O transplante de coração, principal órgão do sistema cardiovascular, é realizado no Brasil desde 1968. Para além de diversos desafios logísticos e operacionais, como a escassez de órgãos, a desigualdade regional e as limitações logísticas, o cronômetro entre a retirada do órgão e seu novo receptor ainda segue como um obstáculo persistente.
O Brasil possui o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo, e conforme o Ministério da Saúde, entre 2022 e 2023, o transplante de coração teve um aumento de 16%. Já de 2012 a 2023, quase 4 mil pessoas passaram por esse procedimento, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
Mesmo com esses números relativamente altos, a doação de órgãos é um processo complexo, que envolve diferentes instituições e requer agilidade para ser bem-sucedido. Cada órgão tem um período máximo de permanência fora do corpo humano, chamado de tempo de isquemia. No coração, esse tempo é de somente 4 horas, o que torna esse procedimento ainda mais complexo.
Durante o XIX Congresso Brasileiro de Transplantes, realizado no Centro de Eventos do Ceará em outubro, foram apresentadas novas tecnologias, como o Organ Care System (OCS) da TransMedics, que chegam a alcançar até 12 horas de isquemia cardíaca.
“Nos Estados Unidos houve um aumento de 30% na taxa de sucesso de transplantes de coração. A tecnologia abrange outros órgãos como pulmão, fígado e futuramente os rins. Agora é analisar a viabilidade e quantas máquinas vão ser necessárias em cada estado e região”, explica o dr Luziélio Filho, cirurgião torácico e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica.
A tecnologia de perfusão ex-situ funciona essencialmente como uma unidade de terapia intensiva (UTI) em miniatura e portátil para órgãos de doadores. Diferente dos métodos tradicionais de transporte em gelo (que induzem um estado de dormência fria), ela mantém o órgão vivo e funcionando fora do corpo, imitando o ambiente fisiológico normal.
Após a remoção do órgão do doador, ele é rapidamente conectado ao sistema e (dentro da máquina), o órgão é continuamente perfundido com sangue oxigenado aquecido, nutrientes e eletrólitos, imitando o fluxo sanguíneo natural do corpo humano.
O sistema possui monitores que permitem à equipe médica avaliar a viabilidade do órgão em tempo real. É possível observar o coração batendo, os pulmões “respirando” ou o fígado funcionando (produzindo bile, por exemplo), ajudando a garantir que o órgão esteja saudável para o transplante.
A máquina portátil permite que o órgão seja transportado até o local do receptor enquanto permanece em um estado quase fisiológico, prolongando significativamente o tempo que o órgão pode ficar fora do corpo e expandindo as distâncias de transporte. Quando algum órgão não funciona adequadamente na máquina é devido à insuficiência do órgão.
“Durante o transporte, muitos órgãos não são acessados para saber se estão metabolizando corretamente, ocasionando muitas perdas. Com essa plataforma, houve um aumento no número de potenciais entre o tempo, a captação e o implante, além de analisar se o órgão é funcional. Tudo isso é baseado em muita pesquisa e muitos estudos”, destaca o dr Luziélio.
O cirurgião e líder do Programa de Transplantes de Coração no Hospital de Messejana, Juan Mejia, enxerga que, para além de todos os benefícios das novas tecnologias, existe um contraponto importante: o altíssimo custo e baixa disponibilidade, limitando sua difusão em larga escala.
“No contexto brasileiro, é imprescindível que sua implementação venha acompanhada de uma rede logística integrada e de uma cadeia de investimentos estruturada, capaz de garantir transporte eficiente e sustentabilidade financeira. Caso contrário, corre-se o risco de não alcançar o benefício máximo que a tecnologia oferece em outros países”, afirma.
As desigualdades entre centros transplantadores, o financiamento insuficiente e defasado, a falta de equipes multidisciplinares completas e a logística fragmentada configuram um cenário de grandes desafios.
Além disso, a ausência de um transporte sanitário específico para órgãos faz com que dependa de favores ou da disponibilidade de aeronaves da Força Aérea e aviação comercial — aumentando a isquemia dos órgãos, onde se vive em escassez de doadores, agravada por recusa familiar, barreiras culturais e desigualdades sociogeográficas.
Para Juan, o desafio está em convencer os gestores públicos de que tecnologia em saúde não é custo, mas investimento, no qual o argumento não deve ser apenas financeiro, mas de valor social e humano.
“Discutir investimento em novas tecnologias é também discutir sustentabilidade. É fundamental demonstrar que o uso dessas plataformas agrega valor — isto é, aumenta o número de transplantes, reduz tempo de internação em UTI e, portanto, gera economia ao sistema público”, destaca.
Ainda assim, o especialista ressalta haver uma percepção otimista: o Brasil tem diminuído rapidamente sua distância tecnológica. O país já é referência na América Latina em volume e qualidade técnica de transplantes, e com investimento direcionado pode se consolidar como referência mundial.
“A competência cirúrgica e científica brasileira já é reconhecida internacionalmente. O que falta não é talento, mas estrutura e inovação sustentável. Cada coração transplantado é um triunfo — mas também um lembrete do quanto ainda precisamos avançar, com a união entre ciência, gestão pública eficiente e competência social”, conclui.
O transplante cardíaco é considerado o tratamento padrão-ouro para a insuficiência cardíaca terminal. No entanto, sua longevidade — a sobrevida média global pós-transplante — tem se mantido estagnada.
Essa estagnação reflete um conjunto de limitações que ultrapassam a dimensão técnica da cirurgia — que permanece a mesma há cerca de 40 anos. Para o cirurgião cardiovascular, Dr. Fernando Figueira, o verdadeiro desafio do transplante não é mais o ato cirúrgico em si, mas a superação de limites biológicos, sistêmicos, operacionais e sociais.
Do ponto de vista biológico, o especialista explicou em uma das palestras durante o congresso que a rejeição crônica, as infecções e as neoplasias permanecem como causas relevantes de deterioração tardia. Mesmo com avanços tecnológicos e imunológicos, esses progressos ainda não se traduziram proporcionalmente em aumento de sobrevida.
“A principal causa de perda tardia de enxerto segue sendo a vasculopatia do enxerto, uma complicação comum após transplante de órgãos sólidos de evolução assintomática. Outros desafios, como pacientes sensibilizados, aumento de neoplasias sólidas pós-transplante e equilíbrio delicado entre risco infeccioso e risco oncológico seguem sendo dilemas permanentes”, afirma.
O cirurgião lembra que a transição demográfica brasileira acentua ainda mais essas limitações. “À medida que as causas traumáticas de morte diminuem e aumentam as doenças cardiovasculares e neoplásicas, o perfil dos doadores tende a envelhecer, resultando em órgãos com mais comorbidades e menor qualidade”, comenta.
A vida da pequena Amália Vitória, de 5 anos, foi assim, marcada por lutas e superações, antes mesmo de sua chegada ao mundo. Tudo começou na sua vigésima terceira semana de gestação, quando sua mãe, Ana Maria Maciel, de 37 anos, descobriu uma cardiopatia bem severa em Amália: uma hipoplasia no coração esquerdo.
Seus pais moravam no Piauí, e com a descoberta, tiveram que se mudar para Fortaleza para o tratamento. No início, as expectativas eram baixas, pois seu coração era bem debilitado, então, o seu nascimento já marcava o primeiro milagre na vida de Amália.
Amália nasceu em Fortaleza e, de início, seguiu internada e em acompanhamento, algo que permaneceu por dois anos, com idas e vindas de sua família à cidade natal. Após isso, um cateterismo foi realizado e, em janeiro de 2022, a pequena realizou sua primeira passagem por um centro cirúrgico.
“Depois disso ela ficou muito debilitada, agravando mais a situação. Nesse período, ela foi listada para um transplante em junho, mas a espera foi de 8 meses. Ela permaneceu dentro da UTI, bem magrinha e com muitas intercorrências, com sepse e COVID. Ficamos dias e noites ao seu lado. Mesmo intubada, ela ficava sentadinha e escrevia, mostrando sua garra”, lembra sua mãe.
Antes da chegada oficial do novo coração da pequena Amália, algumas tentativas já haviam acontecido. Na primeira, o novo coração não estava apto, na segunda sua caixa torácica era menor que o órgão, e na terceira, a família doadora disse que o coração iria para outra pessoa. Foi só no dia 4 de março de 2023 que uma nova esperança iria surgir.
“O pai, que estava com ela, me liga falando sobre um suposto coração. Eu me ajoelhei e orei para que aquele fosse o dela. Minha irmã havia acabado de chegar do Piauí para nos dar uma força, porque estávamos muito debilitados: fisicamente e mentalmente. O coração chegou no hospital à noite, e até hoje não sei explicar o misto de emoção que foi”, descreve Ana Maria.
Para a mãe, a experiência foi também espiritual, se conectando com a outra criança também. A cirurgia, mesmo sobre diversos riscos, foi um sucesso, e uma foto do novo coração foi enviada para a família antes deles verem Amália novamente.
“Ela voltou a ter cor de vida, vermelha e com os pés quentes. Era a coisa mais linda, porque ela era pálida, e tão magrinha que os pontos cirúrgicos das cirurgias anteriores já estavam se rompendo. O pós-cirúrgico dela foi tranquilo, com o tempo voltou a andar e comer. Ela já vai fazer 6 anos e a família doadora, a quem sempre serei grata, até hoje curte as fotos dela”, conclui.
Natural de Salvador, Jônatas Cabanelas, de 43 anos, chegou a Fortaleza em 2015, ano em que realizou seu transplante de coração. Caçula de uma família de quatro filhos, Jônatas foi diagnosticado, ainda na infância, com miocardiopatia hipertrófica congênita, uma doença que deixa o coração dilatado, fraco, crescido e espesso, e que, com o passar dos anos, ocasiona arritmias cardíacas.
A doença, herança genética do avô, não só acometeu Jônatas, mas também seu pai e seus três irmãos. Ela também foi responsável por levar a vida de todos eles. “Éramos três homens e uma mulher. Os dois homens mais velhos tiveram morte súbita aos 21 anos, por arritmias cardíacas. O meu pai teve insuficiência ”, lembra.
Sua irmã faleceu 12 anos após a morte do seu último irmão. Ela sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) em 2011 e teve algumas sequelas. Foi se recuperando, e o médico a orientou a se inscrever na fila do transplante. Infelizmente, ela faleceu em 2012 na fila de espera, após novos episódios de AVC.
“A quase 40 anos, não havia tanto conhecimento nem os recursos que se tem hoje. Quando éramos novos, tomávamos alguns medicamentos e eu tinha uma vida relativamente normal para uma criança: brincava, jogava bola. Só que, quando eu jogava bola, eu cansava muito e ficava com a boca roxa”, conta Jônatas.
Ele explica que, com o avanço da medicina, chegou a receber um mini desfibrilador implantado na região torácica para evitar arritmia cardíaca. Com o passar dos anos, os médicos foram passando novos medicamentos, com exames e um acompanhamento mais próximo.
“Eu tentava viver uma vida relativamente normal, porém com limitações. A cada ano que passava, essas limitações aumentavam, porque o coração ia ficando mais fraco e eu ia tendo mais sintomas: cansaço, indisposição, algumas internações. Fui afastado do trabalho pelo INSS. O único recurso era o transplante, e foi quando descobri que o Ceará era referência”, conta.
O tratamento de Jônatas começou na Bahia, com reabilitação para tentar fortalecer a musculatura e ter mais condicionamento, passando por uma equipe multidisciplinar. Três dias antes de ser encaminhado para Fortaleza, ele sofreu um AVC enquanto almoçava, perdendo os movimentos do corpo e a fala.
“Não perdi a consciência. Vi minha mãe chorando e sentia que ia partir. Tentei falar para ela se acalmar, mas minha boca estava paralisada. Me levaram para a emergência e, com muita força, consegui sair dessa e fiquei sem nenhuma sequela. O coágulo que tinha se formado se desfez. Sou um cara de muita fé e, naquele momento, sabia que era Deus que estava comigo”, diz.
A vinda de Jônatas para Fortaleza não foi fácil, desde a urgência até a questão da vaga no hospital. Inicialmente, quando chegou, ele ficou em um hospital particular, onde conheceu sua futura esposa, Elys Cabanelas, de 34 anos e enfermeira, que cuidou dele naquele dia e, por coincidência, tinha acabado de trocar o turno do seu plantão.
“As coisas não acontecem por acaso. Contei minha história para ela, e, depois disso, ela seguiu dando auxílio para nós, se mostrando disposta a ajudar. A gente foi conversando, gerando uma certa simpatia, e as coisas foram acontecendo. Nos aproximamos com o tempo e começamos a namorar. O coração ficava cada dia mais fraco, mas apaixonado por ela, o que me motivou a querer lutar pela vida”, recorda.
Houve muitas idas e vindas antes do transplante de coração acontecer, como mau funcionamento do órgão e negativa da família. Foi só no sétimo potencial doador, um jovem de 19 anos, que Jônatas ganhou um novo coração.
Já faz 10 anos desde o transplante, uma experiência de muito medo, fé e esperança na vida de Jônatas, já que ele foi um caso atípico, em que o coração não funcionava inicialmente, só bombeava mediante aparelhos. O caso foi agravado após o procedimento, com ele chegando a ser intubado.
“Quando tentaram tirar o tubo, senti uma experiência divina, um sopro de Deus nas minhas narinas, me dando vida novamente. Eu despertei, acordei. Consegui me reerguer com o apoio de todos, fui me reabilitando, ganhando peso, até que, após 7 meses internado, ganhei alta e fui para casa”, explica.
Mesmo amando sua cidade natal, Jônatas permaneceu em Fortaleza, casou-se com Elys, teve dois filhos, Davi Cabanelas, de 8 anos, e Benjamin Cabanelas, de 4 anos, voltou a trabalhar e refez toda sua vida, se cuidando e agradecendo por um novo recomeço.
“Hoje, minha mãe só tem a mim e seus netos. Cheguei a me descuidar um pouco e ter uma rejeição do coração, mas me recuperei. Vou ser extremamente grato à família doadora, um dos principais gestos de amor, reforçando a importância da doação de órgãos. O transplante salva e transforma vidas. Mesmo com tudo, estou hoje aqui, bem, e espero viver bastante tempo ainda”, finaliza.