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30 anos do Eca
Economia

30 anos do Eca

Passadas três décadas desde a assinatura do estatuto, crianças e adolescentes conquistaram direitos. A legislação, contudo, ainda esbarra na desigualdade social e na falta de implementação de políticas públicas para que o público tenha acesso pleno ao que apregoa o ECA
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Cícero Silva , 17 anos, faz parte do Projeto Mucuripe da Paz e fala sobre a busca de direitos para adolescentes 30 anos depois do ECA (Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO Cícero Silva , 17 anos, faz parte do Projeto Mucuripe da Paz e fala sobre a busca de direitos para adolescentes 30 anos depois do ECA

Uma legislação ampla, de profundo caráter social, que passa a entender pessoas de 0 até 18 anos como sujeitos de direito, que devem ser priorizadas na idealização de políticas públicas e que são de responsabilidade dos governos, das famílias e da sociedade. Estes são alguns princípios básicos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que modificou a tratativa de crianças e adolescentes no País. Desde que foi assinado, em 13 de julho de 1990, o ECA se caracteriza como uma das leis mais completas no Mundo a tratar da infância e da adolescência. Contudo, 30 anos depois ainda enfrenta entraves que impedem a plena implementação.

Antes do ECA, esse grupo etário era regido pelo Código de Menores - que entendia essas pessoas quase como objetos de posse da família e passíveis de punições severas dos governos em caso de condutas inadequadas. "As leis da época eram autoritárias e violadoras de direitos. E o ECA foge dessa áurea autoritária de menorismo, e passa a entendê-los como sujeitos de direito e em condição desenvolvimento", explica o assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - Ceará (Cedeca) Renan Santos.

Fruto de mobilizações de movimentos sociais que lutaram já em 1988 pela inclusão do artigo 227 na Constituição Federal, o ECA não apenas aponta quais são os direitos a que pessoas com menos de 18 anos devem ter acesso, como também cria mecanismos para que isso seja operacionalizado, aponta a presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos advogados do Brasil - Secção Ceará (CDDCA-OAB-CE), Talita Maciel.

Assim, conselhos tutelares, delegacias especializadas, conselhos municipais e estaduais, sistemas de Justiça, como a Vara da Infância e Adolescência, e demais sistemas de garantia de direitos vieram no bojo da legislação.

Entendida por Rui Aguiar, coordenador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), do Ceará, como uma "lei viva", o ECA se moderniza ao longo desses 30 anos e contabiliza avanços no que diz respeito à universalização da educação, principalmente do Ensino Infantil e Fundamental, mesmo que ainda falhe na qualidade e na permanência dos estudantes; do acesso à saúde ainda dentro da barriga da mãe, ao reconhecer o feto como um sujeito de direito e instituir a obrigatoriedade da vacinação infantil e da licença-maternidade, por exemplo; e de regras mais ágeis e claras quanto à adoção.

CÍcero Silva , 17 anos, faz parte do Projeto Mucuripe da Paz
CÍcero Silva , 17 anos, faz parte do Projeto Mucuripe da Paz (Foto: Aurelio Alves/ O POVO)

Quando o adolescente Cícero Silva Batista, 17, nasceu, o ECA já somava 13 anos de existência. Morador do bairro Mucuripe, em Fortaleza, o estudante compreende que muitos dos direitos a que teve acesso ao longo da vida, como a educação em escola pública e o atendimento psicoterapêutico no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), só foram possíveis devido à legislação, que também é tema de rodas de debate no projeto Mucuripe da Paz, de que participa.

"É uma lei que fala dos nossos direitos e deveres. E aí, quando a gente anda pelo bairro vê que isso não chega pra todos. Aqui não tem saneamento básico, a gente convive com um córrego que é um esgoto a céu aberto e que existe há tanto tempo que virou ponto de referência na rua. Outro direito é que toda criança e todo adolescente deveria ter uma casa estruturada, de ter espaço público pra brincar pra correr. E isso não tem. Muitas vezes os governos não dão esses direitos.E o adolescentes crescem vendo a vida de poucas opções", detalha Cícero, que ainda vê uma realidade cruel se desenhar muito próximo a ele: "De todos os meus amigos da infância, das crianças que se juntavam pra brincar, acho que 50% foram pro mundo da droga, do tráfico. Muitos morreram".

É como também compreende a defensora pública e supervisora do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e Juventude (Nadij), Julliana Andrade. Para ela, o contexto de vulnerabilidades sociais, com as dificuldades de acessar direitos que deveriam ser garantidos e que constam no ECA, fazem parte da trama que leva tanto à autoria de atos infracionais, como à morte.

"Crianças e adolescentes não partem no mesmo ponto de partida, e notoriamente desigualdades sociais precarizam o acesso à oportunidades. A gente precisa enxergar isso para que se pense em políticas públicas para proteger essas pessoas que, muitas vezes, não tiveram oportunidades e não devem ser tratadas da mesma forma", indica a defensora.

Pelo ECA, crianças e adolescente devem ser priorizadas no planejamento e execução dos orçamentos de governos. Para Rui, além de falhar nessa priorização, os governo falham na transparência com que tratam esses orçamentos, e na falta de uma sistemática para que crianças e adolescentes sejam ouvidas na construção das políticas públicas voltadas a eles. Ele aponta que também falta um política de segurança voltada a esse público. O que culmina, para Renan, a violação da integridade física.

 

Lis Albuquerque é psicóloga, doutora em Psicologia (UFRJ), editora-assistente da Revista Desidades (NIPIAC/UFRJ) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC)
Lis Albuquerque é psicóloga, doutora em Psicologia (UFRJ), editora-assistente da Revista Desidades (NIPIAC/UFRJ) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC)

BATE-PRONTO - ECA: Psicóloga fala sobre a importância da garantia de direitos no desenvolvimento

Lis Albuquerque é doutora em Psicologia e membro do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O POVO - Como a senhora analisa a existência de um conjunto de leis que dá a criança e ao adolescente o status de cidadãos e detentores de direitos?

Lis Albuquerque - A existência do ECA, fruto de muitas reivindicações e lutas da sociedade civil (incluindo coletivos formados por crianças e adolescentes, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua), é extremamente importante e necessária, ainda mais considerando uma sociedade como a nossa, brasileira, em que por tantos anos (e ainda hoje) crianças e adolescentes são, muitas vezes, tratados como objetos, de menor valor e importância. Essa desconsideração das crianças e dos adolescentes se dá, especialmente, entre aqueles de determinadas classes sociais, raça, gênero, local de moradia etc., e está ligada com as condições de exclusão, discriminações e desigualdades sociais que marcam a construção do nosso país. Então, o ECA, como esse conjunto de direitos e deveres das crianças e adolescentes brasileiros, é uma forma de marcar que esses direitos e deveres são lei, e não um favor ou uma caridade, colocando a responsabilidade do Estado, da sociedade civil e das famílias na proteção e promoção desses direitos. A lei é de suma importância para que esses direitos sejam promovidos, garantidos, além do que ela traz meios formais, institucionais de cobrarmos seu cumprimento. No entanto, esse status de cidadãos e de sujeitos de direitos não é dado às crianças e adolescentes, mas conquistado, em embates sociais e políticos, para os quais a existência do ECA contribui essencialmente. Essa luta permanece, sendo necessário atentar para como esses direitos estão sendo garantidos e concretizados, no que eles realmente têm transformado nossas relações e como, de fato, eles colocam crianças e adolescentes nesse lugar de cidadãos. E no horizonte dessa luta estão os valores de dignidade e respeito às crianças e aos adolescentes, sem discriminar quais crianças e adolescentes podem viver, e viver bem, pois o ECA é para todos eles!

OP - Qual a importância de ter acesso pleno a direitos na infância e na adolescência?

Lis - Gostaria de iniciar minha resposta com outra pergunta: qual a importância de se ter acesso pleno à saúde, educação, moradia, cultura, lazer, esportes, convivência familiar e comunitária para se viver? Todos nós precisamos desses direitos para viver e viver bem, não só sobreviver. Apesar de parecer óbvio essa necessidade, o que observamos ao longo da história da humanidade é que precisamos transformar isso em leis, conquistar tais aspectos como direitos, para que possamos ter acesso. E, por muito tempo, as crianças e os adolescentes não foram considerados como sujeitos detentores desses direitos, imaginem só que estranho: uma criança pobre não tinha assegurado o direito à saúde! Ela poderia sobreviver como resultado de ações de caridade, mas não porque ela tinha o direito de viver! Então a importância de crianças e adolescentes terem acesso pleno a esses direitos, na condição de crianças e adolescentes que são, é que eles passam a ser considerados como gente, como alguém cuja vida importa. 

OP - Em que crescer em meio à vulnerabilidades pode repercutir no desenvolvimento de crianças e adolescentes?

Lis - Primeiro é necessário destacar que essas vulnerabilidades não são fatos naturais, mas frutos do nosso modo de viver em sociedade e da história de construção de um país, Brasil, baseados em exclusões, discriminações e desigualdades sociais que têm, por sua vez, produzido cenários de graves violações de direitos, como não poder ter o que comer, um lugar digno para morar, uma escola acessível e de qualidade, não poder cuidar de sua saúde, não ter oportunidades de lazer, esportes, de brincar, aprender, ter acesso aos bens culturais, ter espaço e voz nos grupos sociais etc. Crescer (ou sobreviver, resistir) em meio a tantas vulnerabilidades pode significar crescer entendendo que sua vida não tem valor, não importa. Crescer com seus direitos violados repercutirá negativamente nas diversas dimensões que compõem o desenvolvimento humano - cognitiva, física, psíquica, social, cultural. São prejuízos provocados pela falta de uma alimentação adequada, de acesso a saneamento básico, de um local para morar, de oportunidades para brincar e estudar tranquilamente, de relacionar-se com outras gerações de forma respeitosa e segura, de se sentir parte da construção de um bem-estar comum. Além disso, perdemos também nós, adultos, com a ausência (ou uma presença prejudicada) das crianças na construção do que nos é comum, valendo destacar que esse desenvolvimento bem cuidado e com direitos assegurados e concretizados, não violados, é responsabilidade do Estado, da família e de toda a sociedade.

 

Socioeducativo é alvo de críticas

Entre as modificações e leis que foram se complementando ao ECA, está a lei de 2012 do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). O sistema prioriza a via pedagógica em lugar da punição para os jovens que cometem atos infracionais. Contudo, para Renan Santos, assessor jurídico do Cedeca, mesmo com as melhorias recentes, o sistema, no Ceará a cargo da Superintendência Estadual do Sistema Socioeducativo (Seas), não funciona a contento do que diz respeito, principalmente, à educação dos jovens.

"Não se pode esperar que uma política pública baseada, prioritariamente, no viés pedagógico que ela esteja eficiente se na prática ela é desumanizadora e violenta", aponta Renan. De acordo com a presidente da CDDCA-OAB-CE, Talita Maciel, o socioeducativo não tem funcionado na "perspectiva de ressignificar vidas", ainda são feitas muitas "denúncias de violência dentro das unidade cometidas pelos agentes do Estado", e as atividades de educação, profissionalização, lazer e cultura não chegam a todos os jovens internados - seja por falta de estrutura física, seja por um sistema de fases, em que o acesso às atividades vai de acordo com o comportamento do adolescente. Conforme o Cedeca, a educação só chega a cerca de 40% dos adolescentes. A situação, principalmente do acesso às atividades, estaria ainda mais precarizada diante da pandemia.

Por meio de assessoria, a Seas rebate a informação sobre a limitação das atividades de escolarização formal. "Ao contrário, as atividades de escolarização são potencializadas com a qualificação profissional, atividades de arte, cultura e lazer, além das esportivas, de acordo com cada fase". A pasta aponta que "o Sistema de Fases de Atendimento Socioeducativo faz parte da metodologia prevista na proposta pedagógica", sendo o "pilar fundamental da nova proposta".

Na pandemia, de acordo com o órgão, as atividades "foram redefinidas" e foram firmadas parcerias "para que as atividades culturais continuassem (...) já que escolarização e profissionalização estão suspensas". Sobre as denúncias de violência, o Seas indica que "conta na sua estrutura com uma corregedoria em que todos os casos de denúncias de maus tratos são apurados e, se confirmados, aplicadas as devidas sanções administrativas".

Sobre a priorização de crianças e adolescente no orçamento e na execução de políticas públicas, o Governo do Estado, por meio de nota, afirmou que "crianças e adolescentes têm recebido uma atenção especial do Governo do Ceará com o desenvolvimento de políticas públicas específicas para essa faixa etária", e que o investimento direto do orçamento estadual no eixo Promoção dos Direitos para as Crianças e Adolescentes, definido no Plano Plurianual para 2020, é de aproximadamente R$ 3,2 bilhões, distribuídos em várias secretarias estaduais.

O Governo cita o programa "Mais Infância Ceará", que é lei desde 2019, e o Cartão Mais Infância, programa de transferência de renda no valor de R$ 85 para 45 mil famílias em vulnerabilidade social com crianças de 0 a 5 anos e 11 meses dos 184 municípios. Brinquedotecas, praças e Centros de Educação Infantil (CEIs) também fazem parte da ação.

Sobre a participação de crianças e adolescentes na formação das políticas voltadas a eles, o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente tem em seu planejamento para 2020 o desafio de constituir seu Comitê Consultivo de Adolescentes.

A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) indicou, também por meio de nota, que "atua de forma preventiva com o objetivo de reforçar a participação da população infanto-juvenil em projetos sociais e outras iniciativas que promovam a sedimentação do desenvolvimento integral do ser humano".

cenario dos ultimos anos
cenario dos ultimos anos

CENÁRIO

Avanços do ECA

Redução da mortalidade infantil

O Brasil passou de 47,1 mortes a cada 100 mil nascidos vivos antes de completar um ano de idade, em 1990, para uma mortalidade de 12,4 em 2018.

827 mil vidas foram salvas de 1996 a 2017, conforme estimativa da Unicef.

No Ceará, em 1990, o Estado registrava 79,5 mortes por 100 mil nascidos vivos. Em 2019, esse número era de 12,3 óbitos por mil nascidos vivos.

Acesso à educação

Quase 20% das crianças de 7 a 14 anos (idade obrigatória na época), em 1990, estavam fora da escola.

Em 2009, a escolaridade obrigatória foi ampliada para 4 a 17 anos.

Em 2018, apenas 4,2% de 4 a 17 anos estavam fora da escola (1,7 milhão).

No Ceará, em 2019, 98% das crianças cearenses de seis a 14 anos de idade estavam cursando o Ensino Fundamental (EF) e 73,5% dos adolescentes estão frequentando unidade de ensino públicas ou privadas.

Redução do trabalho infantil

Entre 1992 e 2016, o Brasil evitou que 6 milhões de meninas e meninos de 5 a 17 anos estivessem em situação de trabalho infantil, conforme estimativa do Unicef.

No Ceará, a população de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil caiu quase pela metade entre 2014 e 2015, anos de duas Pnads. O número passou de 144.637 para 74.895, o melhor resultado no período entre todos os estados brasileiros e o Distrito Federal. Ao se considerar o período de 2004 a 2015, novamente o Ceará teve a redução mais expressiva do País, de 77%.

Desafios ainda por enfrentar

Até 2019, 22% dos brasileiros até 14 anos viviam em extrema pobreza. No Ceará, em 2018, 28% das crianças viviam em extrema pobreza.

Em 2018, 2,6 milhões de estudantes de escolas estaduais e municipais foram reprovados no País. As populações preta, parda e indígena tiveram entre 9% e 13% de estudantes reprovados, enquanto entre brancos esse percentual foi de 6,5%.

No Ceará, em 2017, mais de um milhão de pessoas até 15 anos não sabia ler ou escrever. Do total, 79,69% eram pretas ou pardas.

No Brasil, a Pnad Contínua 2016 indicou que mais 2,4 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no País. Desses, 64,1% são negros.

Entre 1990 e 2017, os homicídios de adolescentes mais que dobraram no Brasil. Em 2018, houve uma pequena redução, mas os dados continuam altos: foram 9.781 meninas e meninos mortos, mais de um homicídio por hora no País. Desses, 81% eram negros.

No Ceará, de 2014 até junho de 2020, o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência apontou que 5.046 adolescentes foram vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI).

Fontes: Unicef, IBGE, Rede Peteca e Ministério da Saúde

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