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"Mães atípicas"?
Ciência e Saúde

"Mães atípicas"?

O retrocesso no Direito das mulheres no projeto de criminalização do aborto nos casos amparados na legislação dos anos 1940
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Mônica Portugal, psicanalista, autora dos livros
Foto: Arquivo pessoal Mônica Portugal, psicanalista, autora dos livros "A Formação do Analista, um sintoma da psicanálise, e "Feminino, codinome resistência", autora de livros infantis

O Projeto de Lei - PL 1.179, aprovado pela Câmara dos Deputados em 25 de agosto de 2024, em tramitação no Senado, institui a semana da "Mãe atípica", uma "mãe com filhos com doenças raras ou deficiência física ou intelectual". Numa palavra, o espaço representativo da sociedade está criando uma nova categoria de mãe.

Breve pesquisa na grande rede é suficiente para alcançar o sentido ligado à construção do conceito "mãe atípica", pois, muito abrangente.

A mãe que enfrenta preconceitos em sua forma de maternidade é contemplada nesse rol, são mães consideradas "incapazes ou inadequadas", contrárias à norma da tradição; ou podem ser mães com dificuldades financeiras, ou aquelas na condição de imigrantes, ou ainda, mães vítimas de violência, enfim, mães cujos filhos precisem de atenção especial por suas condições no enfrentamento de doenças física ou intelectual, ou acometidos por doenças raras, conforme previsão no PL 1.179, aprovado na casa legislativa.

O que significa apartarmos, seccionarmos a condição de mãe por sua "atipicidade"? O que significa criarmos uma semana de atenção às mães que vivem sérias dificuldades relacionadas aos necessários e urgentes cuidados que seus filhos precisam para viver, para sonhar um futuro? Afinal, é possível afirmar que, se uma sociedade almeja um futuro melhor, a atenção às crianças passa a ser um imperativo.

Nesse caso, poderíamos pensar que se sustentarmos o conceito de mãe atípica para um segmento específico, conforme Projeto de Lei em tramitação no Senado, e conforme jargão de uso difuso entre os chamados operadores do Direito, estamos, de certa forma, chamando atenção para um problema grave, o qual precisa da presença do Estado e da sociedade organizada para criar soluções e tornar melhor a vida das pessoas envolvidas.

Todavia, também poderíamos raciocinar que com a difusão desse conceito de mãe atípica, a tendência poderia ser o esvaziamento da condição ou a importância da presença da função da mãe, na sociedade com um todo, o que seria uma hipótese de brutal violência, para toda e qualquer pessoa que exerce essa função.

Isso seria esvaziar a luta que interessa toda a sociedade, porquanto entendemos que, se vislumbramos um futuro com melhor condições de vida para todos, a luta por direitos que cada mãe deve possuir para oferecer as condições para o desenvolvimento, para a formação de suas filhas e filhos, precisa ser constante.

Podemos interrogar em qual modalidade estaria uma mãe, arrimo de família, ou seja, única fonte de renda de sua família - segmento populacional que já alcança mais da metade dos lares brasileiros, conforme última estatística do IBGE - , à qual, entre trabalho e deslocamento, gasta entre 10 a 14 horas do dia, deixando filhos com parentes ou vizinhos, sem a mínima condição de lhes dar a assistência diária, ou seja, sem acompanhamento do desenvolvimento de suas crianças, ela seria enquadrada entre uma mãe típica ou atípica?

Afinal, em tese, esta não seria uma modalidade de maternidade adequada à tradição, pois, quem exerce a função de mãe, precisaria ter tempo e as condições para prestar os cuidados e acompanhar o desenvolvimento de seus filhos.

A realidade é bem outra: é preciso descortinar suas contradições, para isso precisamos refletir por que estamos caminhando para separar uma determinada situação enfrentada por mães, com filhos que necessitam de cuidados especiais, de outras mães que lutam pela sobrevivência e não encontram apoio suficiente das instituições do Estado, nos diversos segmentos, para cuidar de seus filhos, ou mães, mesmo com as condições materiais, que também sofrem com formas de segregação em relação a concepções diferentes de como educar seus filhos?

Poderíamos nos interrogar sobre a razão pela qual determinadas campanhas políticas estão usando a situação de mães com filhos diagnosticados no espectro autista, por exemplo, ou com doenças raras, ou com qualquer tipo de situação que aponte necessidades especiais no cuidar, como se fossem "mãezinhas atípicas"?

Sendo que algumas dessas campanhas deixam de lado a luta por Direitos trabalhistas e previdenciários de mães trabalhadoras, e também deixam de lado a luta por creches, escolas e o respectivo transporte e alimentação adequados, assim como o transporte público, que atinge a todos que precisam, inclusive as mães, também "esquecem" de defender o Direito de moradias, com acesso ao lazer e acesso a diversas formas de arte; afinal, o contato com o lúdico e o belo não seria importante para a formação de nossas crianças?

Quando tais propostas chegam às respectivas casas legislativas, conforme atribuição de cada esfera institucional, a resposta é sempre negativa em relação a esses Direitos, na sua manutenção e/ou ampliação.

Onde estão os defensores desse projeto de divisão de mães por categorias, quando não defendem a tributação dos super ricos, quando não defendem a eliminação de agrotóxicos que envenenam as mesas de todas as famílias com suas mães e crianças? Quando não defendem o Estado laico, onde todos teriam acesso à saúde, educação, independente de crença ou não crença religiosa?

Ademais, há retrocessos em determinados Direitos já conquistados que desnudam a contradição presente na defesa da divisão entre as mães por categorias, um exemplo extremo: uma mãe considerada atípica é violentada, estuprada, e desse ato de extrema violência contra uma mulher, também mãe, ela não teria direito de praticar o aborto, caso prevaleça o retrocesso em curso no Congresso Nacional, diga-se, inconstitucional, em relação ao que já fora um Direito das mulheres, desde os anos 1940. Essa "mãezinha atípica" não teria suporte legal para o enfrentamento desse ato de extrema violência.

Concluo, dizendo que o uso de tais aparatos na linguagem, presente na construção "mãezinha atípica", reflete a impregnação da violência nos dois termos, pois o diminutivo - com exceção da forma carinhosa usada em algumas comunidades no Brasil, sobretudo em alguns estados do nordeste -, pode remeter a uma mãe vítima, hipossuficiente, uma mãe não-sujeito na escolha de seu futuro e do futuro de seus filhos, enquanto o termo "atípica", afasta a condição inerente ao "ser mãe", ao dividir uma parcela de mães, como se fosse uma categoria, distante portanto do alcance da condição mãe, simplesmente mãe, com tudo o que representa para cada ser humano!

Conscientização ao transtorno do espectro autista | Saúde do Povo 13/4/24

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