Mesmo após denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), o licenciamento do mega data center da chinesa ByteDance — empresa controladora do Tik Tok — segue tramitando na Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), no Ceará.
É o que se queixam o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), o povo indígena Anacé e as organizações cearenses Instituto Terramar e Escritório Frei Tito, que protocolaram, em conjunto, uma representação na 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.
Eles frisam “graves irregularidades” no processo aprovado no Estado e pedem suspensão imediata do licenciamento e anulação da licença prévia concedida.
As organizações e o povo indígena Anacé afirmam que o processo avança sem estudos adequados e sem diálogo com as comunidades afetadas.
O projeto chamado de Data Center Pecém, que será construído em Caucaia, prevê consumo energético de 210 megawatts (MW), o equivalente ao gasto diário de mais de 2,2 milhões de pessoas, próximo da população da cidade de Fortaleza (2,5 milhões de habitantes).
Esse é o montante da primeira fase, mesma capacidade de energia de cerca de 84.000 casas. Na segunda etapa, a previsão é dobrar.
“Se a licença for concedida e as obras começarem, será muito mais difícil reverter os danos depois”, alerta Julia Catão Dias, coordenadora do Programa de Consumo Responsável e Sustentável do Idec.
“Essas infraestruturas vão disputar energia e água com a população, agravando desigualdades em nome de uma digitalização sem transparência.”
Sobre o recurso hídrico, em um primeiro momento, a Casa dos Ventos, empresa responsável pelo projeto para o Tik Tok, informou que o abastecimento para consumo total seria obtido por meio de “poços artesianos instalados no local”, mesmo meio utilizado por alguns moradores.
Mas, no dia 18 de agosto de 2025, a Companhia do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp S/A) assinou um acordo com a empresa Utilitas, formada pela Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará (Cagece), Marquise, GS Inima e pela PB Construções.
A empresa ficará responsável pela produção e fornecimento de água de reúso para o hub de hidrogênio verde (H2V).
A água sairá de efluentes sanitários da Região Metropolitana de Fortaleza na Estação de Produção de Água de Reúso (Epar). O data center se utilizará do sistema, que tende a diminuir muito o consumo hídrico.
Duas outorgas para direito de recursos já foram concedidas pela Secretaria dos Recursos Hídricos do Ceará (SRH) para o uso da água.
O Povo entrou em contato com a Casa dos Ventos, responsável pela construção do empreendimento, que enviou nota afirmando que o projeto do data center é fundamentado em sustentabilidade e inovação.
Segundo a empresa, o funcionamento será alimentado por energia 100% renovável, proveniente de novas plantas geradoras que serão dedicadas exclusivamente a essa atividade.
A Casa dos Ventos destacou ainda seu compromisso com a transparência e o cumprimento rigoroso de todas as etapas do licenciamento ambiental. De acordo com a companhia, o empreendimento obteve as licenças necessárias junto ao estado do Ceará com base em estudos técnicos detalhados e mantém um diálogo contínuo com comunidades e autoridades locais, assegurando uma implementação que respeite a legislação, as melhores práticas do setor, as pessoas e o meio ambiente.
As organizações denunciam que o empreendimento foi enquadrado como de “baixo impacto ambiental”, o que permitiu o uso de um Relatório Ambiental Simplificado (RAS), instrumento aplicado normalmente a pequenas obras.
Essa classificação dispensou a elaboração de um Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), as audiências públicas e a participação do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema).
Em relação aos licenciamentos, falta de diálogo e EIA/Rima, a Semace afirmou ao O POVO "que o licenciamento do empreendimento segue todos os trâmites legais e técnicos previstos na legislação ambiental. Na Licença de Instalação do empreendimento, a empresa deverá realizar oitivas com as comunidades do entorno antes do início das obras".
"Essas escutas estão formalizadas como condicionantes e são obrigatórias para o início da implantação do projeto, que está localizado em área já antropizada, dentro do perímetro do Hub do Hidrogênio Verde, região que já passou por estudos ambientais anteriores. Por essa razão, foi solicitado o Relatório Ambiental Simplificado(RAS)", disse em nota.
O povo Anacé, que vive tradicionalmente na região, conforme o relato das entidades, não foi consultado, em descumprimento da Constituição Federal e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garantem o direito à consulta livre, prévia e informada.
“Segundo os planos da empresa, as reuniões com a comunidade ocorreriam apenas após a emissão da licença de instalação — quando as obras já poderiam estar em andamento.”
Para se ter ideia, o empreendimento tem investimento inicial estimado em R$ 50 bilhões.
O projeto conceitual do complexo de Data Centers é de 210 MW, é dividido em dois prédios, totalizando 300 MW de potência total.
Com uma área para futuras expansões, o complexo poderia alcançar 600 MW de TI, com quatro prédios, aumentando também o aporte de bilhões.
Sobre o RAS, O POVO foi o primeiro jornal do País a ter acesso ao estudo simplificado de 658 páginas, no dia 3 de junho, após o pedido ser realizado à Semace, por meio de documentos, no dia 30 de maio.
Em matéria publicada no dia 21 de junho, do repórter Samuel Pimentel, tem-se que o Data Center Pecém prevê um total de 31 reflexos nas fases de planejamento, instalação e operação.
Dez são relacionados ao meio físico, nove à fauna e flora e 12 ao meio socioeconômico. Do total, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) classificou dez como significativos: três positivos e sete negativos.
Para Andrea Camurça, do Instituto Terramar, o caso pode abrir um precedente preocupante.
“Se esse licenciamento for aprovado, estaremos abrindo a porta para uma nova forma de injustiça socioambiental, a digital”, afirma. “É preciso garantir que a transição tecnológica não repita as lógicas de exploração e racismo ambiental que já marcam a transição energética.”
O empreendimento da ByteDance seria o primeiro grande data center da empresa na América Latina e parte de uma corrida global das big techs para ampliar sua infraestrutura digital.
Mas, para especialistas e organizações locais, o avanço acelerado do licenciamento no Ceará expõe a falta de regulação sobre o impacto ambiental das infraestruturas digitais no país, um tema ainda pouco debatido, mas com alto custo social e ambiental.