Houve esforço no sentido contrário, mas foi mesmo instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que irá apurar ações e omissões do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) na condução da crise sanitária, além de supostos desvios de verbas federais praticados por governadores e prefeitos no curso da Covid-19.
Serão 90 dias, prorrogáveis por mais 90, ao longo dos quais depoimentos de ex-ministros da Saúde serão colhidos e epidemiologistas serão ouvidos, por exemplo. Tudo a fim de elucidar o que de errado foi feito durante a pandemia para que se chegasse à marca de mais de 370 mil mortos no Brasil, com evidentes perspectivas de ascensão nessa conta.
A chance de prorrogação do tempo é importante, pois à medida que o ano corre, mais próximo da corrida eleitoral o Brasil estará. É possível que o País chegue ao que será a principal encruzilhada política pós-redemocratização sob os efeitos da investigação que se desenrolará no Senado. Governadores, sobretudo os com projeto eleitoral para 2022, também terão de se haver com consequências ainda imprevisíveis.
Resistente à proposta de apuração dos supostos crimes cometidos pela administração federal, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), avaliou que a comissão será um ambiente para construção de “palanque político” para 2022. Depois, assegurou que não moveria uma palha contra os trabalhos.
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Questionado por O POVO em entrevista coletiva remota sobre a possibilidade de que a atmosfera eleitoral invada os trabalhos do colegiado, o autor do requerimento para abertura da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse que a atuação dos senadores não pode se afastar “um milímetro do que diz a Constituição”.
“É uma comissão de inquérito com poderes judiciais. A comissão investiga pessoas, não cabe na CPI princípios da ampla defesa e do contraditório. Tanto que ninguém vai ser condenado ao final da CPI. Existe para fundamentar, encontrar subsídios para posteriormente serem usados pelo Ministério Público Federal”, pregou o parlamentar de oposição, segundo quem a primeira sessão possivelmente deve ocorrer na quinta-feira.
Por que nos tornamos epicentro da pandemia? Por que não tivemos vacina antes? A hidroxicloroquina é, mesmo, um fármaco eficaz no tratamento da doença? São questões a serem postas no decorrer da apuração parlamentar, de acordo com Randolfe, que pleiteia a presidência do colegiado.
“Poderíamos ter tido medidas que tivessem impedido o morticínio que estamos vivendo hoje?”, ele indagou ainda. E disse: “São perguntas que clamam por uma resposta nossa.” Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello (ex-ministros da Saúde) serão ouvidos.
Mandetta é pré-candidato a presidente da República. Seu relato deve se assemelhar ao de Teich, que saiu da pasta quando decidiu que não mancharia a própria história por causa da cloroquina, nas palavras do ex-ministro.
O senador Humberto Costa (PE), representante do PT na CPI, respondeu ao O POVO que quanto mais rápido as atividades se processarem, menos repercussão terão sobre o ano que vem. “Por isso defendemos que tenhamos um processo de início do funcionamento imediato. Temos mais de um ano para chegarmos à eleição”, destacou.
O petista interpreta que o requerimento aprovado por Eduardo Girão (Podemos-CE) no sentido de ampliar o escopo da CPI tem, na prática, o objetivo de evitar estragos para Bolsonaro.
“Qualquer CPI tem autonomia de investigar os fatos. Os recursos destinados foram bem aplicados? Não há nenhum impedimento de se fazer esse tipo de inevstigação. O que não dá é fazer CPI contra governadores e prefeitos, que são atribuições das assembleias legislativas e câmaras municipais”, sublinhou Costa.
O movimento bolsonarista nas redes iniciou primeiro ataque mais coordenado contra a abertura da comissão. A participação de Renan Calheiros (MDB-AL), concorrente a posto chave no colegiado, foi duramente combatida pelos apoiadores do presidente. É como se o emedebista, alvo de inúmeras investigações, descredibilizasse a comissão já na partida.
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Outro foco de atrito, dessa vez entre ex-aliados, ocorreu na última quinta-feira, 15. O deputado federal Capitão Wagner (Pros-CE) insinuou que o senador Tasso Jereissati (PSDB) atuará no sentido de proteger o governador estadual e os prefeitos cearenses.
“Claro que o foco será o adversário político (Bolsonaro), pela proximidade e aliança com Ciro Gomes, que sonha em derrotar o Bolsonaro. Terá mesmo rigor com o governador do Ceará e as prefeituras dos Ferreira Gomes?”, indagou Wagner, um dos cotados a ser candidato da oposição ao Palácio da Abolição em 2022.
Wagner repercutia fala do tucano ao site O Antagonista na qual ele afirma que, em primeiro plano, estará Bolsonaro, sendo os outros chefes de Executivo circunstancialmente alcançados.
Tasso disse ainda que a CPI tem de ser feita de modo equilibrado e técnico, de maneira a reduzir margens para “politicagem ou fins eleitoreiros, contaminando o seu funcionamento.”
Um interlocutor do tucano disse ao O POVO que ele não fará movimento pessoal para garantir a presidência da comissão ou a relatoria, ou seja, assumirá as funções se assim for decidido por aclamação. Ali, tem-se um cenário de 7 a 4 em desfavor de Bolsonaro.
Eduardo Girão: CPI com União, Estados e Municípios afasta objetivos eleitoreiros
Autor de requerimento para CPI ampla, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) afirma que com definição de critérios de prioridade é possível investigar possíveis irregularidades cometidas por estados e municípios. O governador Camilo Santana (PT) e o ex-prefeito Roberto Cláudio (PDT), para ele, terão de se explicar pela compra de respiradores "supostamente fraudulenta" e pela desinstalação do Hospital de Campanha do PV, respectivamente. Uma CPI somente sobre erros do governo Bolsonaro, adicionou, teria fim eleitoral. As respostas foram enviadas pela assessoria a pedido do O POVO.
O POVO: O senhor foi bem-sucedido no movimento de ampliar a CPI para estados e municípios. Mas é possível a comissão investigar, potencialmente, 27 estados e 5.568 cidades?
Eduardo Girão: Sim, é possível, desde que se definam corretamente os critérios de prioridade em função do nível de gravidade dos indícios de desvios em estados e munícipios. Pode-se por exemplo começar pelos casos que já estão sendo investigados pela Polícia Federal.
OP: O senhor espera que a CPI constate crimes supostamente cometidos pelo governador Camilo Santana e pelo ex-prefeito Roberto Cláudio? Quais?
Girão: Existem indícios muito fortes em quase todos os estados do Brasil, inclusive no Ceará. Não se deve jamais enveredar pelo caminho de "caça às bruxas". Os trabalhos devem ser direcionados para diminuir tanta dor e sofrimento do povo brasileiro. Dentre os fatos determinados que embasaram o pedido de CPI consta a compra supostamente fraudulenta de respiradores pelo Consórcio Nordeste, do qual faz parte o Ceará. Mas temos também outro caso emblemático em Fortaleza com o Hospital de Campanha do PV que custou R$ 96 milhões e durou menos de cinco meses, quando todo mundo sabia da vinda da segunda onda. Agora há carência de UTIs.
OP: O presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes ao falar repetidas vezes contra o isolamento social, evitar o uso de máscaras, causar aglomerações e rejeitar vacinas propostas pela Pfizer, que chegariam em dezembro de 2020?
Girão: A condução da política de enfrentamento ao Covid-19 teve falhas que precisam ser apuradas assim como a apuração dos fortes indícios de corrupção como os existentes com as centenas de bilhões de reais transferidos aos estados e munícipios.
OP: Há riscos de que o ambiente da CPI seja influenciado pelo clima eleitoral de 2022, como cogitou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG)?
Girão: Se a CPI tivesse ficado restrita exclusivamente no Governo Federal, seria evidente o propósito eleitoral. A condução dessa importante CPI, agora ampliada, precisa ser muito responsável de modo a evitar contaminação eleitoreira visando 2022. A sociedade brasileira espera pela busca da verdade dos fatos em todas as esferas de governo, contribuindo para o combate à corrupção e servindo para vencer a pandemia, poupando vidas.