A existência de enfermidades mais predominantes na população negra e na branca é um cenário observado ao longo do tempo. As explicações para a prevalência de algumas doenças em ambos os grupos são esclarecidas por meio de alguns fatores genéticos e teoria histórico-ambiental, como a herança genética, a produção da melanina, a rota do sal e a desigualdade social. A conjuntura, no entanto, passa por mudanças em virtude da alta miscigenação "Mistura de raças" dos genes.
As doenças genéticas são causadas por alterações que afetam os genes que fazem parte do DNA. Este último é responsável por armazenar as características genéticas de cada pessoa, como cor do cabelo e dos olhos. É neste campo também que há a herança genética com a presença dos genes dos pais, condições que são transmitidas de gerações em gerações. Porém, há outros fatores que contribuem para o surgimento das doenças.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que existem mais de cinco mil doenças genéticas descritas, que podem causar sintomas no nascimento ou ao longo da vida. As principais doenças com maior prevalência na população negra, citadas pelas fontes ouvidas pelo O POVO, são a anemia falciforme e a hipertensão arterial. Enquanto na branca são apontadas a fibrose cística e a hemocromatose hereditária (HH).
Dados revelam o cenário epidemiológico das enfermidades. O Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde, publicado em 2023, estima que há entre 60 mil e 100 mil pessoas com anemia falciforme no País. O Ministério aponta que, dos 55,5% da população negra no Brasil, 8% é afetada pela doença.
No caso de hipertensão arterial, números mais recentes da pasta federal mostram que, em 2021, 26,3% da população tinham a doença. O Registro Brasileiro de Fibrose Cística (Rebrafc), de 2019, contabiliza cerca de três mil pessoas com a condição. No Brasil, não há estudos e dados amplos de prevalência da hemocromatose hereditária.
De acordo com a coordenadora do Laboratório de Genética Médica (Lagem) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Denise Fernandes Carvalho, com a herança genética podem vir mutações genéticas, ou seja, alterações nos genes. No entanto, carregar uma mutação não significa, necessariamente, que uma pessoa terá uma doença genética, mas pode aumentar o risco de desenvolvê-la.
“As doenças genéticas variam conforme a mutação específica, podem afetar qualquer célula, resultando em sintomas diversos, como malformações, distúrbios metabólicos, déficits cognitivos, suscetibilidade a infecções, dentre outras manifestações. Podem existir vários fatores de risco para o desenvolvimento de doenças genéticas, não apenas a herança dos genes”, afirma Denise.
Na hipertensão arterial, uma das teorias é a hipótese da rota do sal. “Existem relatos que na época da escravidão, quando os negros vinham da África nos navios negreiros, para sobreviver à desidratação, eles bebiam água do mar. Os que tinham capacidade de reter sal, tinham capacidade de sobreviver. Essa 'genética' tornou a população negra com maior prevalência à doença”, comenta a coordenadora do Lagem.
Segundo a médica e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBFMC), Denize Ornelas, a hipertensão entre as pessoas negras não está ligada apenas a uma questão genética, teoricamente interligada também pela teoria da rota do sal.
“É um somatório de determinantes sociais de saúde e também características genéticas que vão favorecer que essa população, que é mais pobre, que tem menores níveis nutricionais, que tem menos acesso à serviços de saúde, que a doença apareça mais e tenha mais complicações. A gente não tem só as pessoas negras que têm retenção de sal”, afirma.
Conforme a especialista, pessoas negras podem ter vários tipos de mecanismos que levam à hipertensão, e isso não fica restrito às características genéticas. “A manutenção dos genes, que poderia possivelmente estar ligada à teoria da retenção do sal, só se mantém se as mesmas pessoas de genes continuarem casando entre si", aponta. Outros mecanismos são as complicações durante uma gravidez ou na primeira infância.
"Se um bebê tiver uma restrição de crescimento uterino pela desnutrição materna ou pela exposição da mãe em algum contaminante ambiental, ele vai nascer com maior propensão a hipertensão. Crianças que não são amamentadas nos primeiros anos de vida, elas têm mais chance de na vida adulta ter hipertensão”, exemplifica Denize sobre os fatores ambientais que podem levar à predisposção da doença no público.
De pais para filhos: qual o peso da herança genética
Prevalente da herança genética, a anemia falciforme é uma doença genética hereditária, ou seja, passa dos pais para os filhos. A doença teve origem no continente africano e chegou ao Brasil com a escravização. A enfermidade tem maior prevalência na população negra em virtude da sua origem, mas, hoje, afeta qualquer população. "Algumas condições tiveram herança genética, mas, dentro da realidade da população brasileira, a herança genética já foi diluída", pontua a coordenadora do SBFMC, Denize Ornelas.
No caso de doenças de pele, também não se deve utilizar a raça como condição para predisposição genética. A quantidade de melanina é responsável por dar pigmentação à pele, mas produção descontrolada dela pode resultar no surgimento de doenças como vitiligo ou câncer de pele, sem levar em consideração a raça. "Ter ou não melanina na pele não liga ou desliga nenhum gene de outras doenças que não sejam relacionadas à própria melanina. Posso ter vitiligo sendo uma pessoa negra ou branca", destaca a profissional.
A especialista em Genética Médica pela Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM), Ellaine Carvalho, destaca que a fibrose cística afeta mais essa população branca e cita a teoria histórica e de herança genética para a maior predisposição. "Uma enfermidade hereditária, que surgiu no Brasil durante a colonização com a vinda de europeus", informa.
A hemocromatose hereditária (HH) também tem explicações genéticas e a sua predisposição está relacionada à herança dos genes. A geneticista Denise Fernandes explica que a doença consiste em uma alteração genética que faz com que o organismo absorva o ferro em quantidades maiores ou não faça sua eliminação adequada. "Ela é de herança genética da população branca europeia", afirma a médica.
Tanto a fibrose cística quanto a hemocromatose hereditária incidem, principalmente, pela presença da herança genética, mas podem afetar outras populações pela diversidade genética atual. A Organização Mundial da Saúde classifica as doenças mais prevalentes em uma determinada população étnico-racial em quatro fatores: doenças que são geneticamente determinadas; condições que possivelmente têm determinação com a relação genética; as que estão relacionadas aos piores indíces socio-culturais e aquelas que são multfifatoriais.
Doenças étnicos-raciais e a miscigenação dos genes
O cenário da existência de doenças apenas de determinadas populações, seja ela negra ou branca, vem sendo extinto diante da diversidade de genes que existem na população atualmente. A causa está relacionada à miscigenação dos genes procedentes das relações entre pessoas negras, pretas, pardas, brancas, amarelas e indígenas. A condição possibilita a desmistificação do termo "doenças étnicos-raciais" e, consequentemente, o combate ao racismo na saúde e demais discriminações.
Hoje, existe uma predominância de estudos apontando que pessoas de diferentes raças podem ser afetadas por qualquer enfermidade. "Quanto mais você mistura as raças, esses genes vão se modificando. Vai diminuindo essa história de doença de branco e de negro", diz a coordenadora do Lagem. Com herança genética de negros, brancos e indígenas, a supervisora escolar Adriana Lucas Lima, 52, autodeclarada branca, foi diagnosticada com hipertensão arterial aos 45 anos. Desde então ela convive com a doença. "Sinto dores de cabeça, uma dor que fatiga e falta de paciência", relata.
Para diminuir os impactos e agravamento da doença, a supervisora adotou novos hábitos. "Tive um pique de pressão, ela chegou a 15,9. O meu normal é 11. Diminuí o sal, mudei a alimentação e comecei a fazer atividades físicas. Com o susto, comecei a mudar e ter essa consciência", afirma Adriana.
Já a analista de marketing Camilla Guedes, 23, autodeclarada negra, foi diagnosticada com anemia falciforme aos seis meses de idade. Filha de pai negro e mãe branca, Camilla conta que a predisposição à doença era conhecida antes de ela nascer, após seu pai saber que carregava a mutação genética para prevalência da condição. Na época, sua mãe já estava grávida dela. Devido ao mito de que a doença não poderia atingir a população branca, a mãe da analista não se preocupou em buscar um diagnóstico durante a gestação.
O confirmação da condição em Camilla veio após a primeira crise da doença, aos seis meses de vida. Na época, ainda não se realizava o Teste do Pezinho, hoje principal meio para detectar a condição da doença. "Meu corpo ficou todo inchado, principalmente o baço. Então, foi confirmada a anemia falciforme. Também foi diagnosticado que a minha mãe tinha traço para a doença", relata.
Para Camilla, o histórico dela alerta sobre uma série de discriminações que precisam ser combatidas, principalmente em relação à prevalência na população negra. Ela ressalta que a falta de informação na saúde pode agravar os quadros e levar a um diagnóstico tardio. "A gente tem uma questão de urgência muito grande. Quando temos crises, o atendimento precisa ser muito rápido. Se você pegar o público de forma geral que tem anemia falciforme, é uma população que acaba sendo negligenciada. Apesar do SUS [Sistema Único de Saúde] ser bastante importante, ele ainda é deficiente em muitos aspectos.".
Diagnóstico, sintomas e tratamentos
Anemia Falciforme
O que é: mutação no gene que produz a hemoglobina, resultando em glóbulos vermelhos do sangue (hemácias) em formato de foice ou meia lua, quando deveriam ser redondos. Nesse formato, os glóbulos vermelhos causam má circulação em quase todo o corpo.
Sintomas: crises de dor, icterícia, anemia, infecções, síndrome mão-pé, crise de sequestração esplênica, acidente vascular encefálico, priapismo, síndrome torácica aguda, crise aplástica, ulcerações, osteonecrose, complicações renais e oculares, dentre outros sintomas, incluindo complicações gestacionais e infecções tardias relacionadas à sobrecarga de ferro secundária às transfusões.
Diagnóstico: principalmente, pelo Teste do Pezinho, no Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN).
Tratamento: uso de medicamentos e em alguns casos pode ser necessária a transfusão sanguínea.
Hipertensão Arterial
O que é: ocorre quando a medida da pressão se mantém frequentemente acima de 140 por 90 mmHg (milímetros de mercúrio). Ataca os vasos sanguíneos, o coração, o cérebro, os olhos e pode causar paralisação dos rins.
Sintomas: dores no peito, dor de cabeça, tonturas, zumbido no ouvido, fraqueza, visão embaçada e sangramento nasal.
Diagnóstico: medição da pressão, inicialmente com um médico, e depois regularmente.
Tratamento: sem cura, pode ser controlada. Somente o médico poderá determinar o melhor método para cada paciente. Além dos medicamentos disponíveis atualmente, é imprescindível adotar um estilo de vida saudável por meio da mudança de hábitos alimentares e da prática de atividade física regular.
Fibrose Cística
O que é: o gene defeituoso e a proteína produzida por ele fazem com que o corpo produza muco de 30 a 60 vezes mais espesso que o usual. Afeta principalmente os pulmões, os pâncreas e o sistema digestivo por meio do acúmulo de bactéria e germes nas vias respiratórias.
Sintomas: são diferentes para cada pessoa e estão ligados ao que a secreção mais espessa causa no organismo. Quando ela fica acumulada nos pulmões, pode gerar tosse crônica, pneumonias de repetição, infecções e inflamações. Quando expelida, a secreção pode ter aspecto de “chiclete”, muito mais espessa que o normal.
Diagnóstico: pelo Teste do Pezinho e por meio de exames genéticos.
Tratamento: não tem cura, mas se diagnosticada precocemente pode ser tratada e isso diminui bastante os efeitos sobre o organismo. Os exercícios físicos devem fazer parte do tratamento, de acordo com as possibilidades do paciente.
Hemocromatose Hereditária (HH)
O que é: doença genética caracterizada pelo acúmulo excessivo de ferro (Fe) e que resulta em lesão tecidual.
Sintomas: distúrbios hepáticos, cardiomiopatia, diabetes, disfunção erétil e artropatia.
Diagnóstico: exame de sangue, que mede os níveis de ferritina e saturação de ferro. A doença pode ser confirmada também por um exame genético.
Tratamento: sangrias terapêuticas seriadas.
Fonte: Ministério da Saúde; Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, 2023, do Ministério da Saúde; Hospital Albert Einstein e Associação Brasileira de Doenças Raras (ABDR).