Diferente de um transtorno de saúde mental como ansiedade ou depressão, sabe-se que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição que se origina de questões ligadas ao neurodesenvolvimento. Porém, no passado, essas duas (condição mental e condição neurológica) eram consideradas uma só e tinham um tratamento semelhante: o isolamento em manicômios — inclusive de jovens e crianças.
Foram várias frentes de atuação (desde luta antimanicomial até criação de redes de atenção psicossocial) para se chegar ao que existe atualmente — uma realidade que, embora distante do ideal, se mostra mais inclusiva à neurodiversidade.
Após mais de duas décadas da
A terapeuta ocupacional Amanda Fernandes, integrante da Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (Rede Pq SMCA), explica que a maior divulgação do autismo nas redes tem contribuído para maior popularização do diagnóstico, mas alerta que há muitos sites e grupos que criam e divulgam testes para esse fim, o que, na avaliação da pesquisadora, “é um exemplo de um setor que também tende a fazer parte de um mercado que tem se constituído em torno do diagnóstico de autismo”.
O mercado que cita Fernandes, que também é professora do departamento de terapia ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), está detalhado na recente pesquisa “A indústria do autismo no contexto brasileiro atual: contribuição ao debate”, elaborada em parceria com o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — e envolve desde produtos e bens de consumo voltados à comunidade autista até o autismo como estratégia de marketing.
Enquanto o cenário mercadológico e setores econômicos privados se expandem com clínicas destinadas ao diagnóstico do autismo, instituições de formação de pais e profissionais e seguradoras ou planos de saúde, quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) lida com falta de atenção e escassez de financiamento.
A falta de direcionamento de orçamento específico para o cuidado de pessoas autistas em serviços já existentes é criticada pela terapeuta, pois fragiliza a atenção primária e os serviços especializados.
“Esse cenário nos diz sobre uma fragilidade dos serviços públicos existentes, sendo isso determinado pela incipiente montagem de estratégias de formação dos trabalhadores das políticas públicas, pelo subfinanciamento do SUS, sucateamento dos serviços e outros fatores correlatos. Isso é histórico, já bem contextualizado”, detalha.
Fernandes reconhece que, “infelizmente, o Estado e as políticas públicas demoraram muito em reconhecer a necessidade de cuidado para os autistas e suas famílias. Somente neste século atual foram iniciadas ações neste sentido, mas, além de tardias, foram interrompidas entre os anos de 2016 e 2022, tendo agora necessidade urgente de serem priorizadas e avançar”.
Sintomas de alerta para o autismo em bebês
A pesquisadora acredita que ainda há muitas lacunas a serem preenchidas “através do fortalecimento da atenção psicossocial à população a partir de uma lógica de cuidado territorial, comunitário, colaborativo, articulado em rede intersetorial”.
Isso só será possível, para Fernandes, “se houver investimento e financiamento do governo para fortalecer políticas públicas de saúde mental que não só estiveram estagnadas nos últimos anos como também sofreram inúmeros processos de desmonte”.
Mães, pais e responsáveis por crianças e adolescentes com algum tipo de neuroatipicidade que dependem do atendimento em saúde mental oferecido nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Fortaleza enfrentam uma triste realidade e, muitas vezes, não conseguem ser atendidos.
É o caso de Karla Jamile Bruno e do filho Bernardo, de 8 anos, que aguardam na fila de espera desde que a criança apresentou sinais que levaram a mãe desconfiar de TEA: “tive que recorrer ao particular, onde uma consulta pode chegar a até R$ 1 mil, dependendo do profissional. Já temos laudo, e a espera por essa consulta já tem quase 3 anos. Um total descaso com os autistas, que necessitam de terapias semanalmente. Infelizmente a realidade no SUS é essa”.
Já a empreendedora Nísia Maria é mãe de Murilo, 14, que, além de TEA, foi diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) por profissionais do Hospital Infantil Filantrópico Sopai depois de apresentar dificuldades motoras e de aprendizagem, além de crises de convulsão que foram atribuídas a um cisto no cérebro.
Depois de “sofrer uma série de humilhações”, conforme relata, para conseguir atendimento no posto de saúde do bairro João XXIII, a Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS) Cícera Carla, Nísia conta que saiu “triste, desanimada e decidida a registrar um boletim de ocorrência”. Além de consulta, ela buscava os medicamentos depakene (valproato de sódio) e risperidona para o filho.
“Quando cheguei em casa, mandei um áudio para o meu agente de saúde e ele me ajudou a marcar a consulta com o neuropediatra. Mas a gente fica muito triste com o jeito que a gente é maltratado nesses cantos. Passei por médicas que disseram que meu filho era malcriado, que não sabia se comportar. Na escola, uma vez me chamaram bem cedo dizendo que ele não ia ficar no colégio porque amanheceu criando confusão. Ameaçaram de expulsar ele. A gente passa por muita coisa”, narra.
Nísia diz que fez o pré-cadastro para Murilo ser acompanhado no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da Parquelândia e desde então já conta 6 meses na fila de espera: “E a minha vizinha, que também tem um filho autista, dormiu na fila e não conseguiu ficha. Foi em outro Caps, fez a triagem, está aguardando desde julho do ano passado. O que querem de mais urgência é a consulta com o neuropediatra, mas se a gente não pagar a gente não consegue”.
Numa clínica popular no Centro de Fortaleza, a empreendedora indica que encontrou consultas por R$ 230. “Mas já teve neuros que eu liguei de R$ 550. E essa de R$ 230, que é a que eu vou tentar marcar, só tem vaga para julho”, aponta.
Enquanto aguarda a ligação do agente de saúde, Nísia mantém suas idas ao posto para conferir em que pé está a lista de espera e torce para que as coisas melhorem.
“As pessoas veem essas crianças como pessoas loucas, que não podem ter um trabalho, não podem ter uma vida social, não podem sair, sempre tem um obstáculo. Muitas mães se oprimem, se negam a procurar ajuda, porque acha que o filho não tem nenhuma questão, sendo que a criança está precisando de ajuda”, expressa.
“Se a gente não fala, se a gente fica calada, sempre vai ter alguém que vai querer passar por cima e não vai dar importância nenhuma. Quanto mais você fala, quanto mais você luta, mais eu acho que a vitória vem”, espera.
Quem atesta esse panorama é a pesquisadora Carla Moura, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-CE). De acordo com dados fornecidos pela Célula de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e analisados pelo Cedeca, o tempo médio de espera até o primeiro atendimento nos Caps infantis é de 6 meses para consulta com um médico psiquiatra.
“Considerando a importância de um acompanhamento continuado e de qualidade, principalmente para crianças e adolescentes com demandas em saúde mental, a falta de atendimento e cuidado adequado em tempo hábil podem prejudicar o desenvolvimento das mesmas, podendo gerar consequências permanentes em suas vidas”, pondera a pesquisadora.
Média de atendimentos de crianças e adolescentes nos Capsi e demanda em Fortaleza (2023)
Moura continua: “Mesmo para quem consegue atendimento, devido à alta demanda dos Capsi, há uma grande sobrecarga de pacientes por profissionais e uma demora para o retorno, o que pode dificultar um acompanhamento sistemático e qualitativo em saúde mental, sendo os atendimentos limitados, muitas vezes à prescrição de medicações”.
Apesar da inauguração, em agosto de 2023, do 3º Capsi na Cidade, a Capital apresenta um déficit em relação a estes equipamentos: a portaria Nº 3.088, de dezembro de 2011, estabelece que os Capsi devem estar presentes em regiões com população acima de 150 mil habitantes.
De acordo com essa normativa, e já que Fortaleza é um município com população de quase 2,5 milhões de habitantes, deveria haver 16 Capsi. Há, portanto, um déficit de 13 Capsi.
Além da grande quantidade de atendimentos e do número significativo de crianças e adolescentes na fila de espera, a SMS informou ao Cedeca que houve o desligamento de alguns profissionais, por isso a situação foi agravada com sobrecarga de atendimento por especialistas.
Essas situações dificultam a garantia do acompanhamento sistemático em saúde mental nos Capsi baseado em uma perspectiva acolhedora, coletiva, comunitária e articulada com outras redes — o que limita, muitas vezes, à prescrição de medicações.
Em relação ao orçamento público destinado aos equipamentos de saúde mental, atualmente há duas ações específicas: 1053 - Ampliação, reforma e manutenção da rede psicossocial; e 2514 - Gestão e manutenção da rede de atenção psicossocial - Raps. Para a primeira ação, em 2023, foi previsto um orçamento de R$ 565 mil para a reforma de 2 CAPS e a implantação de mais um.
Entretanto, esta ação não é executada desde 2019, mesmo com valores previstos em todas as Leis Orçamentárias (LOAs).
Para 2024, a referida ação apresentou uma previsão na Lei Orçamentária Anual (LOA) de R$ 4,5 milhões, no entanto, de acordo com o Portal da Transparência de Fortaleza, esse valor já sofreu uma redução de R$ 3,0 milhões (65%), o que demonstra que essa ação também não está sendo priorizada para execução em 2024.
A segunda ação, que é a específica de manutenção dos CAPS, teve uma execução de R$ 27,9 milhões, de uma previsão de R$ 30,2 milhões em 2023.
A pesquisadora ainda critica que o município apresenta “um grande problema de transparência de dados públicos”.
Orçamento público da rede psicossocial em Fortaleza
“Mesmo com acesso ao acompanhamento da execução orçamentária de programas e ações através do Portal da Transparência, as informações disponíveis ainda são incipientes. Em muitos casos, as ações do orçamento público são bem genéricas”, diz.
No caso dos Caps, por exemplo, as ações não especificam quais equipamentos serão implantados (se Caps infantil, AD ou Geral) e, até mesmo, onde serão implantados.
“Em outros casos, há ações orçamentárias tão genéricas que abarcam vários equipamentos, e não há um detalhamento para qual equipamento e quanto de recurso está sendo destinado”, assevera.
Para além das questões orçamentárias, há uma dificuldade também de acesso à informação sobre o funcionamento das políticas públicas, de acordo com Moura.
“Há uma imensa demora por parte da prefeitura de Fortaleza em encaminhar informações solicitadas, quando é um direito de todo cidadão solicitar e receber informações públicas e é um dever do Poder Público de fornecê-las, de acordo com a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011). Muitas vezes, precisamos fazer os pedidos de informação reiteradamente, para receber meses depois, extrapolando os prazos estabelecidos em lei”, relata.
Moura reitera que, para o Cedeca Ceará, “o acesso aos dados referentes às políticas públicas é fundamental para realizar o monitoramento das mesmas e incidir para que os direitos de crianças e adolescentes sejam garantidos e efetivados com absoluta prioridade, como define a CF 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”.
Em resposta a esta reportagem, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou, em nota, que pacientes com suspeita de espectro autista podem procurar uma das 119 Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS) para atendimento e encaminhamento para acolhimento na Rede Especializada e/ou Contratualizada e realização de exames, de acordo com a indicação dos profissionais da unidade.
“Os postos de saúde exercem papel fundamental, identificando precocemente os sinais de alerta para transtornos globais de desenvolvimento durante as consultas de puericultura, como também nos programas instituídos pelo município como: Cresça com Seu Filho/Criança Feliz e os 20 Núcleos de Desenvolvimento Infantil (NDI) distribuídos nas Regionais da cidade”, afirma a pasta.
Conforme destaca a SMS, “os NDIs promovem a detecção precoce de possíveis déficits cognitivos e possibilitam que as crianças de zero a três anos e seus familiares recebam acompanhamento e assistência de forma integral”.
Em 2023, foram realizados cerca de 25 mil atendimentos, por meio de equipes multidisciplinares, compostas por fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e psicólogo, além de outras categorias como educador físico, nutricionista e assistente social. Até março de 2024, já foram realizados 4 mil atendimentos neste serviço.
Na rede especializada e/ou contratualizada, em 2023, foram realizados 412.580 atendimentos, incluindo consultas, exames e tratamento em crianças e adolescentes de até 17 anos incompletos, onde as que possuem Transtorno de Espectro Autista (TEA) estão inseridas. Já em 2024, até março, foram 102.580 atendimentos realizados. No total, 12 estabelecimentos contratualizados realizam esses atendimentos, além de três Policlínicas municipais.
A SMS esclarece que os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi) são referência para TEA quando há alterações de comportamentos, que incluem: bipolaridade, alterações de personalidade, ansiedade excessiva, dentre outros.
“Este equipamento é destinado para crianças e adolescentes de até 17 anos, 11 meses e 29 dias, que apresentam prioritariamente intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas”, informa.
De janeiro a março deste ano, 32.217 crianças foram atendidas nos três Centros de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi), localizados nas Regionais de Saúde III, V e VI. Atualmente, 17.218 estão com prontuários ativos nos equipamentos.
Os usuários são assistidos por uma equipe multiprofissional composta por médico psiquiatra, psicólogos, enfermeiros, assistente social e terapeuta ocupacional. Os três equipamentos contam com 80 profissionais de nível superior, que acolhem as demandas da população, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.
O serviço é porta aberta e pode ser acessado diretamente ou por meio de encaminhamento proveniente de outros serviços da Rede de Saúde. Na unidade, de acordo com a pasta, “todos os usuários são acolhidos e passam por uma triagem inicial, no qual é definido a sua linha de cuidado, que pode contar com atendimento clínico e psiquiátrico, práticas interativas, atendimentos individuais, redução de danos, atendimento em grupos terapêuticos, oficinas, atendimentos à família, entre outros”.
No que tange aos investimentos, a SMS reforça “que vem trabalhando no fortalecimento da Rede e já entregou um novo Centros de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi) no bairro Granja Portugal e requalificou as sedes dos bairros Rodolfo Teófilo e Amadeu Furtado. Para ampliar os atendimentos à população, a Prefeitura também já convocou 121 novos profissionais para atuação nos equipamentos”.
Esta é a segunda parte de uma reportagem seriada sobre o autismo no Brasil. Confira a primeira parte aqui.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Reportagem em dois episódios reflete sobre o crescimento dos diagnósticos de TEA entre crianças e adolescentes, além do impacto das redes sociais nos casos de autodiagnóstico. A série de reportagens também mostra a realidade da saúde pública no atendimento de TEA