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Modos de viver o prazer
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Modos de viver o prazer

| Conceito e discurso | Pós-pornô procura se descolar de noções arraigadas à pornografia "tradicional" e romper padrões da indústria, agregando debates, diversidades e reflexões
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Foto: Fever Films / divulgação "Tábula" é uma produção pós-pornográfica da Fever Films protagonizada pelo performer cearense Mario - que também assina a direção - e por Sereia Celestial

Depois da pornografia, o que há? O termo não é novidade, mas a discussão ao redor da noção de pós-pornô se torna cada vez mais atual e importante em tempos que pensam diversidades de ser, agir e consumir. "Pornografia é a espetacularização da sexualidade, sua transformação de pretensamente privada em representação pública, intrinsecamente ligada ao que é comercializável", define a psicóloga pela Universidade Federal e doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos Juliana Justa. Enquanto indústria, é definida, em maior ou menor grau, por uma série de características basilares - corpos em sua maioria inalcançáveis, visão falocêntrica, foco no prazer masculino acima de tudo. É contrariando esse "norte" construído que surge a pós-pornografia, que "pode ser considerada uma crítica ao apagamento e objetificação de pessoas e práticas consideradas não relevantes ou diminuídas pela exotização de suas existências não só pela pornografia 'tradicional', mas também pela medicina, religião, pelo patriarcado", aponta Juliana

A pornografia "tradicional", relaciona a pesquisadora, pode ser entendida como "uma pedagogia dos prazeres" que, a partir de hierarquizações de que sexualidade é "passível de ser exibida e comercializada", ensina a quem assiste comportamentos e noções que não necessariamente se relacionam com a realidade da prática sexual. "Ela transita em uma linha tênue entre o conservadorismo e a transgressão, pois nem sempre o pornográfico, apesar de obsceno por mostrar aquilo que se pretendia proibido, rompe com padrões de gênero, sexualidade, raça, classe, desejos e corporalidades propagados como 'saudáveis'", pondera Juliana. "Logo, a pornografia pode ser entendida como uma ordenação sexual e social que propaga privilégios e precariedades", avança.

Como contextualiza o cearense Mario - mímico, performer e bufão que, há dois anos, pesquisa e produz conteúdos pornográficos que ressignificam sexo e masculinidade -, o termo "pós-pornografia" surge nos anos 1980 a partir da ex-atriz pornô Annie Sprinkle. "Ela passa a questionar o papel da mulher na indústria pornográfica tradicional e, com isso, inicia a produção de seu próprio conteúdo", explica. Atentando para o fato de que é preciso não limitar a pós-pornografia a um modelo - "já que ela é a própria ruptura de padrões" -, Mario enxerga como uma das características fundamentais do pós-pornô "a inclusão de grupos que não se veem representados na pornografia tradicional, que rompem com a estética aceita pela sociedade, bastante influenciada pela pornografia tradicional", desenvolve. "A descolonização dos desejos, corpos e existências proposta pela pós-pornografia abre um importante espaço político de afirmação de prazer e vida de pessoas negras, LGBTQI, mulheres, não binárias, gordas, entre outras formas de (r)existir aos padrões estéticos/políticos excludentes", dialoga Juliana.

"Esse tipo de produção busca ampliar o olhar do sexo para além dos modelos sistêmicos, rompendo com a normatividade, fugindo da ideia do sexo apenas heterossexual, não-objetificando os corpos - principalmente o das mulheres, que é exibido para satisfazer fantasias masculinas -, não restringindo o sexo aos órgãos genitais, entre outras questões", segue o performer. "A pós-pornografia se diferencia das produções tradicionais basicamente pelo discurso - quando falamos isso, entendemos uma pluralidade de discursos, afinal são muitos grupos, cada um com demandas, gerando narrativas distintas. O roteiro e a edição precisam estar a serviço desse discurso, podendo, inclusive, abranger outros suportes, como a fotografia, a literatura e as artes visuais, por exemplo", destrincha.

 

Quem produz

Fever Films

Produtora a qual o performer cearense Mario está ligado. Propõe novas formas de produzir conteúdos adultos

Erika Lust

Site de produções da diretora Erika Lust, conhecida por cunhar a expressão "pornô feminista"

Aorta Films

Produtora de filmes queer e feministas que também apostam no conteúdo pós-pornográfico

Four Chambers

Projeto de "pornografia criativa" da performer Vex Ashley cuja intenção é explorar estéticas e conceitos, pensando o pornô como meio para expressar ideias

Episódio 2 da série Hot Girls Wanted: Turned On

O segundo episódio série, disponível na Netflix, mostra a fotógrafa Holly Randall e a diretora Erika Lust discutindo a perspectiva feminista em conteúdos eróticos

Las hijas del fuego

Filme argentino "As filhas do fogo", dirigido por Albertina Carri, se aproxima de uma noção pós-pornográfica. A obra foi lançada comercialmente nos cinemas brasileiros em 2019

 

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