ficou tímido, fechado”, conta a mãe.

O período sem convívio social e sem as terapias de fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia, necessárias por ele ter nascido prematuro, “travaram” o desenvolvimento do menino. Casos assim são exemplos de possíveis repercussões da pandemia de Covid-19 na etapa inicial da vida, apesar de as medidas de distanciamento social adotadas em todo o mundo serem essenciais para conter a disseminação da doença.

As crianças pequenas, incluindo as nascidas de março de 2020 em diante, quando a Covid-19 chegou ao País, ainda não conseguem compreender o que significa a pandemia ou o que é o coronavírus. Porém, elas são impactadas pelas experiências e pelo convívio — ou a falta dele — com os pais e demais familiares. É por isso que tensão, medo, estresse e angústia causados pela pandemia em jovens e adultos também podem gerar reações nas crianças.

O documento “Repercussões da Pandemia de Covid-19 no Desenvolvimento Infantil”, produzido pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), aponta que elas podem passar a dormir mal, não comer, chorar, morder ou demonstrar apatia ou distanciamento.

Um dos pontos a que os pais devem ficar atentos é caso as crianças não demonstrem interesse em brincar. Segundo o psicólogo Lino de Macedo, integrante do Comitê Científico do NCPI, esse é um importante indicador de como elas estão lidando com a situação. “Crianças saudáveis brincam. Brincam com objetos, com outras crianças, com adultos e sozinhas”, pontua.

Os dois primeiros anos de vida são essenciais para o desenvolvimento sensorial motor, e nessa fase é preciso ser exposto a estímulos variados. “A criança sabe ouvir, mas não sabe falar, por isso precisa de pessoas que falem com ela, contem histórias, botem no colo, brinquem. São dois anos de vida muito importantes”, exemplifica Macedo, que é professor emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

“Este primeiro tempo do desenvolvimento é um momento em que o cérebro se desenvolve em uma velocidade vertiginosa, como nunca mais em outra etapa da vida”, reforça Anamaria Cavalcante e Silva, presidente da Sociedade Cearense de Pediatria (Socep), coordenadora de Educação em Saúde, Ensino, Pesquisa de Programas Especiais da Secretaria da Saúde de Fortaleza (SMS) e docente do Centro Universitário Christus (Unichristus). De acordo com a médica, atraso na fala por falta de estímulo é um problema que já está ocorrendo.

Isso porque, com a menor convivência da família estendida ou com colegas na escola e em locais públicos, esses estímulos diminuem. A indicação da psicóloga Ticiana Santiago, doutora em Educação Brasileira, é de que pais e responsáveis recriem esse ambiente de diversidade em casa para que os pequenos não passem a “estranhar” o diferente. É necessário criatividade para lidar com as crianças no contexto do confinamento, apesar de a sobrecarga e o cansaço dos adultos serem desafios para o estabelecimento do vínculo.

“As crianças pequenas têm uma característica muito forte: elas aprendem muito através do corpo e dos movimentos. Esse desenvolvimento simbólico, como entender ‘eu amo você’, exige um nível de abstração cognitiva que elas ainda não têm, que só vão ter quando desenvolverem mais a linguagem, e o desenvolvimento dá um salto qualitativo”, explica Ticiana.

Pode-se, então, colocar músicas ou áudios de outras pessoas, ler com as crianças, estimular pinturas e desenhos, pular corda e variar no cardápio, por exemplo. Outra dica é optar por bonecos de etnias diferentes. “Os pais não precisam ser formados em Pedagogia ou Psicopedagogia. Vai muito de conhecer a criança e ver o que se tem disponível em casa”, complementa a psicóloga.

Desenvolvimento infantil e plasticidade cerebral

Com o retorno às aulas presenciais neste ano para a faixa etária de Caio, 2 anos e 7 meses, Cintia Melo e Jean Silva já têm percebido sinais de melhora na fala do menino, até então prejudicada pela interrupção abrupta do acompanhamento multidisciplinar. “O vemos aprendendo coisa nova todo dia. É muito bonito ver o benefício da socialização para uma criança”, conta a mãe.

Em casa, uma estratégia é tentar reproduzir com Caio os exercícios indicados pela fonoaudióloga, apesar de ele não dar muita atenção. Nas brincadeiras, é ele quem guia os pais. “Ele está em uma fase muito exploratória de ambiente, gosta de ver como as coisas funcionam. Abre a cafeteira e quer botar o pó de café dentro. Ele tem essa iniciativa, e a gente vai guiando, cuidando da segurança.”


Ainda que a neurociência aponte os primeiros mil dias de vida (os nove meses da gestação e os dois primeiros anos) e a adolescência como momentos “ótimos” para o neurodesenvolvimento, prejuízos nessas etapas não são, necessariamente, permanentes. Por conta da chamada plasticidade cerebral, mudanças nos estímulos podem ajudar a reverter eventuais perdas. “Sempre é tempo, ainda que haja um momento ótimo para certas experiências se desenvolverem melhor”, afirma o psicólogo Lino de Macedo.

Para exemplificar, o professor emérito da USP cita um caso fictício de duas pessoas analfabetas de 30 anos. Uma frequenta regularmente aulas em uma boa escola voltada para Educação para Jovens e Adultos (EJA) e outra, não. A experiência na sala de aula vai fazer diferença para o desenvolvimento daquela que passou a frequentá-la.

“Você pode ter uma qualidade de experiência que ou estende o tempo, ou o abrevia. O tempo não é lógico, nesse sentido. Às vezes, você perdeu um ano de escola no tempo físico e recupera em dois, três meses. Isso pode acontecer. Isso é plasticidade cerebral”, finaliza Macedo.

Dicas de atividades para fazer com as crianças

Para os menores

Utilizar materiais reciclados para chocalhos;

Frutas de cores, texturas e temperaturas diferentes;

Música e livros de historinha;

Conversar com bebê sobre tudo que se vai fazer com ele;

Para os mais velhos

Culinária, massinha, quebra-cabeças;

Corrida de obstáculos com os objetos de casa;

Teatro de fantoches;

Amarelinha no chão da sala;

Pintura com tinta guache nas paredes do banheiro, dentro do box;

Brincar de cabana com as almofadas;

Brincar de "aventura" criando uma história lúdica e enxergando além do real.

Fonte: Pediatra e endocrinopediatra Lia Beatriz Karbage, 33, mãe de Moysés Neto, de 3 anos e 9 meses, e de Arthur, de 7 meses

Recomendações para lidar com as crianças

1. Procure entender reações de birra, manha, carência ou outras como respostas a uma situação tensa, e não como desafio;

2. Estimule as atividades físicas;

3. Preserve os horários de sono da criança;

4. Possibilite a manutenção dos laços de amizade da criança, ainda que de forma virtual;

5. Delegue tarefas dentro de casa;

6. Elogie a criança por atos bem feitos;

7. Aceite os eventuais recuos em etapas que já haviam sido superadas (como chupar dedo) como sinais de insegurança que devem ser tratados com carinho.

Fonte: Repercussões da Pandemia de Covid-19 no Desenvolvimento Infantil. Disponível em: https://bit.ly/3mwWCfV

Consequências do estresse na pandemia para o desenvolvimento infantil

EFEITOS NAS CRIANÇAS

O distanciamento social pode acentuar ou fazer surgir algumas dificuldades funcionais e comportamentais nas crianças. Reações relatadas pelos pais em estudo em Shaanxi, na China, com 320 crianças e adolescentes:

36% dependência excessiva dos pais

32% desatenção

29% preocupação

21% problemas de sono

18% falta de apetite

14% pesadelos

13% desconforto e agitação

 

EFEITOS NA EDUCAÇÃO

34% DA POPULAÇÃO
de 0 a 3 anos frequenta a creche

93% DAS CRIANÇAS
de 4 e 5 anos frequentam a pré-escola


Com o fechamento dessas instituições:
A merenda (muitas vezes a principal refeição do dia) faz falta para os filhos de famílias mais vulneráveis;

A criança em casa corre mais risco de ser vítima de violência, negligência e falta de estímulos positivos, necessários ao seu desenvolvimento;

Da perspectiva da mãe, a sobrecarga trazida pela falta do apoio do ambiente escolar pode acentuar os casos de depressão materna.

Diálogo
As Secretarias de Educação podem e devem se comunicar com as famílias tanto para ajudá-las a estruturar rotinas práticas quanto para apoiá-las em questões de comportamento da criança ou mesmo de outros adultos que necessitam de cuidados, indicando onde conseguir ajuda.

Tanto por questões de saúde quanto por razões pedagógicas, o ensino a distância não é um recurso recomendável para crianças na primeira infância. Nessa fase, a criança aprende por meio de experiências concretas, interativas e lúdicas.

Exposição a telas
> A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que crianças com menos de 2 anos não sejam expostas a telas.

> Para aquelas de 2 a 5 anos, o tempo deve ser limitado a uma hora diária.

Fonte: Repercussões da Pandemia de Covid-19 no Desenvolvimento Infantil, do Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI). Disponível em: https://bit.ly/3mwWCfV

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