Quando os gêmeos Ângelo e Augusto vieram ao mundo, a discussão sobre o autismo ainda engatinhava no Brasil. Àquela altura, crianças que apresentassem qualquer desvio do comportamento tido como “normal” para a idade eram consideradas loucas e recebiam o tratamento dado à loucura naquela época: a internação em hospitais psiquiátricos.
O que pode parecer um passado muito distante foi há menos de meio século, em 2 de abril de 1981 — data que, anos depois, coincidentemente, viria a ser conhecida também como o Dia Mundial da Conscientização do Autismo.
Hoje os dois têm 43 anos e são famosos pelos vídeos compartilhados nas redes sociais por dona Luci Maia (@lucigmaia), 76, uma pedagoga natalense que passou a ser uma das mães mais queridas do País ao mostrar que, com trabalho e conscientização, as peças se encaixam e crianças com
Em entrevista ao O POVO+, ela conta detalhes da história e o que percebe que mudou na forma como a sociedade encara o autismo ao longo desses mais de 40 anos em que assistiu aos filhos crescerem.
Dona Luci já era mãe de três filhos (Alexandre, Adriana e Angélica) quando os gêmeos chegaram, e foi essa experiência que lhe ajudou a identificar os primeiros sinais de que havia algo de diferente no desenvolvimento dos dois: “faltava interação, olhos nos olhos, o balbucio das primeiras palavras”.
“Questionava o pediatra e ele sempre dizia que as crianças estavam bem. Aos nove meses, fui a um neuropsiquiatra e ele falou que eu era quem estava precisando de um tratamento. Saí chorando do consultório e, junto com meu esposo, passamos a procurar um centro maior à procura de um diagnóstico. Saímos de Natal e fomos a Fortaleza e Recife, onde fazíamos todos os exames e tínhamos o mesmo resultado: negativo para qualquer tipo de deficiência”, recorda.
Sem ter a quem recorrer, ela própria estimulava-os em todas as áreas do desenvolvimento e os incluía em todas as atividades dos outros três filhos para qualquer lugar que fossem a fim de trabalhar, principalmente, a fala deles. Como resultado, os dois disseram as primeiras palavras com 2 anos e 7 meses.
“Fomos a Campinas (SP) e, na Unicamp, fizemos todos os exames que se podia fazer na época no Brasil. Mesmo assim, apenas concluíram que eles tinham um atraso no desenvolvimento. Até aquele momento, ainda não havia sido mencionada a palavra autismo, mas hoje percebo que apresentavam todas as características de autismo severo com hiperatividade, fazendo com que eu ficasse em constante alerta quando saía com eles”, narra.
Quando Ângelo e Augusto fizeram 4 anos, a família decidiu morar em Fortaleza — e foi essa a primeira vez em que falaram sobre sinais de autismo para dona Luci: “Daí em diante procurei livros a respeito do assunto e, junto com as terapias, intensifiquei atividades para a funcionalidade de uma fala que, até então, apenas repetia o que se falava. A chamada
“Os anos foram passando e o autismo foi sendo mais conhecido e divulgado através dos congressos e da literatura. Intensificou-se a inclusão escolar e atualmente muito se fala em inclusão social. Mas ainda falta muito para que a sociedade os aceite com naturalidade, observadas suas características mais específicas. Porque inclusão não quer dizer aceitação. E como as especificidades do autismo ainda assustam a muita gente, acho que vai demorar para que a sociedade os aceite, plenamente, como são”, relata.
Nas palavras da professora, os filhos “parecem ter vindo de um mundo fantástico onde as pessoas vivem em harmonia. Onde não há violência, maldade, onde a inocência prevalece e não há divisão de classe social. Onde todos são iguais”.
“Ao longo desses 43 anos, enfrentei muitas situações adversas com relação à aceitação de Ângelo e Augusto, numa sociedade que os olhava atravessado, que se retiravam de uma mesa que estava vizinho à nossa num restaurante porque não gostavam do jeito que meus filhos se comportavam. Uma sociedade onde diziam que lugar de doido era em casa e que chegaram até a agredir fisicamente Augusto pelo jeito carinhoso que ele costuma se dirigir às pessoas”, expõe.
Segundo dona Luci, a sociedade “não compreendia o hábito que eles tinham e têm até hoje de abordar com palavras de carinho e sorriso nos lábios, a qualquer pessoa, em qualquer ambiente. E quando esses ambientes eram estabelecimentos comerciais, algumas vezes eram chamados a atenção dizendo que incomodavam os clientes”.
Mesmo com todo esse dissabor, conforme descreve ela, desistir nunca foi uma opção: “Desde muito pequenos meus cinco filhos nos acompanhavam em qualquer lugar ou ambiente social que frequentássemos. Sempre insisti e persisti naquilo que eu considerava de grande importância, que era a socialização deles. Na minha concepção, o ser humano, antes de qualquer coisa, é um ser social e tem que conviver em sociedade. Esta sempre foi a minha maior batalha”.
Por não encontrar colégios em Natal que aceitassem os filhos autistas quando a família regressou, dona Luci fundou, em 1990, o Jardim Escola Dois Amores: “Não sei se por um sexto sentido de mãe ou pela minha prática pedagógica, mas sempre considerei a excepcional importância da convivência em sociedade, embora a palavra inclusão naquela época ainda não fosse aplicada nessas situações”.
O cenário, como a pedagoga atesta, sofreu mudanças: a impressão é de que, nos últimos anos, principalmente nos que sucederam a pandemia de Covid-19, os diagnósticos de TEA no Brasil e no mundo
Especialistas argumentam, porém, que o que aumentou não foi a quantidade de casos, mas sim o volume de informações que levam ao diagnóstico — inclusive tardio, em pessoas adultas —, bastante impulsionado pela presença online que o acesso à internet passou a ter nesse mesmo período.
Assim como dona Luci, aliás, outras mães atípicas têm usado esse ambiente virtual como um espaço para troca de experiências que ajuda a desmistificar estigmas e contribui com a educação inclusiva de pessoas neurodivergentes.
É o caso da comerciante de moda carioca Dalva Tabachi (@dalvatabachi), 76, mãe do fenômeno Ricardo, que conquistou milhões de seguidores na web com seu senso de humor e carisma. Lá atrás, no entanto, ela enfrentou desafios que a levaram a escrever os livros “Mãe, me ensina a conversar” e “Mãe, eu tenho direito!: Convivendo com o autista adulto”, nos quais retrata o caminho percorrido junto com o filho.
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Em comum, Luci e Dalva têm o fato de serem idosas que se utilizam de redes sociais como Instagram e TikTok para registrar o cotidiano dos filhos autistas, já adultos, e compartilhar desde os desafios diários até características como inteligência e independência deles — cuja neuroatipicidade foi descoberta num período em que quase não se falava sobre autismo no País.
O que são registros muitas vezes corriqueiros têm atingido um público diverso e cada vez maior, mas inspirado e provocado mudanças especialmente na relação de muitas mães atípicas com seus filhos.
Prova disso são os inúmeros comentários dessas mulheres sobre como têm aprendido (ou reaprendido) a lidar com certos comportamentos, questionamentos ou crises, ou como passaram a se sentir aliviadas ao perceber que é possível, sim, que suas crianças cresçam saudáveis se tiverem acompanhamento, carinho e respeito.
Hoje os questionamentos das mães atípicas brasileiras são outros, mas a finalidade é a mesma que dona Luci e Dalva tinham há décadas atrás: garantir o melhor, dentro das possibilidades, para que seus filhos possam seguir livres e felizes — inclusive na ausência delas.
Quais profissionais atendem essa especificidade? O que fazer se o plano de saúde negar um atendimento recomendado no consultório? Como encontrar um serviço de qualidade em um lugar perto de casa? De que forma lidar com a falta de respeito das pessoas?
Como reagir a expectativas que não correspondem ao desenvolvimento da criança? Como garantir um ambiente inclusivo e saudável? E por aí vai. São infinitas as questões que afligem mães, pais e responsáveis por crianças e adolescentes com TEA.
Por isso, uma rede de apoio, acolhimento e fontes seguras para tirar dúvidas sobre o acompanhamento adequado é necessária e tem se ampliado através de influenciadores na internet. Confira, a seguir, alguns desses perfis:
Conheça influenciadores que são mães e pais de autistas
A psicóloga Carolina Veras, que é pesquisadora em saúde mental, analisa a iniciativa dessas famílias como “muito interessantes por trazerem o cotidiano de forma leve e desmistificarem uma série de tabus e questões em cima dessa temática”, o que as mães Luci Maia e Dalva Tabachi fazem “de forma respeitosa e produzindo autonomia, porque em nenhum momento elas tratam os filhos de forma a apequená-los”.
Veras ressalta, contudo, que ambas fazem parte de um recorte distante das vulnerabilidades sociais que impactam no tratamento da maioria das crianças autistas no Brasil.
“Nós temos duas famílias brancas e ricas, num padrão de vida que permitiu um tratamento desde cedo. Apesar de não haver esse mesmo nível de informação na época delas, tentaram entender, tiveram acesso a fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, psicólogos. Elas são um exemplo do quanto é possível acolher e cuidar quando se tem disposição, afeto e condições financeiras para isso. Mas infelizmente essa não é a realidade da maior parte da população”, observa.
A falta de condições, a falta de acesso ou o acesso limitado aos serviços de saúde, de acordo com a psicóloga, faz com que o TEA “deixe de ser só um espectro e uma forma diferente de ver o mundo e passe a ser um transtorno de comportamento agressivo, autolesivo, com dificuldade de comunicação. Isso está relacionado a uma questão social grave que o Brasil enfrenta”.
“É encantador ver o nível de desenvolvimento dos meninos, faz a gente entender mais sobre o autismo quando ele não está na ótica da fome, do abuso familiar. Tanto que o que conquista nos vídeos deles, além do carisma, é perceber o quanto de afeto foi investido naquelas pessoas. Mas se fosse só questão de afeto, nós teríamos milhões de crianças muito bem cuidadas no Brasil. Não se trata disso apenas, porque nem só de afeto vive uma família brasileira”, constata.
Em meio a essa conjuntura, Veras enxerga avanços mas também lacunas que, segundo ela, “são maiores que os avanços, porque quando se olha para os progressos, percebe-se que são feitos de lacunas”.
“Os avanços podem ser representados pelas instituições que hoje recebem crianças no espectro para prestar cuidado, orientação e tratamento. E não falo em tratar autismo como se houvesse uma cura, porque a gente não está falando de uma doença, e sim de uma divergência a nível de neurodesenvolvimento que precisa de cuidados específicos para as comorbidades ou questões que podem advir dela”, destaca.
A psicóloga cita, além dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) infantis, que atualmente são três em Fortaleza, o Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (Nutep) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e algumas instituições como ONGs e iniciativas do terceiro setor a exemplo da Instituição Mão Amiga e da Fundação Casa da Esperança.
Na Capital, também oferecem acompanhamento multiprofissional para crianças e adolescentes com autismo o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), através do Núcleo de Atenção à Infância e Adolescência (Naia), e o Centro Inclusivo para Atendimento e Desenvolvimento Infantil (Ciadi), órgão da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece).
Locais de acolhimento ao TEA infantil em Fortaleza
A médica psiquiatra Denise Evangelista, que atua no HSM, acredita que muito se avançou no reconhecimento do autismo como “uma condição de relevância de saúde pública”, mas reconhece que “muito pouco em termos de saúde pública propriamente dita”.
“Ainda se tem muito a conquistar com a capacitação das escolas e a própria capacitação dos órgãos públicos para atender as pessoas com autismo. O atendimento vai muito além do consultório do profissional, e mesmo nesses casos existe uma demanda enorme que não está sendo contemplada. Preconiza-se para o TEA a intervenção precoce, mas as famílias não conseguem chegar ao profissional”, alerta.
Atualmente, na unidade, além do serviço de acolhimento à crianças e adolescentes autistas, há um ambulatório voltado a diagnósticos de pessoas com autismo na idade adulta, uma vez que, de acordo com a psiquiatra, “usualmente esses casos não conseguiram ter acesso a um diagnóstico adequado por, na maioria das vezes, apresentar sintomas mais sutis”.
“Ainda precisa-se avançar muito na linha de cuidado da pessoa com autismo, especialmente autistas que necessitam de maior suporte. Não existe política pública para essas crianças depois que elas atinjam a maioridade”, frisa.
Denise, que é especialista em psiquiatria na infância e adolescência, acrescenta que “há uma dificuldade enorme das famílias em conseguir acompanhamento especializado, e a situação fica mais grave quando se perde o cuidador primário (mãe, pai ou responsável), que é a ordem natural da vida”.
“Não existem políticas públicas voltadas para essas famílias no nosso País. Em outros países, existe o que se chama de moradia assistida, em que a pessoa recebe o nível de atenção individualizado para a sua necessidade. Existe uma iniciativa privada de três famílias que se juntaram e montaram uma moradia assistida em São Paulo e no Rio de Janeiro. Moradias assistidas são incluídas no contexto da sociedade, e não isoladas”, complementa.
O formato de vídeos curtos editados com legenda, trilha sonora, narração e o rosto das pessoas que estão por trás de @s tem guinado redes sociais como Instagram e TikTok para que tornem-se, cada vez mais, grandes plataformas de disseminação de informações sobre os mais diversos temas — de comportamento a economia, de tecnologia a política, de cultura a ciência.
A atmosfera intangível apressa quem deseja viralizar conteúdos, expandir o alcance de publicações e se tornar consumido, comentado e compartilhado dentro daquele universo virtual de pessoas e para além dele, já que muitas conseguem até monetizar sua imagem e trabalhar com isso. O que tem escapado a essa rapidez na transmissão de ideias, no entanto, é que existem discussões sérias e questões complexas que não podem ser resumidas a um vídeo de poucos segundos.
E, assim, ao mesmo tempo em que ajuda a espalhar conhecimento, a internet também tem sido palco para desinformação e banalização de assuntos importantes como o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).
Foi ao investigar esse cenário que pesquisadores do A.J. Drexel Autism Institute da Universidade Drexel, na Filadélfia (EUA), levantaram preocupações sobre a precisão das informações compartilhadas na plataforma mais popular do momento: o TikTok.
No estudo, publicado em 2023 no Journal of Autism and Development Disorders, os cientistas analisaram indicadores de engajamento como visualizações e curtidas em vídeos associados à hashtag “autism” e concluíram que a maioria do material produzido não está alinhado com o conhecimento clínico atual sobre autismo — ainda que postagens já possuam mais de 11 bilhões de views.
Dos 133 vídeos mais visualizados que forneciam conteúdo informativo sobre autismo (com maior alcance, curtidas e compartilhamentos), apenas 27% foram classificados como precisos, enquanto 41% eram imprecisos e 32% tinham generalizações excessivas.
Os números mostram, portanto, que a maior popularidade do autismo não traz apenas pontos positivos.
Para o psicólogo Lucas Pontes, que é autista e administra o perfil @lucas_atipico nas redes sociais, “a suposta conscientização através de conteúdos que geram identificação a partir de informações generalistas, assim como do sensacionalismo, precisa ser cada vez mais problematizada”.
“Conscientização se faz com conhecimento, ética e representatividade. Não deve ser roteirizada e motivada por um algoritmo que prioriza a superficialidade. O ponto aqui não é demonizar, dizer que o autismo ‘está na moda’ e nem generalizar qualquer crítica negativa, mas sim falar sobre um problema cada vez mais explícito e que, por muitas vezes, ocupa o espaço de uma conscientização assertiva”, coloca.
O trabalho aponta duas maneiras principais de a desinformação ser prejudicial: primeiro, ao fornecer informações erradas como alegar que um determinado produto pode “curar o autismo”; e, segundo, ao generalizar uma experiência individual para todo o espectro do autismo, o que não representa a diversidade de manifestações dentro da população autista.
Os pesquisadores enfatizam a importância de todos os envolvidos na comunidade do autismo conheçam a natureza não filtrada das informações apresentadas e, “dada a amplitude do conteúdo sobre autismo no TikTok, que os profissionais de saúde estejam cientes do tipo de conteúdo relacionado ao autismo que está sendo compartilhado”.
Conforme sinaliza o estudo, é fundamental não apenas combater a desinformação, mas também entender como o autismo e as abordagens atuais são percebidos pelos usuários da rede: “isso nos ajudaria a abordar as lacunas que levam as pessoas a buscarem respostas no TikTok em primeiro lugar”.
Livros citados nesta reportagem
Esta é a primeira parte de uma reportagem seriada sobre o autismo no Brasil. Confira a segunda parte aqui.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Reportagem em dois episódios reflete sobre o crescimento dos diagnósticos de TEA entre crianças e adolescentes, além do impacto das redes sociais nos casos de autodiagnóstico. A série de reportagens também mostra a realidade da saúde pública no atendimento de TEA