O início da experiência do Ceará na reforma tributária planejada para o Brasil será alvo de reflexões do professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, João Ricardo Catarino, na próxima semana.
Ao O POVO, ele adiantou pontos importantes da nova realidade fiscal do País com o Imposto Sobre Valor Agregado (IVA) e afirmou: "A guerra fiscal combate-se com medidas de desenvolvimento econômico e social inteligente e duradouro."
Catarino é o principal nome do seminário internacional “A experiência do IVA europeu e a reforma tributária”, que acontece na próxima segunda-feira, 25, com realização da Secretaria do Planejamento e Gestão do Ceará e a Escola de Gestão Pública do Estado do Ceará.
Abaixo, ele reflete sobre a experiência de 50 anos da União Europeia com o IVA e o que Brasil e Ceará podem obter de aprendizado. Confira:
O POVO - O Brasil se prepara pela primeira vez para adotar um IVA unificado, aqui de forma Dual. Como tem sido a experiência na Europa e qual sua avaliação sobre esse sistema de tributação?
João Ricardo Catarino - A experiência europeia de mais de 50 anos de implementação do IVA é muito positiva. Seja do ponto de vista a receita que este imposto permite arrecadar, seja no ponto de vista da sua gestão integrada na Europa dos 27, podemos dizer que se trata de um sistema que tem servido muito bem os interesses da União em todas as suas fases de desenvolvimento, desde a União Aduaneira à criação do mercado único europeu (1993) até às diferentes fases do processo da União Económica e Monetária (desde 1990 até aos nossos dias).
OP - O senhor tem acompanhado as discussões no Brasil? Vê semelhança ou diferenças no sistema que está sendo implementado?
Catarino - Sim, tenho acompanhado. A base do modelo é, essencialmente, a mesma. Nem podia ser de outro modo. Trata-se de um imposto sobre transações muito evoluído na forma como garante a neutralidade dos circuitos económicos, sendo tendencialmente neutro para os sujeitos passivos, com uma ampla base tributária e de cobrança e fiscalização mais fáceis. Há, pois, muitas semelhanças na sua génese ou raiz. De fato, essas semelhanças são partilhadas com os modelos de IVA do tipo consumo em vigor em mais de 200 Estados e jurisdições em todo o mundo.
OP - Acredita que o sistema tributário europeu é eficiente para reduzir desigualdades? Quais os principais desafios?
Catarino - A resposta a essa pergunta exige que situemos o conceito de desigualdade a que nos referimos. É verdade que o IVA pode ser mais agressivo para as famílias de menores rendas / rendimentos e, desse ponto de vista dizer-se, em linguagem técnica, que ele é regressivo do ponto de vista do rendimento / renda, pois as famílias de menor renda não só afetam, proporcionalmente, uma parcela maior da sua renda disponível a consumos sujeitos a IVA, como porque se trata de consumos de bens essenciais que eles não conseguem evitar (evitando o imposto) , por serem essenciais à satisfação das suas necessidades básicas.
Sendo isto um fato, também é verdade que é possível adotar técnicas de gestão do IVA que permitam desonerar o peso do IVA para essas famílias, o que sucede desonerando os consumos de bens essenciais (energia, água, bens alimentares básicos, como arroz, o feijão, grão, algumas carnes, livros escolares, etc.). Com isso mitiga-se o peso do IVA nessas famílias. Esta técnica de redução da taxa / alíquota de IVA para este tipo de consumos é muito utilizada na União Europeia, sendo até que alguns Estados-membros utilizam a alíquota zero para certos consumos, o que equivale a isentar de IVA tais consumos. Existem outras técnicas, mas são menos utilizadas por serem mais suscetíveis de fraude.
OP - Aqui, sofremos um fenômeno que é a guerra fiscal entre os estados brasileiros, na qual os governos tentam atrair empresas oferecendo mais benefícios fiscais. O senhor acredita que esse modelo de reforma tributária pode reduzir isso?
Catarino - A “guerra fiscal” está em toda a parte do mundo e, certamente, ela está bem viva na União Europeia. O IVA não é propriamente um imposto que seja muito utilizado para tornar as diferentes jurisdições / Estados mais competitivos. Há, todavia, dois aspectos onde essa concorrência fiscal está bem presente: no estabelecimento de taxas / alíquotas mais baixas entre jurisdições, sejam Estados-membros da UE, sejam Estados na Federação Brasileira. Outra forma muito utilizada é a da concessão de benefícios fiscais.
Num caso e noutro, o sistema comum de IVA deve estabelecer limites para a consagração de isenções sobre certos bens, serviços ou atividades. E deve garantir também uma base comum do imposto em todo o Brasil, sem prejuízo de algumas especificidades regionais ou estaduais.
OP - Como é tratada essa questão de "guerra fiscal" entre os países europeus? O que pode ser tomado de exemplo pelo Brasil?
Catarino - Na União Europeia, o forte modelo comum de IVA em vigor em todos os Estados-membros impede que haja uma concorrência fiscal declaradamente agressiva, já que o modelo é mais uniforme do que virá a ser, porventura, o modelo dual brasileiro. Há, todavia, diferenças sensíveis de alíquotas entre Estados-membros, o que constitui um fator de concorrência relevante. A alíquota geral no Luxemburgo é de 17%, na Alemanha de 19%, na Espanha de 21% e em Portugal e em outros Estados, de 23%, na Suécia, 25%. Estas diferenças ocasionam distorções de consumos transfronteiriças com algum relevo mas, de um modo geral, não impactam com os equilíbrios na gestão do IVA.
O Brasil tem especificidades muito próprias, com os Estados a apresentarem variações de peso económico e de carências sociais etc. o que vai tornar a gestão do imposto mais complexa. Há, todavia, que ter presente que, quanto maiores forem essas especificidades do modelo brasileiro, maiores serão as dificuldades na gestão do imposto comum, e as possibilidades de fraude.
De modo que, respondendo diretamente, ainda que haja espaço para acomodar especificidades estaduais, elas não podem ser tão amplas que desvirtuem a aplicação do modelo de imposto e criem situações de iniquidade / desigualdade relativa entre operadores econômicos e consumidores. Deve preferir-se outro tipo de apoios sociais fora da política de tributação do consumo.
OP- E como compensar a desigualdade entre eles? Vide que nós aqui do Nordeste sempre estivemos atrás nesta questão.
Catarino - A compensação pode fazer-se por via da criação de regimes específicos por exemplo, para certos consumos, como os bens de saúde, bens culturais ou de educação, mas estes devem ser bem contidos.
Na União Europeia os desníveis de desenvolvimento não são compensados tanto por via das especificidades no IVA (que tendem a ser gerais para todos os EM’s mas através de fundos estruturais e medidas de política social. No caso do Brasil, esses desníveis poderiam ser compensados com fundos do próprio imposto especialmente afetos ao apoio de atividades sensíveis, a partir de um fundo comum ao qual os diferentes Estados se candidatariam. Mas esta é só uma ideia e tenho a certeza de que o Brasil saberá encontra o melhor modelo para si.
O senhor daria alguma recomendação ao Estado do Ceará neste contexto? De como agir para assegurar investimentos com a reforma tributária?
Catarino - A guerra fiscal combate-se com medidas de desenvolvimento econômico e social inteligente e duradouro, muitas das quais se situam fora do sistema tributário. A atratividade do Ceará deve ganhar-se em todas as frentes com políticas de investimento inteligente que captem investimento, pessoas mais qualificadas. Também se constrói com alíquotas moderadas, ampla base tributável e uma eficiente administração do imposto, garantindo que todos pagam o que efetivamente devem. Finalmente, há que reforçar em todo o mundo a cidadania e a consciência fiscal, como aí se faz muito bem.
OP - Uma das alternativas aqui para tentar reduzir a desigualdade foi o cashback para população mais carente... O senhor acredita nestes artifícios ou o caminho é mirando mais nos ricos, com a taxação de grandes fortunas?
Catarino - A devolução de dinheiro de forma generalizada para equalizar a carga tributária sobre as diferentes camadas da população nunca foi uma medida isenta de fraudes e de abusos. O cashback sob a forma generalizada de devolução financeira não é uma solução muito frequente no mundo.
Já o estabelecimento de alíquotas moderadas para consumos essenciais e alguns regimes especiais para certas atividades, que beneficiem os mais desfavorecidos será uma boa medida para o Brasil, desde que, por exemplo as listas de bens enquadrados nesses regimes sejam muito bem definidas para evitar a fraude ao imposto.
A tributação das grandes fortunas é muito difícil, pois elas são alimentadas por tipos de renda extremamente móveis que podem ser facilmente deslocadas para outras jurisdições, onde a tributação é menor.
Serviço
Seminário internacional "A experiência do IVA europeu e a reforma tributária"
Data: 25 de novembro de 2024
Horário: 14h
Local: Auditório da Seplag
Inscrições: https://escola.egp.ce.gov.br/catalogo/557